terça-feira, 25 de novembro de 2014

ANTES DO MAL




Perece o justo, e não há quem se impressione com isso; e os homens piedosos são arrebatados sem que alguém considere nesse fato; pois o justo é levado antes que venha o mal, e entra na paz; descansam no seu leito os que andam em retidão. – Isaías 57.1,2

A fé é uma questão existencial. Explica-se pela vida, não por suas possibilidades ou contradições. Conforme Isaías, o mal deixa de ser mal, não porque é modificado, mas diante da situação de não ser possível vencê-lo, é esvaziado pela morte. O mal se perde na condição de não ter o que fazer e ofender. Perde a sua força e eficácia, torna-se inútil; assim a proteção do divino não é necessariamente a reversão do mal em bem, (o que naturalmente o crer da existência preferiria), mas o cuidado do justo, para que este tenha uma condição de pertença plena à felicidade. Morre o justo antes do mal para que o descanso seja absoluto e completo.

Daí a percepção de Isaías e o perguntar pelo sentido da morte do justo. Qualquer pessoa (do que faço parte) problematizaria afirmando que há uma incompatibilidade de justiça: ou o justo não era justo, ou a justiça de Deus não é justa. Faço isso todos os dias diante do mal que aflige a vida, por conta de coisas que sequer podem ser controladas, experimentadas: Não haveria outro modo? As coisas não deveriam ser diferentes? O peso da luta da vida não deveria arrefecer diante da trajetória interrompida pela tragédia? Pergunto isso porque não sou Isaías. Ele preserva tanto o justo, como a justiça do divino; eleva a possibilidade do crer superando a contradição: o perder a vida para que o descanso seja completo, uma ação que, certamente poderia não ter a aprovação do vitimado, mas que o coloca diante de um cuidado que o preserva do futuro.

Antes do mal, a despedida. Incompreensível despedida, inexplicável, inconcebível, inesgotável nos questionamentos sem possibilidade de respostas. Segue-se o exagero da fé, do crer no que não pode ser digno de crédito, de transitar pelas possibilidades sem qualquer grau de razoabilidade, pelo que não pode ser resolvido porque o fora antes, antecipado e confiado por depósito futuro. Exagero que só a metáfora da morte pode abarcar e ensinar o que deveria ser aprendido: o mal ainda está por vir, e perguntar pela morte não tem a ver com o destino do recolhido, mas sim com a vida que precisa ser reinventada. Ao perguntar pelo vitimado, o coloco diante do sagrado como se eu não fizesse parte de sua tragédia. Isto é, neste caso, a fé passa a ser uma questão substancial entre o justo e o Santo, e ao mesmo tempo me afasta da condição de agente preservador do mal, este como cultura e modo de vida.

Ora, assim não me dou como agente do mal e então fico a elaborar sobre o incompreensível, escondido e desconhecido; incompreensível justiça que não preserva o justo tirando-lhe a vida; incompreensível antecipação rigorosa da despedida e dor. Caminho pelos meandros da impossibilidade de resposta, sem qualquer objetividade ou fundamento que explique, ainda que precariamente, algum caminho. Deixo de ver o mal como aquele que também provoco, perco a sua dimensão cultural e social; fico tão somente indagando sobre a vítima e o Santo que o deveria ter preservado. Duvido de um e de outro, nunca de mim.

Isaías diz que o mal não está na despedida do justo. Está na desistência de se lutar contra a maldade coletivamente instalada. A resposta, à pergunta que não foi feita, deveria ser uma confissão: Há tanta injustiça operada por minhas mãos, tanta miséria, descaminho e falta de esperança, que aprove ao Senhor dar descanso a um justo que não poderia conviver com a minha maldade. Assim, o problema não é de Deus, nem do justo que se foi, mas meu e da sociedade que ajudei a construir sob o domínio da injustiça, opressão e transgressão; das quais sou causa e agente.

Aqui nasce o sentido de ser sal da terra e luz do mundo.

Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 4 de novembro de 2014

PARA ALÉM DO VÉU




“Nós não fazemos como Moisés, que cobria o rosto com um véu para que os israelitas não pudessem ver que o seu brilho estava desaparecendo.” 2 Coríntios 3.13

Vou tomar o texto como metáfora. Seria por demais interessante se, assumido literalmente, tivesse Paulo entendido que Moisés manipulara a religião. Uma religião manipuladora e que esconde o divino, não é apenas um desvio interpretativo, mas uma fatalidade, pois com isso o ser humano perde  a única possibilidade que tem para encontrar-se com o Sagrado.

