sábado, 10 de setembro de 2016

A ZUNGUEIRA SAMARITANA E A PRINCESA



A ZUNGUEIRA SAMARITANA E A PRINCESA

Disse-lhe a mulher: Senhor, dá-me dessa água para que eu não mais tenha sede, nem precise vir aqui buscá-la.” João 4.15

Daí vi a chamada de um retiro de mulheres, “Princesa sim! Meu Pai é o Rei” e passei por uma rua qualquer em Luanda e lá ia a zungueira, carregando quase de tudo sobre a cabeça, bananas aos cachos, batatas, panos, biscoitos, pães, abacaxis, laranjas, limões, doces, sonhos, criança nas costas, vida difícil de quem traz para casa os cuanzas que servirão para dar comida aos miúdos, bebida ao marido, e depois continua a dar banho na prole, uma ou duas com ela o dia todo, outras a esperam em casa. É uma mulher, como outras tantas, possui a inexplicável vaidade, vestida de África, roupas coloridas, carrega os desejos, igreja aos domingos, e na segunda as bananas, batatas, filho nas costas e a vida gira sem a realeza prometida, ou esperada, alienada pela própria felicidade e desconhecerá a miséria em que vive e não muito, talvez o mais tardar aos quarenta e cinco, a brevidade indesejada e a infinita liberdade; mas por enquanto continuará a tomar banho de caneca, suplicando a providência e proteção contra as doenças da fome.

A samaritana era uma quase zungueira, se é que isso possa existir, pois afinal não é todo mundo que carrega uma lata na cabeça que pode evocar o pertencimento ao grupo que está do lado de fora da realeza e que reside pouco abaixo das bananas. Contudo, a depender do conceito do que poderia ter sido uma zungueira no primeiro século, a samaritana estava meio por ali, bem perto. Tivera cinco maridos e nem vou discutir aqui se fizera o que era certo ou errado, até porque nem Jesus se interessou em perguntar. Sendo ou não zungueira, com certeza a samaritana sem nome não era princesa, não mesmo. Também não ficou sendo depois, e o que a cativou não foi necessariamente o conteúdo do que descobriria, mas a aceitação de quem, com profundo respeito, conversou com ela e nem se preocupou com a proibição, não perguntou por onde andava a consciência, não indagou sobre moralidade ou virtudes, e nem dela se afastou com a repulsa natural da santidade. Apenas palavreou como quem ampara uma zungueira num dia qualquer e dá a ela o que não estava procurando e que nem sabia direito da existência e possibilidade, porque o Pai não é só rei, e nem isto é o mais importante. O pai é o fazendeiro que espera o filho voltar para casa, de qualquer jeito ou modo, é o pai do eu sei que sempre me ouves e a vida sai do túmulo depois de quatro dias, porque o pai, é pai da vida, e olha pro filho que está ali entregue aos limites da existência humana e declara, este é o meu filho amado em quem me alegro, e tem pai no filho carregando crianças no colo e dizendo ser delas o Reino dos Céus, e dá-lhe o Pai do nas tuas mãos entrego o meu espírito, porque o pai recebe, recolhe, agasalha e abriga. É o Pai do Reino, mas aqui Reino significa outra coisa, e os filhos são servos, não príncipes, nem princesas, talvez zungueiras e quem sabe samaritanas.

E a zungueira, feminina, mulher, mãe, explorada, sem ser princesa, sorri.

Natanael Gabriel da Silva, Luanda


sábado, 27 de agosto de 2016

A ALEGRIA E O OUTRO


“Assim, decidi que não mais iria visitá-los com tristeza. Porque, se vos entristeço, quem então me alegra [...]?”

Não, o problema que Paulo tinha com a comunidade de Corinto, conheço. Independente do motivo que ocasionara a desconfiança, alegria gera alegria, parafraseando Gentileza, e o recebimento da alegria que retorna, só pode acontecer se um dia ela tiver ido. Coisa simples. O outro é sempre o eco da minha alegria. E a alegria, fundamentada na compreensão, se desloca, ora vagarosa, ora a escoar por um novo caminho, ora a despencar numa avalanche, como se só houvesse um para baixo. Não são metáforas suficientes, eu sei, mas a alegria que vai e retorna não segue os padrões da física, não respeita a lógica, e não tem sentido. Ela só descobre o caminho quando a trilha já tiver sido traçada. A alegria quando manifestada por meio de graça e afeto, impulsionada pela fraternidade, humildade e compreensão profunda do outro, descola-se com a força necessária para romper as muralhas do medo, do outro é claro, ou abismos, ou esconderijos de quem se oculta da vida. É isto mesmo, a alegria tem a capacidade de fazer curva, como a luz de Einstein, e toma o outro pelas costas e desprevenido, como se fosse traição, caminho certo do coração, e torna a vítima do amor um indefeso, desarma, desprotege, desencarna e ensina: a alegria é possível, apesar do traído pela curva ainda não saber o que ela significa. Não saber, vírgula, que não sabia, pois uma vez experimentada, a alegria muda e emudece. Pode demorar a acontecer. Ficará na memória de um algo em algum lugar que fora provocado por alguém cuja lembrança às vezes não dá conta em responder, e a alegria, que reside no inconceito, sem conteúdo ou evento, simplesmente acontece.

Daí Paulo olhou para comunidade, e o emaranhado que se tornara aquele relacionamento, cheio de dúvidas, desencontros, desajustes, e pensou que poderia perder o retorno da alegria, pois ela só poderia vir de lá. É claro que o ir em tristeza, que aparece no texto, pode ser lido como um abrandamento de discurso e não um simples sentimento. Talvez fosse sua nítida visão de que, o que estava ruim, poderia ficar pior, o conflito ampliado, o abismo aprofundado, a rigidez solidificada, e a ruptura emergindo de forma rasgada, e nem corte cirúrgico seria, mas o rompimento desfiado com base na força de separação. E quando se rompe, não há mais discurso, não tem mais estrada, não há mais caminho, nem ponte, e a alegria fica aprisionada, embotada, isolada, apodrece e morre, pois se há alguma coisa que não subsiste no singular, é a alegria, e é por esta razão que a alegria não é um substantivo singular feminino, mas é plural. Ela se dá sempre no duplo, porque vai e vem, vem e vai, continuamente, até que alguém decide colocar a pedra de Drummond no caminho, ou a parede sem porta de Pessoa, e a perda é de todos, por mais que se queira dizer isso ou aquilo, justificar assim ou assado, dizer que a culpa de quem fez implodir a ponte foi do outro, ou a causa é desconhecida, em razão de algum inexplicável fato, coisa do acaso, das condições impostas por motivo de força maior, o fato é que as explicações não são eficazes na construção de pontes. As explicações, são apenas explicações. Deste modo a alegria, sem dois humanos, em interpessoalidade, autenticidade e liberdade, evapora e provavelmente irá visitar os lugares da aceitação, pois não pode ficar perdida. Nada mais triste que uma alegria sem ponte, estrada, caminho, ladeira ou trilha, pois ela só pode ir, e retornar, impulsionada por uma pessoa; sua essência é a liberalidade, sua paixão é o sabor da felicidade, sempre abrigada pela compreensão e só cabe, de tão grande, quando a alma é larga o bastante para agasalhá-la.

