quinta-feira, 10 de março de 2016

A TUA FÉ TE SALVOU

“Jesus lhe disse: Filha, a tua fé de salvou, vai-te em paz e fica livre desse teu mal.” – Marcos 5.34

Quando se faz uma análise da vida de Jesus e o discurso que se fez cultura, talvez fosse bom estudar o modo como ele encorajava as pessoas. Encorajar é encher o outro de coragem e vontade. É o contrário do desestimular ou conduzir o outro a perder o interesse. E Jesus fazia isso até mesmo quando não dizia nada, e este nada era cheio de sentido, como no silêncio diante de Pilatos.

A nossa conversa não é sobre Pilatos, mas sim a expressão “a tua fé te salvou”, e eu sei que a discussão tem sido no entorno do “salvou”, conteúdo, situação e tempo. O debate sobre  “tua fé” é mais pobre, porque  discute-se se “tua” aqui é o possuir antes, ou receber depois. Nos dois casos vira calvinismo contra arminianismo. Não se preocupe com estes termos. Tal encontro, ou desencontro teológico, faz perder o pronome possessivo, “tua”, como sendo elevação e sublimidade da alma. Ou seja, o perde-se a dimensão pedagógica do discurso, estimulador e restaurador. Numa linguagem simples: encorajador. “Tua” que remete a uma possibilidade, estabelece uma abertura para o resgate da dignidade, porque afinal a fé pertencia a ela, mulher, e a centralidade do discurso deixa de ser quem de fato praticou a cura; “tua” transfere o milagre para a beneficiada e dá a ela um possuir que a libera para a vida, a começar com o afastamento do mal, para depois construir o futuro.

“Tua” aqui é muita coisa para o resgate da vida, mas pouco quando o pronome é analisado sob o crivo da pretensa objetividade teológica. Busca-se, na teologia, o exato sentido de "tua", faz-se então a leitura das outras situações, noutros textos, que “tua” aparece e elabora-se uma interpretação por meio de uma aparente generalidade. "Tuas" e "teus" passam a ter um significado próprio, pois a repetição e ocorrência constroem a verdade e funda a necessária universalidade a partir da qual são declinadas todas os demais “tuas”. Fica fácil, mas também pobre.

Só que diga para mulher do texto que ela contribuiu para a interpretação mais adequada de um pronome que aparece em muitas narrativas. Diga isso pra mulher sem nome, sozinha e pobre numa sociedade machista e excludente. Uma mulher doente e que gastara tudo o que tinha com médicos. A mulher que não tinha nada e recebeu, de presente, salvação e “tua”. Diga a mesma coisa da expressão “salvou”, para ver se ela ficaria satisfeita com tal resposta. E nem adianta procurar no texto as intenções dela, o que pretendia, desejava, ou esperava, porque o texto não traz. A teologia dela era puramente intuitiva e ninguém lhe disse o que deveria fazer. Nem a mística do toque que ocasionou a cura pode responder, porque o que ela queria mesmo era a saúde, procurou, insistiu, persistiu e realizou. Só. Fez o que pensou que poderia fazer e depois foi curada. Escutou “a tua fé te salvou”, vá em frente porque boa parte do que foi feito dependeu também de você, continue assim. Daí a palavra “tua”  é transformada na força capaz de jogar a vida dela para o futuro e assim poderia ir em paz. E foi. Tudo lhe pertence, tanto “a tua fé te salvou”, como o “vai em paz”, porque é você quem vai e pode ir sem depender de mais nada, mesmo que isso não seja absolutamente verdade. Fica livre desse mal. O mal da doença e o de não ter futuro ou disposição para conquistá-lo. O mal, Jesus curou. "Tua" era o futuro.

Ela sabia que não era isso. Sabia desde há muito que não faria nada sozinha, que outros, também limitados, não dariam conta em ajudá-la. Ela não se bastava e “a tua fé te salvou” não soou como uma afirmação absoluta. Sabia da própria limitação. Só que precisava escutar “a tua fé te salvou” para ser participante e construtora da própria existência e confiança para o retornar ao estranho e violento mundo.  Jesus deu-lhe a cura, a restauração da dignidade e o presente da participação na construção de si, do que era e seria, e foi por meio de um pronome, "tua", e pode ir porque levará consigo tanto a saúde quanto a disposição de tornar-se (eu quase completei a frase com “pessoa”, mas Carl Rogers acharia pouco original).

“A tua fé te salvou”, foi mais que teologia e está além da análise de um texto. Jesus a impulsionou. Revigorada, a fé ficou sendo dela, pra sempre. Só e apenas dela.


Natanael Gabriel da Silva