sexta-feira, 27 de setembro de 2013

UMA RESPOSTA FORA DE TEMPO




Depois de terem comido, Jesus perguntou a Simão Pedro: Simão, filho de João, tu me amas mais do que estes? Ele respondeu: Sim, Senhor; tu sabes que te amo. Jesus lhe disse: Cuida dos meus cordeiros. - João 21.15

A pergunta pegou-me no contrapé: – Eu acho que, quando o Pastor prega, é Deus falando, é ou não é?

Pois é, se tivesse vindo de uma pessoa com pouca formação acadêmica, até entenderia. Talvez nem isso. Fiquei olhando meio sem resposta. Não que esta fosse difícil, mas quando a distância é muito grande, formada a partir de uma cultura e modo de vida que se espraia num coletivo, sempre é possível acreditar numa reconstrução, também coletiva, sobre o significado de ser cristão.

Poderia ter dito, contudo, que o papel do fundamentalismo, quando lido pelo viés do poder, fazia isso mesmo: o governo do medo. Deus falando era muita coisa pra mim, mas sem dúvida, quando assumido, se dá como quase inquestionável. É um contrabando, eu sei, do tempo dos reis de Israel que recebiam a legitimidade da religião que os mantinha com o poder de vida e morte sobre os súditos. Tem a ver também com as clarividências dos oráculos dos profetas descritos nos descaminhos daquele mesmo povo antigo. Ainda, é a contaminação de que, ser pastor, é ser o dono da palavra e do milagre, dominar a mídia e achar que é possível assumir o sentido de pastoreio sem o envolvimento com a vida. Nunca vi Jesus fazer isso, por mais que se diga que hoje, se Ele estivesse aqui, faria uso dos meios mais eficazes de comunicação. Isso é reduzir o pastoreio à palavra no seu sentido estrito; é se afastar da pessoalidade da voz como presença, quando esta tramitou para a letra e finalmente à ditadura do texto, tanto no Direito Positivo, quanto na religião.

Pois é, diria ao meu interlocutor que o pastor é só uma pessoa. Afirmaria entender que a ideia de “possessão” espiritual está mesmo presente em nosso imaginário tribal, e que mesmo que tal possessão se desse exclusivamente no cérebro, e não no corpo inteiro, como nas religiões afro-brasileiras, a situação seria a mesma. Diria apenas que um pastor é apenas um pastor. Um caminhante. Um andarilho que mostra o perigo que está aqui ou acolá, a indicar o caminho das fontes, o lugar dos rios, do verde e da esperança. Isto é, que o pastor é apenas uma ovelha dentre outras ovelhas. Não tem a vantagem do divino, nem o controle dele, por mais que se esconda por detrás das línguas originais, tão indispensáveis para legitimar o domínio do sagrado. Também não possui a chave que abre os milagres, o mistério e o sobrenatural, como fazem os gerentes das empresas exploradoras da fé. Nada disso. Um pastor é  um sonhador. Aquele que acredita nas bem-aventuranças como parte da vida e da coletividade, num mundo permeado de pacificadores preocupados com a liberdade e a vida. Tem mais. O pastor, ou os pastores, o que inclui todos os cristãos, é/são aqueles que, pelo pastoreio, agregam prostitutas, abandonados e marginais; são os inconformados com toda e qualquer injustiça, que acreditam que o evangelho, antes de estar num texto ou num discurso, se dá como busca do humano, suas contradições e lutas.

É, eu tinha muita coisa pra tentar mostrar ao meu interlocutor. Que o pastor não pastoreia texto, por exemplo, mas pessoas, e que a verdade não é apenas uma dedução da lógica formal, inclui o morrer pela vida, o chorar pela cidade, o condenar a religião manipuladora e opressora e que o pastor só encontra um cego à beira do caminho se caminhar com o povo, pelas estradas e praças; que o verdadeiro pastoreio está nas ruas, não no púlpito, nem na homilia ou no convencimento do discurso. Deus fala na vida, que vai além do texto, e foi justamente por conta disso que a palavra se fez carne, pessoa, gente comum do povo, e viveu entre nós. Quando o evangelho fica apenas no conceito e na cabeça, o resultado é a desconexão com a vida. Um evangelho reduzido ao conceitual: ninguém merece isso.