Acho que a religião deveria ser eternamente grata às metáforas, pois estas podem ser tanto fuga, como superação de sentido. Serve dos dois modos: para dizer que o dito, não é o que foi dito, ou, para reafirmar que o sentido do dito é mais profundo que o próprio dito. Então, como conservador, vou tomar o texto como metáfora, salvar o texto e compreender que Moisés aqui significa a totalidade da religião pervertida; entender que, quem escondera o desaparecimento do primeiro brilho, fora a religião institucionalizada. Uma metáfora que, diga-se de passagem, fora pensada a partir do evento do Horebe, quando Moisés descera transfigurado do monte em razão do encontro com o divino. Brilho que durou pouco, e quando veio o Templo e sua religião formal, Paulo juntou os dois e somou o brilho de Moisés com o véu do Templo, o que acabou por resultar no ocultamento do mistério e da beleza do primeiro evento.

Daí concordo com Vattimo: a Igreja (não a que caminhava com Jesus, como a comunidade do Sermão do Monte, mas uma outra que não se sabe nem de onde veio) estragou o cristianismo. Então, se faço parte dela, eu estraguei o cristianismo. O transformei em atos de celebração e culto, e me esqueci da vida. Entrei pelas portas de um espaço dito como sagrado e disse que Deus estava ali, que o mundo estava do lado de fora, que Deus precisava de mim para que eu cantasse e falasse  o tempo todo, seguindo uma liturgia como sagrada, em sua sequência, disposição e construção; transformei a oração, que deveria ser vida e convivência com a pessoalidade de Deus, num produto de consumo. Fiz da igreja, que não era igreja, uma empresa para angariar fundos e enriquecer líderes e quando os pregadores midiáticos apareceram, achei que eu não era responsável por eles, o que não é verdade. Esqueci-me de Jesus. Então o véu foi engrossando, deu-se quase como impermeável e Jesus acabou mesmo do lado de fora; o Jesus pobre, da Palestina, que incluía prostitutas no Reino, conversava com gente da pior espécie, e, enquanto estavam os adoradores a desfrutar das festas nacionais, como num dia de páscoa, eu fui pro Templo e me esqueci do Jesus que fora visitar os miseráveis do poço, a curar doentes e cuidar de pobres que nunca, jamais, poderiam dar qualquer retorno. Depois criei igrejas, que não eram igrejas, aos montes. De todos os modos e nomes. Inventei assim, um cristianismo, que nunca foi cristianismo, virou um sistema de poder abstrato, que ninguém sabe onde está, e quem responde, não responde, porque depois deixa de estar lá e fica pra outro assumir, como se fosse um bem público.

Transformei a igreja num inventário de declarações. Não há de ver que eu me esqueci da polifonia do discurso religioso! Que ingenuidade! Como não sou Bach, as muitas vozes ficaram como melodias isoladas e foi aí que eu optei por juntar as ideias num único lugar, composto pela expressão democrática da coletividade, e surgiu então o que seria tecnicamente chamado de Declaração de Fé, como se a fé não fosse declarada por meio da vida. Fé conceitual: ninguém merece. Ficou Declaração de Fé mesmo, coisa que ninguém sabe o que é, nem para que serve, pois a polifonia hermenêutica não se curva à imposição forçada de controle das ideias, nem mesmo pelo coletivo, e foi assim que virou documento, só documento. É que eu precisava disso pra justificar o fato de achar que todas as demais expressões religiosas estavam erradas, que eu tinha uma identidade própria, histórica, e teve um momento que eu achei ter vindo e nascido de João Batista, o que me tornava anterior a Jesus, ou ainda,  mais cristão do que o próprio Cristo (?). Se for assim, tenho então a primazia em dizer o que é certo ou errado a todos os outros. Ora, se a hermenêutica é polifônica, achei que poderia cantar sozinho todas as vozes, e, se ninguém compreende o texto como eu, sinto muito, sou o único a estar certo, e se você desejar estar certo também, será melhor submeter-se a mim.

Daí vem a questão: afinal, o que fiz do Cristo e sua mensagem de Graça a restaurar a dignidade humana? Onde está o Cristo da profundidade da alma? O Cristo da esperança, do perdão e da misericórdia? O Cristo do silêncio, da solitude, da inclusão e da solidariedade?

Não sei se sei. Talvez para além do véu.

Natanael Gabriel da Silva