Paulo voltaria a lamentar pela tristeza que fora causada e faz um esforço para separar o que ele chama de tristeza que vem de Deus e a tristeza gerada pela ação da cultura e existência. A tristeza vinda de Deus pode ser explicada pelo sofrimento do viver. Agora, a tristeza causada pelo humano, segundo Paulo, gera a morte (II Coríntios 6.10).

Ele tinha razão.


Natanael Gabriel da Silva, Luanda 27 de Agosto de 2016

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

SOMBRAS

“Os quais servem de exemplo e sombra das coisas celestiais…” Hebreus 8.5

O complicado livro de Hebreus e que demorou para ser incluído entre os denominados textos sagrados, tem um autor que já falava do Eterno como aquele que tem uma reserva de sentido. Ninguém sabe se Hebreus é um tratado, uma carta ou um sermão. Não é possível afirmar quem seria o autor, nem quando teria sido escrito. Tem um judaísmo helênico como conteúdo, mas segue uma estrutura literária judaica. O livro faz um contrabando do imaginário religioso do Antigo Testamento, em seus ícones mais significatios e os supera em significado transformando tudo o que era, como se não fosse, ou tivesse sido apenas pela metade. Quando se pensava que o caminho do sagrado tinha sido vencido, lá vem Hebreus assumindo o discurso da sombra.  Do imaginário religioso judaico o autor de Hebreus retira a eugenia a partir de Abraão, o templo, os sacrifícios, a Lei, e por aí se vai, e os transpõe para a pessoalidade, ou corpo, como diria Paulo em Colosensses 2.17, do Cristo. Deste modo Hebreus transforma o que parecia real como sombra. Pensava-se que fosse real, histórico e encerrado, com liturgia e código, mas tudo então é transformado em rastros, no caso, sombras. Assim se dá o Cristo, que não é um templo, no sentido objetivo. Nem Lei, no sentido positivo, ou um rito no sentido estético. Cristo é pessoa, corpo, e não é possível um pertencimento, com e nele, por meio do imaginário superado e tido como sombra. Com outras palavras, Cristo, pessoa e corpo, interage com o outro por meio do relacionamento, aproximação, interiorização e pertencimento. Não mais seria por meio dos ritos, muito menos de templos. Ao pertencimento que torna o discípulo pertencido a Cristo, o vínculo é chamado de fé. É por esta razão que o capítulo da fé está em Hebreus. Esta é a substitutiva dos ícones do sagrado, que se tornaram sombra, e se realizaram na pessoa. Todavia, acaba o autor de Hebreus a penetrar em outra sombra, não limitada em sentido como a anterior, mas exatamente em razão de seu contrário, por ter um excesso de significado; também é sem a objetividade, como no caso das sombras que foram sucedidas, e igualmente possui múltiplas possibilidades interpretativas.

Conversar sobre teologia é dialogar sobre estas sombras. Todos igualmente procuramos, por meio da lógica de um discurso, identificar os traços de quem lá está. E é quem mesmo, por não ser coisa, ou um inventado. O segredo, e o que faz da teologia, teologia, é saber que Ele está lá. O Cristo é o próprio conteúdo, mas tem que ser sombra para que não haja aquele que O tenha sob domínio hermenêutico. Cada qual vai desenhando o contorno que vê e é capaz de afirmar com toda a segurança que um dia conseguiu limitar a sombra pelas palavras, juntou expressões, deu um corpo que parecia ser o da sombra e irá defender o encontro como o sublime como se tivesse sido o único possuidor e detentor do real sentido e conteúdo. Sairá fundando grupos, organizando sistemas. Os tais serão objetivos, terão endereço, liturgia, escala de comando com apóstolos e apostolas, comandará grupos com afirmações categóricas que dará mais verdade ao conteúdo das palavras que tentaram desvendar as sombras, e porque não dizer, a aprisionaram. Só que um dia este, o possuidor e detentor do discurso único e correto, seja singular ou coletivo, acaba. E o excesso de sentido, para a sobrevivência do imaginário que não pode ser contido, permanece, sai do domínio das centenárias comunidades e suas hierarquias e invadem as ruas, os becos, as casas dos pobres e lá se reconstrói como sentido a desafiar os grandes sistemas, mistura-se com credos e ritos que emergem sabe-se lá de onde, o que também é outra sombra, e que moram no cotidiano. O absoluto permanece como sagrado e se revela no ocultamento do mistério.

Nada me encanta mais que o excesso de sentido, do que não pode ser apreendido ou limitado. Longe do ceticismo, mas bem longe mesmo, me deleito na busca daquele onde a alma se dissolve, a partir do qual tenho aprendido o que é a vida. Saio das sombras e encontro o outro, ou desço do Sinai, ou da Transfiguração, e me deparo com o singular, a pessoa, o coletivo da convivência, onde deve espraiar a cidadania e a fraternidade. Isso porque trago da sombra o que busquei e encontrei. Pode ser chamado de amor, misericórdia, ou graça, pois a sombra, ao contrário do se pode pensar, não é vazia. Tem apenas um significado que não pode ser alcançado no seu sentido objetivo. Quem procura o sentido, fica por lá a procurar e afirmar que de fato encontrou, só falta melhorar o que já está compreendido, estudar o estudado, conceituar o conceituado, e juntar um novo juízo para ficar ainda mais claro. O barraco vai ficando cheio de detalhes, vírgulas, exegeses de textos e dos textos que estão por detrás dos textos. Lá o morador das palavras não descerá para as vilas e esquecerá o que de fato é um humano.

Sombras, mistério, paixão e graça são fontes, não objetos.

