sábado, 27 de agosto de 2016

A ALEGRIA E O OUTRO


“Assim, decidi que não mais iria visitá-los com tristeza. Porque, se vos entristeço, quem então me alegra [...]?”

Não, o problema que Paulo tinha com a comunidade de Corinto, conheço. Independente do motivo que ocasionara a desconfiança, alegria gera alegria, parafraseando Gentileza, e o recebimento da alegria que retorna, só pode acontecer se um dia ela tiver ido. Coisa simples. O outro é sempre o eco da minha alegria. E a alegria, fundamentada na compreensão, se desloca, ora vagarosa, ora a escoar por um novo caminho, ora a despencar numa avalanche, como se só houvesse um para baixo. Não são metáforas suficientes, eu sei, mas a alegria que vai e retorna não segue os padrões da física, não respeita a lógica, e não tem sentido. Ela só descobre o caminho quando a trilha já tiver sido traçada. A alegria quando manifestada por meio de graça e afeto, impulsionada pela fraternidade, humildade e compreensão profunda do outro, descola-se com a força necessária para romper as muralhas do medo, do outro é claro, ou abismos, ou esconderijos de quem se oculta da vida. É isto mesmo, a alegria tem a capacidade de fazer curva, como a luz de Einstein, e toma o outro pelas costas e desprevenido, como se fosse traição, caminho certo do coração, e torna a vítima do amor um indefeso, desarma, desprotege, desencarna e ensina: a alegria é possível, apesar do traído pela curva ainda não saber o que ela significa. Não saber, vírgula, que não sabia, pois uma vez experimentada, a alegria muda e emudece. Pode demorar a acontecer. Ficará na memória de um algo em algum lugar que fora provocado por alguém cuja lembrança às vezes não dá conta em responder, e a alegria, que reside no inconceito, sem conteúdo ou evento, simplesmente acontece.

Daí Paulo olhou para comunidade, e o emaranhado que se tornara aquele relacionamento, cheio de dúvidas, desencontros, desajustes, e pensou que poderia perder o retorno da alegria, pois ela só poderia vir de lá. É claro que o ir em tristeza, que aparece no texto, pode ser lido como um abrandamento de discurso e não um simples sentimento. Talvez fosse sua nítida visão de que, o que estava ruim, poderia ficar pior, o conflito ampliado, o abismo aprofundado, a rigidez solidificada, e a ruptura emergindo de forma rasgada, e nem corte cirúrgico seria, mas o rompimento desfiado com base na força de separação. E quando se rompe, não há mais discurso, não tem mais estrada, não há mais caminho, nem ponte, e a alegria fica aprisionada, embotada, isolada, apodrece e morre, pois se há alguma coisa que não subsiste no singular, é a alegria, e é por esta razão que a alegria não é um substantivo singular feminino, mas é plural. Ela se dá sempre no duplo, porque vai e vem, vem e vai, continuamente, até que alguém decide colocar a pedra de Drummond no caminho, ou a parede sem porta de Pessoa, e a perda é de todos, por mais que se queira dizer isso ou aquilo, justificar assim ou assado, dizer que a culpa de quem fez implodir a ponte foi do outro, ou a causa é desconhecida, em razão de algum inexplicável fato, coisa do acaso, das condições impostas por motivo de força maior, o fato é que as explicações não são eficazes na construção de pontes. As explicações, são apenas explicações. Deste modo a alegria, sem dois humanos, em interpessoalidade, autenticidade e liberdade, evapora e provavelmente irá visitar os lugares da aceitação, pois não pode ficar perdida. Nada mais triste que uma alegria sem ponte, estrada, caminho, ladeira ou trilha, pois ela só pode ir, e retornar, impulsionada por uma pessoa; sua essência é a liberalidade, sua paixão é o sabor da felicidade, sempre abrigada pela compreensão e só cabe, de tão grande, quando a alma é larga o bastante para agasalhá-la.

Paulo voltaria a lamentar pela tristeza que fora causada e faz um esforço para separar o que ele chama de tristeza que vem de Deus e a tristeza gerada pela ação da cultura e existência. A tristeza vinda de Deus pode ser explicada pelo sofrimento do viver. Agora, a tristeza causada pelo humano, segundo Paulo, gera a morte (II Coríntios 6.10).

Ele tinha razão.


