Perece o justo, e não há quem se impressione com isso; e os
homens piedosos são arrebatados sem que alguém considere nesse fato; pois o
justo é levado antes que venha o mal, e entra na paz; descansam no seu leito os
que andam em retidão. – Isaías 57.1,2
A fé é uma questão existencial. Explica-se pela vida, não
por suas possibilidades ou contradições. Conforme Isaías, o mal deixa de ser
mal, não porque é modificado, mas diante da situação de não ser possível
vencê-lo, é esvaziado pela morte. O mal se perde na condição de não ter o que
fazer e ofender. Perde a sua força e eficácia, torna-se inútil; assim a proteção
do divino não é necessariamente a reversão do mal em bem, (o que naturalmente o crer da
existência preferiria), mas o cuidado do justo, para que este tenha uma
condição de pertença plena à felicidade. Morre o justo antes do mal para que o descanso
seja absoluto e completo.
Daí a percepção de Isaías e o perguntar pelo sentido da morte
do justo. Qualquer pessoa (do que faço parte) problematizaria afirmando que há
uma incompatibilidade de justiça: ou o justo não era justo, ou a justiça de
Deus não é justa. Faço isso todos os dias diante do mal que aflige a vida, por
conta de coisas que sequer podem ser controladas, experimentadas: Não
haveria outro modo? As coisas não deveriam ser diferentes? O peso da
luta da vida não deveria arrefecer diante da trajetória interrompida pela
tragédia? Pergunto isso porque não sou Isaías. Ele preserva tanto o justo, como a
justiça do divino; eleva a possibilidade do crer superando a contradição: o
perder a vida para que o descanso seja completo, uma ação que, certamente
poderia não ter a aprovação do vitimado, mas que o coloca diante de um cuidado
que o preserva do futuro.
Antes do mal, a despedida. Incompreensível despedida,
inexplicável, inconcebível, inesgotável nos questionamentos sem possibilidade
de respostas. Segue-se o exagero da fé, do crer no que não pode ser digno de
crédito, de transitar pelas possibilidades sem qualquer grau de razoabilidade,
pelo que não pode ser resolvido porque o fora antes, antecipado e confiado por
depósito futuro. Exagero que só a metáfora da morte pode abarcar e ensinar o
que deveria ser aprendido: o mal ainda está por vir, e perguntar pela morte não
tem a ver com o destino do recolhido, mas sim com a vida que precisa ser
reinventada. Ao perguntar pelo vitimado, o coloco diante do sagrado como se eu
não fizesse parte de sua tragédia. Isto é, neste caso, a fé passa a ser uma questão substancial
entre o justo e o Santo, e ao mesmo tempo me afasta da condição de agente
preservador do mal, este como cultura e modo de vida.
Ora, assim não me dou como agente do mal e então fico a
elaborar sobre o incompreensível, escondido e desconhecido; incompreensível
justiça que não preserva o justo tirando-lhe a vida; incompreensível
antecipação rigorosa da despedida e dor. Caminho pelos meandros da
impossibilidade de resposta, sem qualquer objetividade ou fundamento que
explique, ainda que precariamente, algum caminho. Deixo de ver o mal como
aquele que também provoco, perco a sua dimensão cultural e social; fico tão
somente indagando sobre a vítima e o Santo que o deveria ter preservado. Duvido
de um e de outro, nunca de mim.
Isaías diz que o mal não está na despedida do justo. Está
na desistência de se lutar contra a maldade coletivamente instalada. A resposta, à pergunta que não foi feita, deveria ser uma confissão: Há tanta injustiça operada por minhas mãos, tanta
miséria, descaminho e falta de esperança, que aprove ao Senhor dar descanso a
um justo que não poderia conviver com a minha maldade. Assim, o problema não é de
Deus, nem do justo que se foi, mas meu e da sociedade que ajudei a construir
sob o domínio da injustiça, opressão e transgressão; das quais sou causa e agente.
Aqui nasce o sentido de ser sal da terra e luz do mundo.
Natanael Gabriel da Silva