Natanael Gabriel da Silva

domingo, 31 de julho de 2016

O DOUTOR


“Ai de vós, doutores da lei, porque retivestes a chave do conhecimento; vós mesmos não entrastes e impedistes os que desejavam entrar.” – Lucas 11.52

Doutor aqui é o intérprete de tudo o que é sagrado e é capaz de dizer, ensinar e determinar os passos, pé por pé, de como se deve fazer para agradar o Santo. O doutor possui a chave, porque detém autoritariamente o modo correto de interpretação, estabelece parâmetros e exigências para descortinar a verdade, como se fosse um espaço que só poderia ser compreendido e interpretado por ele. É isso que torna o outro dependente, serviçal, escravo, impotente e vítima do discurso. O doutor conhece os originais dos originais, esconde os trâmites e dúvidas das contradições textuais. Nunca irá confessar que há muito se estuda os primeiros versos sobre a Criação como poesia, mas não saberá nem o que isso significa e ocultará a informação aos dominados, com medo de que possam perder a fé. Achará que a poética é menor do que Lei e não saberá guiar a vida por princípios, apenas pelo império da norma. Deste modo o doutor oculta os questionamentos e os tenta superar com a explicação de que, afinal de contas, a fé não pode ser compreendida e interpretada completamente. Nisso o doutor tem razão, mas só chega nesse ponto quando não mais tem resposta, e acaba por se tonar este um esconderijo hermenêutico, com uma porta de saída do outro lado da gruta que ninguém conhece. Então, quando consegue a façanha, sai pra respirar pela porta artificial, como se tivesse vencido a dúvida sem resposta, para manter o domínio do que chamaria de essencial e necessário. Há um pouco que se deve conhecer bem conhecido, reafirma o doutor, confirmado e compreendido a partir do original, e este pouco é suficiente para levar ao cativeiro o cativo mediante apenas uma conjunção adversativa: mas. Coisa do tipo: Deus é amor, mas é também justiça; e o “mas” fica na memória do condenado à privação da liberdade, numa interpretação ruim e que coloca dimensões éticas opostas, como se o Perfeito fosse capaz de um algo diminuído por outro; atributos contraditórios que bem poderiam ser expressos no inverso, ou seja: Deus é justiça, mas é também amor – assim eu nunca ouvi, pois este discurso é libertário demais para quem não consegue sobreviver sem a justiça como instrumento de poder, mais humana que divina; imposta e interpretada como sentença condenatória. Sabe por quem? Pelo doutor, é claro! Assim o doutor mantém a autoridade e empurra a vítima do discurso para dentro da caverna, sem dar-lhe o mapa de uma saída, que o próprio doutor não tem, mas isso jamais irá confessar. Assim, o doutor que diz saber de tudo e autoridade letrada e estudada no assunto, vai indicando os passos para o cativo e que sempre acabam numa parede sem porta. Até pra voltar o aprendiz terá que depender do discurso renovador do doutor. Ele irá chamar as barreiras, e os becos do labirinto, de pecado, dirá das limitações do condenado, afirmará sua falta de fé, porque quem não encontra a porta, só não acha porque não tem fé. E o doutor trocou a pessoalidade da porta de João 10.9 pelo estudo sobre a porta, ou fez o salto do Cristo para cristologia como diz Harnack. Fez isso porque uma porta pessoa não permite o exercício do poder. Fez isso e se perdeu. Não haverá saída, porque o doutor é o Doutor das letras e dos escritos, o Hermes a interpretar a linguagem dos deuses, seja esta textual ou sobrenatural, e soma à autoridade da letra, o domínio das forças do mal, e lá vai o doutor dos milagres curar os famigerados e infelizes de todos os tipos de infortúnios.  Ficam os cativos escravizados pelo êxtase e momento quando o milagre, distorcido de seu evento social e cultural, se der então como realizado. E tem milagre todas as horas, é uma fábrica de milagres que tornaria o Ford e sua linha de produção, coisa de criança. Assim como nas fábricas de automóveis, os milagres dos doutores do sagrado não acontecem nas ruas, pelo caminho, no encontro com os miseráveis, nada disso. São milagres de templos da produtividade, suntuosos templos, cheios de assombro para que o milagre pareça ser ainda mais milagroso, cantoria e voz profética dentro da fábrica e suas máquinas em linha. Fica o milagre cativo feito produto como se o mundo não fosse o lugar da manifestação do divino.

Mas, aos doutores, tem um ai de vós pela criação da carga colocada sobre o outro, seja de medo, dúvida, dependência ou exigência (Lucas 11.46). Tem um ai de vós pela distorção da história e o uso ideológico do discurso (Lucas 11.47); tem sangue e morte, porque o doutor das letras e do sagrado mata sim o seu próximo e não raras vezes se apropria de seus bens. E se retroagir no tempo, sentenciava Jesus, irá encontrar a presença do manipulador, cuja conduta se repete, desde quando é possível de se falar de ter havido existência (Lucas 11.50,51).

Pois é, só sei que o Evangelho da Graça e do Amor, o Evangelho Maltrapilho, como diria Brennan Manning, continua escondido. Tão escondido que fica difícil saber o que de fato significa.

Natanael Gabriel da Silva



segunda-feira, 30 de maio de 2016

O PROFETA LIBERAL


“E não ensinará alguém mais a seu próximo, nem alguém, a seu irmão, dizendo: Conhecei ao SENHOR; porque todos me conhecerão, desde o menor deles até ao maior, diz o SENHOR; porque perdoarei a sua maldade e nunca mais me lembrarei dos seus pecados.” Jeremias 31.34

Liberal sim e por uma razão muito simples: Jeremias propunha um despertar do sagrado que fosse além dos conceitos. Estes, esgotados como determinação de conduta por meio dos ritos e da Lei, mostraram-se insuficientes e ineficientes. Liberdade, anunciava o profeta, de tal modo que permitisse uma radical libertação.

Radical e no plural. E foram muitas as liberdades anunciadas e esperadas. A primeira, clara no texto, seria a libertação do sofrimento causado pelo que, genericamente, o profeta chama de maldade e pecado. A segunda, a libertação do ensino, do conteúdo, do que é passado e fornecido como correto, e que vem no enigmático “e não ensinará alguém mais a seu próximo”. Trata-se do conhecer sem o aprender, porque este já supõe o domínio do conhecido por parte de alguém que ensina. A terceira libertação, em decorrência da anterior, seria a insubmissão ao modelo imposto pelos dominadores da religião. Ou seja, na segunda, está a libertação do conteúdo, ou do que é/deveria ser, e na terceira está a libertação do poder que ensina e estabelece a verdade. E quem foi que disse que  o poder tem a voz da verdade? Jeremias olhou toda aquela religião organizada, bem assentada nos princípios, sistematizada, e fez uma pergunta fundamentada na vivência, algo como um não tem nada além disso? Além, ou aquém, estava a profundidade que move a existência.

Na trilha dos estudiosos da profundidade da alma, Jeremias já suspeitava, ou afirmava, que o ser humano não se limita ao que conhece, e que tem uma forma de “conhecimento” antes do conhecimento, e a ética não depende apenas do saber o conteúdo, mas tem a sua percepção para além do que pode ser aprendido e ensinado. O ensinado vem depois, e quando aparece, já está pensado e interpretado. E o pensado e interpretado, no tempo de Jeremias, tinha seu acabamento na insuficiência dos ritos e da Lei. Tinha que exceder a justiça dos escribas e fariseus, diria Jesus muito tempo depois. E o exceder é a libertação da clausura da hermenêutica de cabresto. Libertando-se dos conceitos, liberta-se também dos que têm o domínio da interpretação.

