“Finalmente, irmãos meus, regozijai-vos no
Senhor. Não me aborreço de escrever-vos as mesmas coisas, e é segurança para
vós.” – Filipenses 3.1
“As mesmas coisas” é a repetição, pois a
religião sempre volta ao fundante, o início onde tudo começa e legitima o
discurso, seja mítico, seja ético, simbólico ou qualquer coisa a partir da qual
a vida dependa para ser explicada e traçada. E aqui não é preciso recuperar o
sentido de moralidade, sempre constante no discurso paulino, como o
entroncamento da cultura judaica e grega, no já sedimentado judaísmo helênico,
que os conservadores judaicos odiavam de pé-junto. Eu sei que, por via das
dúvidas, ou dúvidas das vias, talvez mais a segunda que a primeira, a
moralidade foi ganhando terreno, virou institucionalmente deolontológica na elaboração
de Aquino, e o cristianismo, protestante ou católico, não importa, virou
cartilha de comportamento.
Você pode achar que estou a fazer uma
avaliação negativa da ética cristã, mas não é isso. Uma coisa é a chamada para
a autenticidade de vida que emana de novas virtudes a partir da alma quando se
encontra com o sagrado, outra é a verticalidade desde cima de um poder advindo de
qualquer sistema religioso que seja e que obriga isso ou aquilo sobre este ou
aquele, como se os que obrigam, não fossem vítimas do mesmo mal. Não tenho
dúvidas de que foi esse o caminho desobstruído por Jesus, quando a mata da
hipocrisia e os espinhos da religião torta invadiam o caminho, trancavam a
passagem e faziam todos rastejarem por debaixo do farpo. Era o peso que fazia
rebaixar, e a pessoa curvava mesmo. E se me perguntar, eu nunca vou entender o
poder de cabresto que tem o imaginário religioso, pois o subordinado também tem
rosto e se entrega ao encanto do que parece seguro, mas é abismo. Uns dizem que
é alienação, outros que são amarras de traumas, individuais e coletivos, mas se
há deuses, é porque há adoradores.
Só que não estou observando a ética cristã
como negativa. Primeiro porque sou cristão, depois porque sou ocidental, e quer
queira ou não, foi esta ética que me fez. Só que sou também existencial demais
para acreditar na imposição e validade ética construída artificialmente. Porém,
voltando à vaca fria, Paulo insistia no insistido, e começa logo pelo câncer, o
mal das comunidades que se organizam e se transformam na cartilha do Reino (embora
o próprio Paulo estivesse a escrever uma), e sabe o que vem depois no texto?
Vem o cuidado com os cães, com os maus obreiros (que são os cães), com os da
circuncisão (que são os cães e, por conseguinte, são os maus obreiros), os
mesmos da religião dogmática, hipócrita, hierarquizada, julgadora, e que logo
que entram querem o comando, o poder, o controle, o domínio e a subordinação,
dos outros, é claro. Fuja desses caras, dizia Paulo e depois começa o discurso
do que deveria ser, do deixar de ser quem é ou foi, independente de ter sido
alguma coisa, e dar-se como servo porque este é o lugar do cristão-cidadão,
espaço do despojamento, do ser menor, do estar consciente de quem é, mas para
si, e entender e ser que tudo o que se tem, ou foi, é menor do que o ser
pequeno. Vamos ser peregrinos, dizia Paulo, buscar o que se deve fazer para ser
mais servo, daí ser servo do servo,e servo do servo do servo, depois se dar por
inconformado por não ter alcançado o limite do fim, para baixo, direção inversa
dos cães, que são os maus obreiros, os mesmos da circuncisão e imposição de um
modelo de fascínio e cooptação na direção do para cima, onde tem tanta gente
que quer chegar e vai chegando, mas só cabe um, e que pisa nos outros, os
pisoteados que pisam nos debaixo fazendo-os de escada, até que a pirâmide cai,
outro sobe, e a vida, ou a morte, continua. Só que ser servo aqui, é sair
debaixo, mudar o sentido da vida, sinalizar novos valores, sair do sistema,
libertar-se da doença que martiriza o humano, entrar no mundo paralelo como se saísse
da vila, talvez daquele Reino, para outro, mas não fazer do outro um igual ao
primeiro; e não foi essa a pisada falsa do cristianismo? Sai dessa, dizia Paulo.
Você será um inovador tanto do que já foi inventado, como ao contrário do que
aí está, consciente de si, mas esforçado no deixar de ser, para se tornar outro
de si mesmo, que tenha significado, simplicidade e virtudes.
Natanael Gabriel da Silva
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