Diria tudo isso. Se dissesse, não seria compreendido, eu sei. Só que também não disse. O desejo era mostrar que pastoreio e compaixão significam outra coisa, além das celebrações e liturgias. Só que o tempo, com aquela comunidade, lamentavelmente, foi curto demais. Paciência. O pastor também precisa compreender o tempo do pastoreio. Faz parte.

Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

SABE DE ONDE DEUS VEIO?



Só sei que a fila não andava. Talvez por conta da lentidão do caixa, ou de falhas de equipamentos, ou os esquecimentos de senhas e números como ocorrência natural na fila da terceira idade. De qualquer modo, a fila não andava.

Depois de perceber que cansara os ouvintes do carrinho de trás, ela voltou-se para nós e, em razão do sorriso sempre dado a quem demonstra viver em solidão e é ávido/a por filas de supermercado só para conversar, destinou a contar histórias, com pouquíssimas interrupções, até porque precisava respirar. Só que a fila não andava. Jesuina lembrou-se do feijão. Feijão estratégico. Senti-me culpado por não ter me lembrado do feijão quando sempre me encontrava com um interlocutor/a que apresentava um relatório de espiritualidade e fé, curas e milagres, depois de saber que eu era pastor. Tem coisa que você precisa escutar quando não se lembra do feijão. O feijão veio, trazendo Jesuina, assim que depositei as coisas no balcão. Feijão demorado. Talvez até rápido, a considerar o plantio, colheita, limpeza e ensacamento.

Jesuina convivia, procurava ou se ocultava no feijão, quando a interlocutora, desejando uma reação à conversa que não havia, entrou pelo caminho da religião se identificando, o que não precisava, como pertencente a uma determinada comunidade. Daí me perguntou: - Sabe de onde Deus veio? Respondi que não, é claro. E ela continuou: - Deus veio de Temã, veio das províncias. Está escrito em Habacuque, reafirmou. E está mesmo: “Deus veio de Temã, o Santo veio do monte de Parã” (Habacuque 3.3).

Deus vindo de Temã, das províncias, deve ser um Deus humano que caminha com o povo e nasce no meio do imaginário da tribo. Um Deus da comunidade, da terra, do campo, aquele que estava sobre as águas e que num dado momento foi colocado lá em cima. O fato de estar “lá em cima”, não significa que veio de lá. Significa que está lá, só isso. Talvez tenha ido pra lá, não sei, depois de descansar sobre a face das águas e criar tudo. Que veio de Temã, veio. Se somente ao profeta e seu cântico litúrgico em forma de oração, também não sei. Ou ainda se tomado por amor e aproximação à vida e compromisso com a caminhada, como aquele que se deslocou de Temã pra ouvir o sofrimento de quem estava longe, também não sei. Se Temã é símbolo de um lugar como ponto de partida, lugar distante, como quem apontaria hoje para o imenso e insondável, e que propusera a percorrer por meio de uma viagem a existência até encontrar o adorador, também não sei. Sei que seria o Deus que continuaria sendo o que sempre foi, mesmo que faltasse tudo, mas disso Habacuque se ocuparia depois (3.17,18). Por ora, apenas um Deus que vive próximo, sem a imagem do Criador, do que está no céu e tem a terra como estrado; um Deus vindo da terra, com nome e endereço. Um Deus de Temã, como eu, que vim de um lugar e caminho para o futuro, e isso que me pareceu próximo, confortador e profundamente humano.