Então Jeremias por intuição (já que não era filósofo), e se opondo aos frangalhos da religião oficial que o perseguia (já que era profeta), declarou os limites da lei quanto ao ensino, colocou a esperança como integrante e pertencente aos desejos sublimes da interioridade humana, e ainda descartou os mestres, senhores do comando, os mandantes das determinações, das regras e dos ritos, afirmando que aqueles já não seriam mais proprietários do sagrado. E conclui com uma socialização do imaginário religioso, pois pertencerá a todos, indistintamente todos, dos pequenos aos grandes, e colocou assim na ordem crescente, porque a ordem dos fatores aqui, altera o produto. Começa com os considerados sem importância, e estes irão ensinar os mais velhos, desde baixo (para não ser ideológico), e desde o interior da alma (para haver pureza). A purificação fará a pureza, e será o pertencimento antes da doutrina, ou do dogma. É o presente da limpeza, como dádiva e que vem do profundo da alma. A purificação, assim, vem antes do purificado saber o que seria purificação, vai limpando a causa o banindo a maldade e o pecado.

O profeta, desacreditando em templos, rituais e homilias, procurou encontrar o impulso para a espiritualidade desde dentro, desde o profundo. Liberdade dada e tida como um emergir, sem ensino, sem rituais, sem o domínio da Lei, sem sacerdotes, e até sem intérpretes; liberdade no sentido mais amplo possível. Só essa liberdade gera libertação. Jesus a chamaria de Graça, algo que até hoje a cristandade ainda tenta compreender o que significa, e por falta de compreensão procura colocar nela determinados limites, e quando o faz, a Graça deixa de ser Graça.

Um profeta liberal, e quem não é?

Natanael Gabriel da Silva

domingo, 22 de maio de 2016

O DISCURSO, A RELIGIÃO E O TEMPO

“Na verdade vos digo que não passará esta geração, sem que todas estas coisas aconteçam” – Marcos 13.30 

O texto religioso ou o bíblico, se preferir, é fundamentado em diretrizes universais e ideais para a existência humana. Seus ditos e narrativas, longe de se transformarem exclusivamente em dados objetivos e históricos, propõem sempre uma leitura que excede o seu provável significado. Assim, a abertura do Mar Vermelho, não é apenas um mar que se abre. Explicar cientificamente a possibilidade de um mar abrir-se ou não, não é suficiente para o texto. Por ser uma narrativa religiosa, o seu significado vai além da realidade e vira sonho. Neste caso um mar que se abre, como barreira intransponível, tem mais significado como símbolo de fé do que qualquer outra coisa que se possa afirmar a partir dele como acontecimento. Transforma-se assim em sonho para toda e qualquer opressão; símbolo universal de liberdade e superação de intempéries. É a porta de saída do mal para a terra que mana leite e mel. Não precisa mais que isso, pois todos desejamos o paraíso.

Os eventos sobrenaturais oferecem à literatura um fator de perenidade, isto é, a ocorrência poderá incidir sobre qualquer lugar ou tempo, inesperadamente, como se fosse um eterno presente. Não é observado como um passado, mas é tanto presente, como expectativa do futuro, daí a razão pela qual o céu apocalíptico vira o paraíso da criação. Deste modo, um mar que se abre é esperado como acontecimento provável até mesmo em vivências pessoais, bastando  a situação ser dada como limite e desespero, sendo o seu significado sempre renovado. O desespero de quem espera é sublimado pela esperança, porque o mar não é propriedade de tribos judaicas, e nem está no Oriente Médio, mas se dá como espalhado, e espelhado, no imaginário individual e coletivo. Em qualquer momento pode ocorrer outra vez, não será igual, mas parecido, não será nem mar, mas será a porta de saída de um deserto qualquer.

O discurso religioso, só é religioso, porque supera o evento e sobrevive no imaginário e vira metáfora. É visitado, ressignificado, vivenciado várias vezes e disponível para apropriação por meio do que é chamado, imprecisamente, de fé.

Deste modo, tal discurso, não padece de encerramento, mas sobrevive no encantamento. Não sofre de morte, matada ou morrida por meio de questionamentos, comprovação ou negação científica, porque é fundante cultural. Não termina e nunca deixa de ter validade. Os significados vão mudando por bricolagem e as aplicações se tornam múltiplas. Não há limites para ser reinterpretado, aplicado ou esperado. Deixou de ser um ponto aprisionado pela história. Não pertence a um único povo ou época. Nem aconteceu exclusivamente para resolver um problema específico. Torna-se universal e atemporal. Para que isto ocorra, o evento vai recebendo novas cores, vai se dando por atualizado conforme a cultura, época e necessidade. É sempre confirmado, ou como esperança, ou por semelhança e adaptação. Assim mantém o conjunto total de elementos que o fizeram nascer na origem. E a origem é sempre a síndrome do perfeito, e pelo texto, ela pode ser alcançada. Fica uma visão de quem a vê de longe, sem entender muito, e não precisará de confirmação da existência do Paraíso, porque a certeza vem antes da confirmação. Neste caminho, se o evento pode ser confirmado ou não, pouco importa. Mesmo que haja indícios, seja de confirmação ou de ausência, o que permanece é o discurso. É por conta disso que a ênfase que dá sobre se em Jericó havia ou não muralha, já que nenhum indício foi encontrado, não faz qualquer diferença. O imaginário religioso não pode perder Jericó e irá declarar, sentenciar e até mesmo determinar que as muralhas lá estiveram e que hoje são parte das forças do mal que têm que ser derrotadas ao som de trombetas. Surge então a atualização e venda de trombetas; e haja vuvuzelas para os transformadores de mitos em lucros nas comunidades pós-modernas! A muralha, não é mais um muro físico, nem o Mar Vermelho um ajuntamento de águas, nem as trombetas são trombetas. Deixaram de ser coisas e se tornaram ideias e crenças.

Comecei mencionando Marcos. E no texto a expressão "geração", não é geração, apesar de muitos vincularem a narrativa à Jerusalém, como confirmação de uma profecia. A profecia não necessita de confirmação pra ser profecia. Quando ocorre, ocorre. Quando não, ainda está para se cumprir. Não é possível fazer a negação de uma profecia, porque o sim já está implícito no discurso. Neste caso, geração aqui em Marcos pertence a qualquer tempo, é a de hoje, foi a de ontem, será a do futuro, e enquanto houver vida. Geração é a iminência do agora, justamente porque não foi ontem. Poderá ser amanhã, mas é apenas uma questão de um depois, e as coisas irão finalmente, e fatalmente, acontecer. Se não aconteceram, é porque não chegou o tempo. Espera-se pra agora, daqui a pouco, amanhã, e quem sabe no quando dos filhos dos filhos. As palavras devem continuar válidas, precisam se tornar perenes, e ficamos todos à espera do que as palavras dizem, do que as profecias apontam, a superar qualquer negação, contradição ou descrédito.

Não entendeu? Então bem-vindo ao discurso religioso.


Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 16 de maio de 2016

MEU PAI TRABALHA ATÉ AGORA


“Mas Jesus lhes respondeu: Meu Pai trabalha até agora, e eu trabalho também.” – João 5.17.

Eu sei que você vai ler o texto acima e pensar na palavra trabalho. Coisa do nosso tempo, do trabalho e produção na sociedade weberiana do capitalismo a perseguir o protestantismo, ou vice-versa. Amamos tanto o trabalho, que perdemos o tempo do texto, e o ‘agora’, ou “até agora”, é que dá sentido ao rompimento de Deus com o próprio sagrado: Deus também trabalha aos sábados, e eu só estou fazendo o que ele faz, disse Jesus.

E o trabalho tinha sido esse mesmo. Enquanto os judeus se reuniam em festa, religiosa e litúrgica, é claro, Jesus fora ao lugar dos miseráveis, em busca da miséria, não muito longe do templo e da festa, e caminhou entre os esquecidos, e lá entre os miseráveis havia alguém, sem nome, sobrenome ou pronome, à espera de um anjo, um milagre, uma aparição, um cair do céu que não era céu, que viesse de algum canto, mas que não era do templo, nem das pessoas, mas do sobrenatural mesmo e fizesse o que se pensava, ou desejava, ou ainda no que se acreditava apenas como esperança, e o anjo sem corpo mergulharia na água sem ser visto, transformaria aquela água em esperança e vida, e daí quem entrasse primeiro seria curado de qualquer coisa, fosse o que fosse, bastava entrar, na corrida dos miseráveis, excluídos, abandonados e que nem sabiam o que tanto eram, caia-se na água doente e saía curado pelo milagre. Foi a esse imaginário de fim da esperança que Jesus foi. Sequer se deu à preocupação de conversar sobre anjos e demônios, nem sobre o passado do miserável, nem do seu nome, não disse mais nada a não ser o toma a tua maca e anda, coisa impossível a quem sequer conseguia sair do lugar. E era sábado.

No sábado era possível fazer festa, celebrar e cantar, mas não dar vida a quem precisava.

O curado, que não sabia quem era Jesus, não tardou a entregá-lo para os judeus, com a finalidade de livrar a própria fidelidade. O miserável, que abandonara a condição de miséria, tão logo se viu livre da tragédia, galgou os espaços do crescimento na vida e foi juntar-se aos que antes o haviam esquecido, e abraçou a religião que o condenara e tornou-se um deles, porque a miséria humana tem memória curta e juntar-se aos libertadores, mesmo que opressores, é melhor que estar no meio dos excluídos, pois o pertencimento e submissão voluntária explicam a ausência de necessidade de esforço do opressor.

Então questionaram Jesus e saiu a pérola da condenação do sagrado que segrega, exclui, e é incapaz de ver a miséria, compadecer-se dela e ver na libertação da vida o sentido da profundidade do discurso religioso. Eu nunca pensei num Deus trabalhando no dia do sagrado, como se este não tivesse qualquer importância; é a declaração de que tudo estava às avessas, e o caminho da misericórdia não poderia passar pela trilha da religião sem o humano, mesmo que o próprio curado não tivesse compreendido isso. Isto porque a ingratidão não é a mediadora da graça, e a graça continua sendo graça, mesmo quando não é compreendida ou abraçada.

Um Deus que trabalha aos sábados: simplesmente genial.


Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 10 de março de 2016

A TUA FÉ TE SALVOU

“Jesus lhe disse: Filha, a tua fé de salvou, vai-te em paz e fica livre desse teu mal.” – Marcos 5.34

Quando se faz uma análise da vida de Jesus e o discurso que se fez cultura, talvez fosse bom estudar o modo como ele encorajava as pessoas. Encorajar é encher o outro de coragem e vontade. É o contrário do desestimular ou conduzir o outro a perder o interesse. E Jesus fazia isso até mesmo quando não dizia nada, e este nada era cheio de sentido, como no silêncio diante de Pilatos.

A nossa conversa não é sobre Pilatos, mas sim a expressão “a tua fé te salvou”, e eu sei que a discussão tem sido no entorno do “salvou”, conteúdo, situação e tempo. O debate sobre  “tua fé” é mais pobre, porque  discute-se se “tua” aqui é o possuir antes, ou receber depois. Nos dois casos vira calvinismo contra arminianismo. Não se preocupe com estes termos. Tal encontro, ou desencontro teológico, faz perder o pronome possessivo, “tua”, como sendo elevação e sublimidade da alma. Ou seja, o perde-se a dimensão pedagógica do discurso, estimulador e restaurador. Numa linguagem simples: encorajador. “Tua” que remete a uma possibilidade, estabelece uma abertura para o resgate da dignidade, porque afinal a fé pertencia a ela, mulher, e a centralidade do discurso deixa de ser quem de fato praticou a cura; “tua” transfere o milagre para a beneficiada e dá a ela um possuir que a libera para a vida, a começar com o afastamento do mal, para depois construir o futuro.

“Tua” aqui é muita coisa para o resgate da vida, mas pouco quando o pronome é analisado sob o crivo da pretensa objetividade teológica. Busca-se, na teologia, o exato sentido de "tua", faz-se então a leitura das outras situações, noutros textos, que “tua” aparece e elabora-se uma interpretação por meio de uma aparente generalidade. "Tuas" e "teus" passam a ter um significado próprio, pois a repetição e ocorrência constroem a verdade e funda a necessária universalidade a partir da qual são declinadas todas os demais “tuas”. Fica fácil, mas também pobre.

Só que diga para mulher do texto que ela contribuiu para a interpretação mais adequada de um pronome que aparece em muitas narrativas. Diga isso pra mulher sem nome, sozinha e pobre numa sociedade machista e excludente. Uma mulher doente e que gastara tudo o que tinha com médicos. A mulher que não tinha nada e recebeu, de presente, salvação e “tua”. Diga a mesma coisa da expressão “salvou”, para ver se ela ficaria satisfeita com tal resposta. E nem adianta procurar no texto as intenções dela, o que pretendia, desejava, ou esperava, porque o texto não traz. A teologia dela era puramente intuitiva e ninguém lhe disse o que deveria fazer. Nem a mística do toque que ocasionou a cura pode responder, porque o que ela queria mesmo era a saúde, procurou, insistiu, persistiu e realizou. Só. Fez o que pensou que poderia fazer e depois foi curada. Escutou “a tua fé te salvou”, vá em frente porque boa parte do que foi feito dependeu também de você, continue assim. Daí a palavra “tua”  é transformada na força capaz de jogar a vida dela para o futuro e assim poderia ir em paz. E foi. Tudo lhe pertence, tanto “a tua fé te salvou”, como o “vai em paz”, porque é você quem vai e pode ir sem depender de mais nada, mesmo que isso não seja absolutamente verdade. Fica livre desse mal. O mal da doença e o de não ter futuro ou disposição para conquistá-lo. O mal, Jesus curou. "Tua" era o futuro.

