segunda-feira, 1 de setembro de 2014

O PESO DO ESPÍRITO



“Todos os caminhos do homem são limpos aos seus olhos, mas o Senhor pesa os espíritos” – Provérbios 16.2

Você também iria se encantar com o texto de Provérbios, se seguisse a trilha desenvolvida por G. von Rad. Uma coisa é você pensar que a literatura sapiencial do Antigo Testamento reforçava a Lei de Moisés, outra é compreendê-la como uma alternativa não dogmática, não fechada, não determinista, não punitiva, não controladora, não como proposta à confirmação de uma verdade, não como instrumento e legitimação para a ação do poder, não como regras rituais de adoração e contemplação, e por aí se vai. Daí a nossa preocupação com a lei judaica, e gostamos dela como se fôssemos Kant de tribo, pois ela nos traz o encerramento da conduta moral; também gostamos dos Salmos, pois eles nos trazem a notícia da submissão, devoção, grandiosidade de Deus (que, ao servi-LO, nos tornamos grandes também); e ainda o nosso fascínio pela profética, pois ela nos dá a condição do uso da palavra em nome de Deus. Agora a sabedoria, ora a sabedoria, a esquecida sabedoria, presente nos Provérbios, aparece como acessória, secundária e na melhor das hipóteses, faz parte da lei, a reforça, tornando-a mais cogente do que já é.

Pois não é. A sabedoria, no livro de Provérbios, tem vida própria, vem da vida para a vida, e quando um dito se der em contradição com a prática, simplesmente é refeito, pois a sua lógica não é a preocupação com a verdade, no sentido aristotélico: Diz G. von Rad: “Um sistema filosófico pode ser teoricamente pensado como completo e tão amplo que a verdade nele contida seja considerada adequada. Mas a sabedoria permanece sempre aberta, inacabada [...] Não pretende alcançar uma compreensão exclusiva da verdade e, quando admite uma correção, não prova, com isso, a falsidade da afirmação já feita; faz, simplesmente, alusão a outra ordem, que surge agora no campo visual. É um modo de pensar que comporta fragmentos de ordem a serem organizados.” Diz mais: “Essas máximas, saturadas de experiências, são como faróis, a indicar a direção a seguir no mar da vida”; “Mais do que o ensino, os provérbios visam a uma espécie de arte ou técnica de viver.” A filosofia procura sistemas fechados, a lei impõe e determina a forma de agir, assim como o dogma tenta o domínio do religioso e suas formas de expressão; a sistemática, como o próprio nome diz, cria o sistema que parece lógico, coerente, sincronizado, automático, inteiriço (no caso bíblico do Gênesis ao Apocalipse, apesar das enormes diferenças arrastadas pela geografia e tempo), mas a literatura sapiencial foge a tudo isso e se apresenta como o caminho da vida, construído a partir dela mesma, e tem o caráter de refazer o que está posto como verdade absoluta diante da dinâmica e das curvas que a existência apresenta. Isto é, há na sabedoria o excesso de sentido, presente na arte, no belo, no que não pode ser apreendido, como aquele que é dominado e esgotado. A lei, o dogma, a sistemática procuram exatamente esse domínio, mas para a sabedoria a vida não tem limites.

Daí o intérprete pega o “ensina o menino no caminho em que deve andar” e entende que o menino precisa é ser colocado e confrontado com o determinismo legalista, e se aprofunda na clausura do comando. Só que o dito proverbial fala de direcionamento, construção de um sentido, aprendizado que permite o aprender, e quando a própria vida se apresentar como nova, o sábio saberá lidar com ela, e se não souber, dará sentido a uma nova ferramenta de ajuste e que servirá para a geração seguinte. A sabedoria poderá até reformular a lei e os ritos, e não foi isso que Jesus fez? Fez de forma profética, isto é, utilizou o modo profético do discurso para restabelecer o conteúdo sapiencial, e basta ler o ouvistes o que foi dito antigos.

Assim o Senhor pesa (תּכן) os espíritos.  Não se pode esperar que o espírito seja portador de conceitos, e não precisa ser hegeliano pra afirmar isso. No espírito não entram leis, normas, regras, rituais ou palavras. No espírito só cabe sabedoria por meio de metáforas, símbolos, e até a vontade seria a sabedoria em movimento. Da sabedoria vem a vida, e por essa razão, ela vem de Deus.

Ficou com vontade de ler G. von Rad, não é mesmo?

Natanael Gabriel da Silva