- Sabe de uma coisa? – continuou minha interlocutora sem saber que, na sua simplicidade, havia me dado o conforto da presença do divino. – Ei, moço sabe de alguma coisa? – insistiu quando me viu sorrir com os pensamentos que não poderia compreender. – Sabe onde fica Temã? Ninguém sabe. São os mistérios de Deus.

Se Temã for a terra de Edon (Jeremias 49.7), de onde viera um dos amigos de Jó (Jó 2.11), então o mistério é o outro, da tribo de Esaú, o famigerado abandonado como inimigo de Deus. Se Deus veio de lá, veio do exílio, da terra de ninguém, daquele que é considerado ninguém, mas de repente também recebe o cuidado de Deus, a ponto dele morar lá. Se lá foi o seu nascimento, e deve ter sido, então esse Deus que veio de Temã é misericordioso demais, abraça todo mundo e é capaz de deixar o lugar de onde veio, pra estar comigo e me dar esperança. Se ele veio de lá, então o estrangeiro sou eu, não o outro. O outro é, e eu sou a imagem e a sombra. Mesmo assim, Deus veio.

Ganhei o dia. E você, talvez, o texto.

Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O ASSUNTO DE DEUS




“Jesus estendeu a mão e o tocou, dizendo: Quero; sê purificado. No mesmo instante ele foi purificado da lepra.” Mateus 8.3

Texto curto. Curtíssimo. O encerramento do Sermão do Monte, aliás, longo Sermão do Monte, quase um livro dentro do livro (e acho que é) é sucedido pelo sopro do texto da cura, algo como uma pedra ou acidente depois da linha de chegada. Narrativa escrita numa penada só, como um suspiro. Você e eu, encantados com o Sermão, passamos por cima dele e vamos logo pro seguinte. Às vezes nem isso: a leitura fica no verso anterior e só será lido se há aquele propósito radical de se ler texto por texto, a partir do Gênesis até o Apocalipse. Talvez um dia alguém fale dele, mas certamente irá preferir outros tantos leprosos em outras narrativas onde o milagre se apresenta mais encorpado. Um texto curto, não chama a atenção nem de pregadores e propagandistas da fé, porque não pode ser dividido, não tem três pontos, acho que nem dois, e parece insuficiente pra estruturar a lógica aristotélica dos discursos de argumentação a buscar alguma verdade.

É que às vezes, a verdade, é mais importante que a pessoa, o curado, o submetido, aquele que se rendeu como pessoa diante de outra pessoa e, sem qualquer argumentação, fez o que a vida deve fazer quando se depara com aquele que se manifesta humanamente divino: ajoelhou-se. Não perguntou sobre o alcance da lei. Não quis saber se um dia o sol havia parado mesmo, como tinha sido a abertura do mar vermelho, nem quis saber como é que Jesus sabia ser quem era, sua missão e mistério. Não perguntou pelo futuro, vida e descanso eterno: fator que quase esgota as forças e os limites de trabalho do discurso do protestantismo histórico, como se o ser humano só pudesse ter sido o que é para isto: a luta pela eternidade. Não fez nada disso. Nem fez pergunta. Fez uma afirmação, e na afirmação a rendição. O “Senhor, se quiseres...” é demais. Entrega da vontade, submissão, contemplação, rendição, insuficiência, dor pela indignidade e que se dá como um entregue, limite das forças, cansaço, esgotamento ao extremo, nem desejou saber sobre o que acontecera no monte, não reclamou a demora, mas deu-se por excluído; não pudera fazer parte do grupo de privilegiados que escutaram as bem-aventuranças. O conteúdo de sua vida era só o sofrimento, não tinha nada a oferecer, nem perfume para lavar os pés de Jesus, que como ele, também era um andarilho. Não é dúvida, “se”, que hoje seria substituído pelo “eu determino” da religião de consumo. Foi apenas entrega, total e irrestrita. Ponto.