Ela sabia que não era isso. Sabia desde há muito que não faria nada sozinha, que outros, também limitados, não dariam conta em ajudá-la. Ela não se bastava e “a tua fé te salvou” não soou como uma afirmação absoluta. Sabia da própria limitação. Só que precisava escutar “a tua fé te salvou” para ser participante e construtora da própria existência e confiança para o retornar ao estranho e violento mundo.  Jesus deu-lhe a cura, a restauração da dignidade e o presente da participação na construção de si, do que era e seria, e foi por meio de um pronome, "tua", e pode ir porque levará consigo tanto a saúde quanto a disposição de tornar-se (eu quase completei a frase com “pessoa”, mas Carl Rogers acharia pouco original).

“A tua fé te salvou”, foi mais que teologia e está além da análise de um texto. Jesus a impulsionou. Revigorada, a fé ficou sendo dela, pra sempre. Só e apenas dela.


Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

AS CONTRADIÇÕES DA HUMILDADE

“Mas, mesmo que quisesse gloriar-me, eu não seria louco, porque estaria dizendo a verdade. No entanto, abstenho-me de fazê-lo, para que ninguém pense de mim além do que em mim vê ou de mim ouve, até mesmo sobre essas extraordinárias revelações.” – II Coríntios 12.6 e 7a.

Humildade é como o tempo no presente, quando se toma consciência dele, já passou, não é mais e se perdeu.

A humildade é contraditória. Você precisa estar e ser consciente de quem é, saber da própria condição, que espaço ocupa, potencialidades e sonhos. Só que você, mesmo sabendo de si, deve dar espaço para que o outro seja considerado como mais importante que você. Não se trata de hipocrisia, e a diferença está na pureza sincera do procedimento e reconhecimento. Também não é o comportamento politicamente correto, porque não é manipulação. Nem inconsciência, porque seria um desconhecer-se. Muito menos inferioridade, porque aí se daria como patologia. Trata-se do saber de si, como também do outro, e depois dar-se como um aprendiz da vida numa subordinação consciente e livre. O outro poderá julgar errado, projetar-se e tentar ocupar um espaço que não pertence a ele, e o humilde ao mesmo tempo em que se reserva à defesa para cuidar de si, não modifica o comportamento em relação ao outro, porque terá que vivenciar a humildade como uma adequação entre quem é e o que pode ser chamado de mundo. O outro não entra nesta equação primeira, só depois. Entra como aquele que se dá diante de quem se porta com humildade. Não é preciso dizer que a humildade é antinatural, tem que ser provocada e vivenciada entre o ser e o mostrar-se. E distância é antagônica. Uma coisa e outra não se encaixam, não são similares, nem necessariamente próximas, e fazem parte da mesma origem como ponto de partida. Simplesmente uma contradição, consciente e assumida; contradição esta que se avoluma na medida em que as virtudes e o crescimento pessoal, como o intelectual, se desenvolvem. A proporção é inversa, quanto mais vai somando conteúdo, experiência e vida, mais terá o humilde que se esforçar para alcançar o outro, mais diminuição terá que fazer para ser um igual e se possível menor.

Agora, quando o que se apresenta como humilde assume, por um lampejo, a consciência das próprias qualidades, virtudes, conhecimento, formação ou posição, já se deu ao mesmo tempo vazio de tudo isso. A humildade é a limitação consciente de tudo, para que o tudo permaneça no lado de dentro. É sufocante, eu sei, e tem hora que não é possível suportar. Paulo não suportou.

Daí a crise. O desejo de Paulo era o de querer ser visto, a partir de fora, de como ele realmente era, por dentro, mas sem mostrar-se. É claro que o apóstolo não conhecia a janela de Johari, ou o que é apenas visto pelo outro, e até mesmo o eu completamente oculto. Não seria possível exigir dele um crescimento pessoal por meio de algum feedback. Se fosse assim, talvez tivesse se defendido menos e aprendido mais.  O assunto que Paulo abordava na carta tinha a ver com um julgamento prévio e condenatório que alguém havia lhe imputado. Precisou legislar em causa própria e ninguém consegue fazer isso a não ser dando um basta na humildade. Caiu na armadilha, e expôs sobre si e tentou estabelecer uma leitura pelo menos razoável das qualidades que julgava possuir. Ele diz, depois diz que não deveria ter dito, lamenta a situação imposta e fica nisso, porque vai e retorna, não querendo ser, mas sendo, não desejando mostrar-se, mas fazendo exatamente isso. Não era uma questão apenas pessoal, eu sei, pois estava em jogo a fraternidade comunitária, mas nem isso justifica. Ficou deste modo, e não podia ser diferente, porque as contradições da humildade, ser e precisar ser, simplesmente não se resolvem.

Assim, talvez, seja possível entender melhor o tratamento dado por Jesus sobre o vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque eu o sou. É o miolo e coisa que só a humildade explica, ou não explica, e faz: lavar os pés uns dos outros, como ato consciente, voluntário, livre, fraterno, leal, honroso, submisso, deliberado, diligente, sabedor de si, do outro, e que faz com que aquele que lava continue sendo sempre quem foi, mas modifica a vida de quem é lavado. Este, por outro lado, sabe não ser merecedor, mas não consegue dizer não à nobreza de um ato quase incompreensível.

A humildade é contraditória e incompreensível e é incompreensível porque é contraditória. Não é uma escrita em linha reta, mas vai além da linha. Se tivesse linha, não seria humildade, porque a humildade não tem suporte, apenas direção. Se terminar, onde e quando termina a linha, não é nada. Será menos. Na melhor das hipóteses apenas alguém igual num mundo de vaidades, cheio de pessoas vendendo a própria imagem em liquidação como feirante a vender bananas, aos berros e em busca de auditório. Não é pra menos que os humildes de espírito, diz Jesus, serão bem-aventurados.

Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

A ÉTICA PARA O OUTRO

“Com efeito: Não adulterarás, não matarás, não furtarás, não darás falso testemunho, não cobiçaras; e se há algum outro mandamento, nesta palavra se resume: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo. De sorte que o cumprimento da lei é o amor”
Romanos 13.9-10

O texto acima nos dá basicamente duas respostas: O direcionamento da ética do amor e a necessidade de uma fonte de ética.

Vamos começar pela segunda. E a resposta, nada simples, é que somos perdidamente limitados quando o assunto são as virtudes, e dentre elas, o amor. Isto porque não temos amor suficiente para o empreendimento da fraternidade e solidariedade. O ser humano sempre contamina, qualquer coisa que seja, com os próprios interesses, projetos, sonhos, manipulação pessoal e tudo o mais que compõe sua irremediável humanidade. É preciso um amor maior que extrapole o sentido e se imponha como força agregadora, capaz ser perfeito e desafiar à perfeição.