Natanael Gabriel da Silva, Luanda 27 de Agosto de 2016

sexta-feira, 12 de agosto de 2016

SOMBRAS

“Os quais servem de exemplo e sombra das coisas celestiais…” Hebreus 8.5

O complicado livro de Hebreus e que demorou para ser incluído entre os denominados textos sagrados, tem um autor que já falava do Eterno como aquele que tem uma reserva de sentido. Ninguém sabe se Hebreus é um tratado, uma carta ou um sermão. Não é possível afirmar quem seria o autor, nem quando teria sido escrito. Tem um judaísmo helênico como conteúdo, mas segue uma estrutura literária judaica. O livro faz um contrabando do imaginário religioso do Antigo Testamento, em seus ícones mais significatios e os supera em significado transformando tudo o que era, como se não fosse, ou tivesse sido apenas pela metade. Quando se pensava que o caminho do sagrado tinha sido vencido, lá vem Hebreus assumindo o discurso da sombra.  Do imaginário religioso judaico o autor de Hebreus retira a eugenia a partir de Abraão, o templo, os sacrifícios, a Lei, e por aí se vai, e os transpõe para a pessoalidade, ou corpo, como diria Paulo em Colosensses 2.17, do Cristo. Deste modo Hebreus transforma o que parecia real como sombra. Pensava-se que fosse real, histórico e encerrado, com liturgia e código, mas tudo então é transformado em rastros, no caso, sombras. Assim se dá o Cristo, que não é um templo, no sentido objetivo. Nem Lei, no sentido positivo, ou um rito no sentido estético. Cristo é pessoa, corpo, e não é possível um pertencimento, com e nele, por meio do imaginário superado e tido como sombra. Com outras palavras, Cristo, pessoa e corpo, interage com o outro por meio do relacionamento, aproximação, interiorização e pertencimento. Não mais seria por meio dos ritos, muito menos de templos. Ao pertencimento que torna o discípulo pertencido a Cristo, o vínculo é chamado de fé. É por esta razão que o capítulo da fé está em Hebreus. Esta é a substitutiva dos ícones do sagrado, que se tornaram sombra, e se realizaram na pessoa. Todavia, acaba o autor de Hebreus a penetrar em outra sombra, não limitada em sentido como a anterior, mas exatamente em razão de seu contrário, por ter um excesso de significado; também é sem a objetividade, como no caso das sombras que foram sucedidas, e igualmente possui múltiplas possibilidades interpretativas.

Conversar sobre teologia é dialogar sobre estas sombras. Todos igualmente procuramos, por meio da lógica de um discurso, identificar os traços de quem lá está. E é quem mesmo, por não ser coisa, ou um inventado. O segredo, e o que faz da teologia, teologia, é saber que Ele está lá. O Cristo é o próprio conteúdo, mas tem que ser sombra para que não haja aquele que O tenha sob domínio hermenêutico. Cada qual vai desenhando o contorno que vê e é capaz de afirmar com toda a segurança que um dia conseguiu limitar a sombra pelas palavras, juntou expressões, deu um corpo que parecia ser o da sombra e irá defender o encontro como o sublime como se tivesse sido o único possuidor e detentor do real sentido e conteúdo. Sairá fundando grupos, organizando sistemas. Os tais serão objetivos, terão endereço, liturgia, escala de comando com apóstolos e apostolas, comandará grupos com afirmações categóricas que dará mais verdade ao conteúdo das palavras que tentaram desvendar as sombras, e porque não dizer, a aprisionaram. Só que um dia este, o possuidor e detentor do discurso único e correto, seja singular ou coletivo, acaba. E o excesso de sentido, para a sobrevivência do imaginário que não pode ser contido, permanece, sai do domínio das centenárias comunidades e suas hierarquias e invadem as ruas, os becos, as casas dos pobres e lá se reconstrói como sentido a desafiar os grandes sistemas, mistura-se com credos e ritos que emergem sabe-se lá de onde, o que também é outra sombra, e que moram no cotidiano. O absoluto permanece como sagrado e se revela no ocultamento do mistério.

Nada me encanta mais que o excesso de sentido, do que não pode ser apreendido ou limitado. Longe do ceticismo, mas bem longe mesmo, me deleito na busca daquele onde a alma se dissolve, a partir do qual tenho aprendido o que é a vida. Saio das sombras e encontro o outro, ou desço do Sinai, ou da Transfiguração, e me deparo com o singular, a pessoa, o coletivo da convivência, onde deve espraiar a cidadania e a fraternidade. Isso porque trago da sombra o que busquei e encontrei. Pode ser chamado de amor, misericórdia, ou graça, pois a sombra, ao contrário do se pode pensar, não é vazia. Tem apenas um significado que não pode ser alcançado no seu sentido objetivo. Quem procura o sentido, fica por lá a procurar e afirmar que de fato encontrou, só falta melhorar o que já está compreendido, estudar o estudado, conceituar o conceituado, e juntar um novo juízo para ficar ainda mais claro. O barraco vai ficando cheio de detalhes, vírgulas, exegeses de textos e dos textos que estão por detrás dos textos. Lá o morador das palavras não descerá para as vilas e esquecerá o que de fato é um humano.

Sombras, mistério, paixão e graça são fontes, não objetos.

Natanael Gabriel da Silva