Ponto não, travessão, porque daí vem o “quero”. Também curto. Quero e quero liberar a graça e a humanização do banido e excluído. Não perguntou pela fé do que seria curado. Não questionou o passado do infeliz, nem recomendou qualquer comportamento ético. Nada sobre a razão de ter ficado daquele jeito, nem de onde era, o que fazia ao pé do monte, o que poderia entregar em troca, não pediu a vida dele, não o submeteu com o autoritarismo próprio de quem se dá em vantagem a um miserável, muito presente nos sistemas religiosos e suas esferas de poder, não prometeu curar todo mundo e não fez propaganda do milagre para angariar seguidores, não pediu moeda ou dízimo, não se reuniu com ele para cantar um hino e ter uma liturgia semelhante às religiões populares que dependem de uma forma de culto específico para a manifestação do sobrenatural. Só “quero” e se “quero”, acabou aqui. Acabado de um modo que ninguém precisa ficar sabendo, basta você mostrar ao sacerdote que o seu coração foi visitado pela graça de Deus, que não escolhe pessoas, e nem precisa de longo texto e argumentação pra confirmar o já sabido, que a vida é o assunto de Deus.

O Sermão do Monte agora, finalmente, estava concluído.

Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 3 de setembro de 2013

A VOZ DO PASTOREIO




“Seis dias depois, tomou Jesus consigo a Pedro, e a Tiago, e a João, seu irmão, e os conduziu em particular a um alto monte.” – Mateus 17.1

Uma é a fala do êxtase, outra da legitimidade, e a terceira, do pastoreio.

O êxtase, ah, o êxtase. O êxtase é bom, agradável aos olhos, enobrece a alma e dá ao coração a segurança de ser importante, tão importante, a ponto do sagrado se manifestar quase desnudo e por inteiro. Um sagrado com direito a uma resplandecência que só é cabível em aproximação com a inexplicável luz. Tudo branco, iluminado por força de um sagrado que se mostrava e se apresentava, não para ser compreendido, mas para se dar apenas como sagrado, para além da descrição e compreensão, para além do sentido, e tinha que ser num monte o lugar da habitação do divino.

Só que o êxtase também tem limite. O sagrado, que atrai e cativa, também é o sagrado que amedronta. Ele está na luz e também na nuvem. E a inesperada voz vinda de dentro do mistério apontou para outro mistério: “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo; escutai-o”. Nem a legitimação supera o medo que se tem do sagrado.

Escutar, mas escutar o quê? Escutar a caminhada e o pastoreio: “Levantai-vos e não tenhais medo”. É estavam mesmo de cabeça baixa, porque o êxtase no primeiro momento paralisa pela beleza. Viveriam ali pra sempre, só contemplando. Só que não dá pra separar, no sagrado, o que é fascinoso e o que é tremendo. Daí o segundo momento é o avesso do primeiro, tem a mesma intensidade, mas é ao contrário, pois afasta, diminui, amedronta, é grande demais, incompreensível demais, oculto demais, misterioso demais pra se estar diante dele; só olhando para o chão a partir do qual é possível ao ser humano medir-se e esconder-se do que não deseja ver.

Só que, entre o fascinoso e o tremendo, emerge o pastoreio, a voz de uma pessoa, companhia, presença e que sobreviveu ao sagrado, à luz, à voz, aos personagens que vão e retornam na construção do imaginário, eternizados num contínuo presente.Quem sobreviveu? Sobreviveu o pastor, é claro. Ele, então, se propõe acompanhar a caminhada da vida. Diferente do êxtase ou do sobrenatural ameaçador, o pastor é pessoa que faz companhia e desce do monte para, juntos, caminharmos a jornada da vida.

Acho que é isto: nem o êxtase, nem o insondável sagrado ameaçador, mas o pastoreio simples e diário de quem faz companhia e fala convidando, de maneira branda, sem ocultamento, com brilho, mas sem luz, apenas uma voz próxima e cheia de sentido: “Levantai-vos e não tenhais medo”. Daí dá até pra levantar os olhos e descer do monte.

Natanael Gabriel da Silva