Assim, é por conta disso que Paulo termina a análise de sua interpretação do decálogo, com o próximo. O texto não é concluído com o amor a Deus, porque este é o início do início, termina com o terminado que é o outro. Ou seja, a ética, no pensamento cristão, longe de ser um retorno para a santidade de Deus, no caminho dos rituais de purificação do imaginário judaico, é orientada para o outro. Paulo não encerra com o amarás o Senhor teu Deus de todo coração, entendimento e alma, mas encerra com o outro, o lugar da efetivação e da ação do amor. Eu sei que alguém irá recuperar o decálogo de Moisés e dizer que a metade daquele comando é para o Senhor e a outra para o próximo, que é o outro. Eu até posso entender isso, mas a mudança, talvez não pequena, é que o outro no judaísmo, tardio ou primitivo, era o separado, e no discurso de Jesus, o outro sou eu, o outro faz parte de mim. Paulo aqui o acompanha e diz que toda ética e relação de autenticidade, bem à la Carl Rogers, é centrada no mundo real da habitação humana, nas dimensões existenciais, onde os embates são vividos, cheio de distorções e contradições, e a sobrevivência é com o outro, e só é possível sobreviver em comunidade, embora a tarefa de amar não seja suficiente para suprir tal necessidade.

Não sendo aptos, precisamos e confiamos num amor maior, que nos manda amar sem entendermos direito o que é o amor. O amor maior, ou o amor em sua essência, recomenda a superação de si e remete aquele que ama a navegar na aventura da aplicação e incompreensão do perdão, da fraternidade e da vivência comunitária, sem dar atenção aos limites que a razão estabelece. É um convite ao rompimento das fronteiras e o ingresso num mundo novo, mas na segurança de que o incompreensível é seguramente o lugar, ou não-lugar, da vivência pura. É como abandonar as limitações pelo caminho, jogar fora a roupa da existência, que acredita imprescindível e insubstituível, e se aventurar no espaço onde há o perfeito e o profundo.

É possível que você me diga: não entendi nada. Não faz mal, trata-se apenas de um convite pra você aplicar a incompreensível ética, que tem o seu princípio, ou origem, numa fonte, também incompreensível, de amor. É por esta razão que o texto reafirma, como se concluísse: o amor não faz mal ao próximo. É só confiar nisso, mesmo sem entender. Apenas ame e entenda depois, ou não entenda, o que não faz a menor diferença.


Natanael Gabriel da Silva

sábado, 13 de fevereiro de 2016

OS LEGUMES E A FÉ



“Porque um crê que de tudo se pode comer, e outro, que é fraco, come legumes.”  
Romanos 14.2                      

Segue aqui a teoria dos legumes.

Comer legumes é para fracos, no discurso de Paulo, independente do sentido que se queira dar ao texto. A carne, ou no sangue, é onde está a força da vida, ou a própria vida, e o imaginário religioso não deixa por menos. O sacrifício de Caim foi de legumes, portanto, pobre demais. Pra ter sustância, como diria uma conhecida, é preciso o sangue, que está presente nas narrativas dos sacrifícios do judaísmo antigo, nas carnificinas do Antigo Testamento onde todos têm que morrer nas guerras de conquista, estas mais raciais que geográficas, pois um deus não convive com outra carne e sangue. O extermínio, só total.  A vida está no sangue, e cada raça (desculpem a expressão) tem o seu próprio deus. O morticínio confirma a supremacia e poder de quem vence, o mal desaparece com a destruição e se houver misturas de raças, haverá também a contaminação da raça pura, a qual tem filiação direta com o divino. Neste caso, o mal retorna. Então vamos acabar com todos e todas, incluindo as crianças, animais, barracos e principalmente, templos; quero ver onde irá morar um deus sem casa!Carne, corpo, herança genética, e por aí se vai, são sagrados. Os legumes, bem, os legumes são legumes.

E pra Paulo é coisa de e para fracos. Você vai me dizer que Paulo não era nutricionista e eu posso completar e afirmar que Moisés não era astrônomo.  Daí os legumes ensinam que a Bíblia é um livro de religião, ou de fé (se religião for uma expressão ruim). No caso da Bíblia, não se deve jogar o texto fora em razão de Paulo não entender de nutrição, nem o de Moisés pelo fato deste ser apenas leitor do senso comum do misterioso mapa celeste, ou se o Faraó é filho do Deus Sol, há um Deus que fez o próprio Sol e por aí se vai. A pergunta não é pela comprovação da criação, nem pela demonstração de um possível equívoco de Paulo, porque o texto, ou os textos, são direcionados noutro rumo. A teologia (não a dogmática, o que é uma impropriedade porque se fez assim, como sistematização) como religião, pergunta pela vida e seu sentido, e o que está no texto de Paulo é o amor relacional, a boa convivência, a superação das diferenças até mesmo nas formas de se crer; comunhão e interação entre pessoas para que estas possam conviver e desenvolver ajuda mútua em comunidades plurais, de muitos povos, línguas e culturas, vinculadas pelo projeto de agregação cristã, que cedo passou do discurso transcultural para se dar como imposição. Deste modo virou modo de vida de um grupo específico, com credo e normatização constitucional que excluem os demais e retornou pra tribo, com rei, realeza, palácio, feudo, coroa e tudo mais, só que com outros nomes. Não era pra ser assim, mas foi. E a pluralidade do viver num único espaço, apesar das diferenças, desembocou num sonho futuro. Na verdade foi para o céu, pois será preciso extirpar o mal, ou o pecado, quando o limite da pureza dará por fim a superação do preconceito, sem religiões, nem sangue; será o lugar da perfeição, para que tudo se faça como novo, belo e puro. Lá os legumes não ameaçam; nem o ouro, que vira estrada.

Pois é, os legumes de Paulo são necessários, diria até mesmo imprescindíveis. Não ameaçam o texto, nem a fé. Não é preciso forçar a interpretação para tenham outro significado. O texto sobreviveu até hoje sem você, ou eu, e vai ficar depois de nós, até que os tempos dos legumes se completem. Vamos deixar os legumes onde estão. Precisamos ser gratos a eles, e deles necessitamos, pois se não fosse assim, seríamos nutricionistas e não teólogos.

Em tempo: nada contra os nutricionistas.

Natanael Gabriel da Silva

domingo, 7 de fevereiro de 2016

AS MESMAS COISAS E OUTRAS



“Finalmente, irmãos meus, regozijai-vos no Senhor. Não me aborreço de escrever-vos as mesmas coisas, e é segurança para vós.” – Filipenses 3.1

“As mesmas coisas” é a repetição, pois a religião sempre volta ao fundante, o início onde tudo começa e legitima o discurso, seja mítico, seja ético, simbólico ou qualquer coisa a partir da qual a vida dependa para ser explicada e traçada. E aqui não é preciso recuperar o sentido de moralidade, sempre constante no discurso paulino, como o entroncamento da cultura judaica e grega, no já sedimentado judaísmo helênico, que os conservadores judaicos odiavam de pé-junto. Eu sei que, por via das dúvidas, ou dúvidas das vias, talvez mais a segunda que a primeira, a moralidade foi ganhando terreno, virou institucionalmente deolontológica na elaboração de Aquino, e o cristianismo, protestante ou católico, não importa, virou cartilha de comportamento.

Você pode achar que estou a fazer uma avaliação negativa da ética cristã, mas não é isso. Uma coisa é a chamada para a autenticidade de vida que emana de novas virtudes a partir da alma quando se encontra com o sagrado, outra é a verticalidade desde cima de um poder advindo de qualquer sistema religioso que seja e que obriga isso ou aquilo sobre este ou aquele, como se os que obrigam, não fossem vítimas do mesmo mal. Não tenho dúvidas de que foi esse o caminho desobstruído por Jesus, quando a mata da hipocrisia e os espinhos da religião torta invadiam o caminho, trancavam a passagem e faziam todos rastejarem por debaixo do farpo. Era o peso que fazia rebaixar, e a pessoa curvava mesmo. E se me perguntar, eu nunca vou entender o poder de cabresto que tem o imaginário religioso, pois o subordinado também tem rosto e se entrega ao encanto do que parece seguro, mas é abismo. Uns dizem que é alienação, outros que são amarras de traumas, individuais e coletivos, mas se há deuses, é porque há adoradores.

Só que não estou observando a ética cristã como negativa. Primeiro porque sou cristão, depois porque sou ocidental, e quer queira ou não, foi esta ética que me fez. Só que sou também existencial demais para acreditar na imposição e validade ética construída artificialmente. Porém, voltando à vaca fria, Paulo insistia no insistido, e começa logo pelo câncer, o mal das comunidades que se organizam e se transformam na cartilha do Reino (embora o próprio Paulo estivesse a escrever uma), e sabe o que vem depois no texto? Vem o cuidado com os cães, com os maus obreiros (que são os cães), com os da circuncisão (que são os cães e, por conseguinte, são os maus obreiros), os mesmos da religião dogmática, hipócrita, hierarquizada, julgadora, e que logo que entram querem o comando, o poder, o controle, o domínio e a subordinação, dos outros, é claro. Fuja desses caras, dizia Paulo e depois começa o discurso do que deveria ser, do deixar de ser quem é ou foi, independente de ter sido alguma coisa, e dar-se como servo porque este é o lugar do cristão-cidadão, espaço do despojamento, do ser menor, do estar consciente de quem é, mas para si, e entender e ser que tudo o que se tem, ou foi, é menor do que o ser pequeno. Vamos ser peregrinos, dizia Paulo, buscar o que se deve fazer para ser mais servo, daí ser servo do servo,e servo do servo do servo, depois se dar por inconformado por não ter alcançado o limite do fim, para baixo, direção inversa dos cães, que são os maus obreiros, os mesmos da circuncisão e imposição de um modelo de fascínio e cooptação na direção do para cima, onde tem tanta gente que quer chegar e vai chegando, mas só cabe um, e que pisa nos outros, os pisoteados que pisam nos debaixo fazendo-os de escada, até que a pirâmide cai, outro sobe, e a vida, ou a morte, continua. Só que ser servo aqui, é sair debaixo, mudar o sentido da vida, sinalizar novos valores, sair do sistema, libertar-se da doença que martiriza o humano, entrar no mundo paralelo como se saísse da vila, talvez daquele Reino, para outro, mas não fazer do outro um igual ao primeiro; e não foi essa a pisada falsa do cristianismo? Sai dessa, dizia Paulo. Você será um inovador tanto do que já foi inventado, como ao contrário do que aí está, consciente de si, mas esforçado no deixar de ser, para se tornar outro de si mesmo, que tenha significado, simplicidade e virtudes.

Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

É A VIDA. SÃO OS OLHOS.


"Não há temor de Deus diante de seus olhos”  - Romanos 3.18 

O que vê, não significa nada, porque o Senhor não está em nada; nada fez, nada o representa e o vazio se mostra num sem sentido. É como se o tudo fosse invisível, não há o belo, mas também não há o trágico, não há a contemplação, não há o sentimento de pertencimento, só solidão, o mergulho para dentro em busca dos mitos e símbolos que se encontram na profundidade inacessível da razão, na direção do antes do conceito e do pensamento, para o onde não se sabe o que poderia ser, pois emerge para a compreensão como se fosse qualquer coisa e acaba por se tornar o que já se desejava que fosse. Até Freud foi apanhado nesta armadilha, mas que tinha alguma coisa que se dava como se fosse vontade, parece que tinha. E quem vai saber? 

O que você vê, é o que vê? Ou o que vê é o que gostaria de ver? Ou será que você só vê o que faz sentido? Fazer sentido é encaixar o que está para além de si, com o que está a partir de si, ou vice-versa. Daí o passeio pela rua, e só vê os automóveis, quem é apaixonado por eles. Só vê casas, quem está a construir. O que não faz sentido é invisível. Então não se vê as pessoas, e quando são vistas, não têm rosto, e quando têm rosto não têm nome, e quando têm rosto e nome poderá ser um notado e percebido, merece uma conversa, uma lembrança e uma memória, daí naquele dia o sentido do que estava dentro, fez conexão com o sentido que estava fora, e os dois se uniram num universo como se fosse uma coisa só. Conversa vai, conversa vem, às vezes sem conteúdo em razão do tempo e distanciamento, mas valeu a pena ter visto aquele, ou aquela que jamais fora encontrado, ou encontrada, desde há muito. 

Então é assim, e quando não se vê Deus nas ruas, ele não está em lugar nenhum, não há conexão, nem sentido para uma conversa com um velho amigo. Não é que haja um dentro e outro fora, nem que haja um fora e outro dentro, a questão é a conexão e o sentido, porque Ele está tanto dentro, como fora, e um vazio dele, é um vazio de ausência de conexão e sentido. Olha, mas não vê. Ou não é importante, ou não tem rosto, ou não tem nome, ou não tem tudo isso junto ao mesmo tempo. Talvez seja ainda o esquecimento de quem se acostumou com o que não deveria ter se acostumado, e perdeu o espanto, quem sabe a paixão, ou ainda a multiplicação da miséria, que ao invés de fazer ver mais, ocasionou o ver menos, e desconectou porque a injustiça está do mesmo lado da moeda que faz afastar a esperança. Impera-se o caos, e caos é falta de sentido. 

Só que tudo isso não é o fim. Nem o começo. É apenas condição de se dar como ser humano e tem cura apenas como caminho, ou seja, não se cura para caminhar, mas purga-se pelo caminho, com ou sem sofrimento. É a conexão e que faz a emenda para a completude. O temor entra como profundidade de compreensão e sentido, e não o inverso. O que é isso? É a vida. São os olhos. 

Natanael Gabriel da Silva