sábado, 18 de outubro de 2014

JESUS E OS VISITANTES




“Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte, e como se assentasse, aproximaram-se os seus discípulos; e ele passou a ensiná-los, dizendo:” Mateus 5.1,2

É, você está certo: é a abertura do Sermão do Monte.

Daí um amigo meu passou seis meses, dominicalmente, frequentando a mesma comunidade. Com a polida educação, só reservada como formalidade política, era apresentado como visitante em todas as reuniões, fosse pela manhã, fosse à noite, encontros semanais, e por aí se vai. Um visitante é um excluído, e é aqui que começamos a conversar.

Talvez você tivesse que frequentar uma comunidade batista, não todas, para ter a doce experiência de se levantar ante os olhares de quem nunca o/a viu, dizer o nome, nem sempre compreendido por quem lhe pergunta, mencionar de onde veio, para onde vai, numa síndrome agariana, e também desértica, no ato solitário de falar de si mesmo, pra entender o drama do anonimato rompido. Disso, a mensagem comunicada pela educação parlamentar é a de que você, definitivamente, só está ali, sem pertencimento.

A boa notícia é que Jesus nunca apresentou os visitantes. Nunca disse que este ou aquele fazia parte do número impreciso e indefinido de discípulos. Até dos apóstolos já se falou muito, se não seriam apenas o imaginário das doze tribos sendo restaurado. Doze que viraram treze, depois catorze, cujas listagens são diferentes e haja esforço exegético pra dizer que tal nome significa este nome, e fazer da subtração, soma. Só que isso não é difícil, pois quando se quer, qualquer conta dá certo. Vale até juntar Daniel com Mateus e Apocalipse, para então se tentar fazer o traçado, ainda que mal feito e inexplicável, do chamado final dos tempos.

Então, dizia antes do devaneio, Jesus nunca apresentou os visitantes. E tem gente que vai reafirmar, por questão até numérica, que o Sermão do Monte não era para todos, e Jesus nunca conseguiria falar a uma multidão sem que o som se perdesse. É claro que vai se esquecer de que o texto é sobre religião, e quando se trata de religião meu amigo, minha amiga, não há traçado ou limite, nem (ou muito menos) no texto, porque é a redação do exagero, do superlativo, do indescritível, metáforas e sonhos. Então Jesus, olhou pra multidão, incluiu a todos e todas, e discursou sobre a felicidade suprema. Falou da humildade, lágrimas, mansidão, dos vitimados/as pela injustiça, fome, da misericórdia, exatamente a quem deveria ser alvo dela, da pureza profunda das intenções, lá onde a alma é regida e nasce a existência humana, de quem anseia pela paz, perseguição, e foi por este caminho, incluindo a todos e todas como pertencidos/as, como parte, ouvintes e cristianizados/as pelo discurso, não pelos rituais. Falou aos pertencidos e agregados pelo discurso, não mencionou salvação no sentido metafísico e eterno, porque não havia ainda o que falar sobre isso, e fez o traçado da sabedoria da vida como quem coloca com a mão uma única semente exatamente onde deveria ser plantada. A comunidade de Jesus era o mundo.

O meu amigo? A exclusão, o excluiu.

Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O INÍCIO DA CIDADANIA



“O meu mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a sua vida pelos amigos.” – João 15.12,13

Daí o clericalismo tomou a recomendação, a transformou numa verdade eclesiástica e a circunscreveu numa doutrina. Deste modo o texto foi marcado pela fatalidade, e nunca mais foi possível compreender o seu tamanho. Ficou curto, doméstico demais, enclausurado na discussão de sua dimensão. Amar até quando? Até onde? Em que sentido? E em razão de quê?

Não, o texto não é doméstico. É aberto para o mundo, o que inclui todos. Também se trata de um mandamento que manda amar, como um absurdo, pois nenhum amor pode surgir por meio de qualquer ordem determinante. Só que mandamento aqui tem outro sentido. É sem lei, sem comando, determinação ou imposição; é mandamento como princípio natural de relação, um liame, fluxo aberto entre a videira e os ramos, seiva corrente e ininterrupta, essência de pertencimento e inclusão, virtude emanada e inconsciente e que vem pelas veias da vida.  Daí o mandamento, que não é mandamento, se torna consciente e voluntário, porque não suprime a decisão; se dá como vocação e provocação de tudo o que pode ser mais importante e objeto principal do ser pessoa, o simplesmente amar, sempre amar, até onde o mundo alcança, na direção do outro, que simplesmente pode ser chamado de amigo, isto é, tornado amigo por opção, e ainda, amar em razão de ser este o único caminho para a fraternidade e cidadania. Não é a comunidade, reduzida à igreja, se amando, como se os doze indicassem estrutura eclesiástica. Os doze são expressão de um novo tempo para o mundo. Mundo esse dado neles como potência e ato, ou, ato e potência. Assim é inaugurado o que poderia ser chamado de tempo de amar. Todo o amor que a vivência fraterna precisaria, do qual a igreja nunca se aproximou, nem para si, porque se tornou em gueto de discurso de amor, que depois foi reduzido em encontros de celebração, antes passando pela diminuição da sistematização, na busca do sentido do que seria este amor, e como toda sistematização parcial, concluiu que este amor, primeiramente, não pode ser amplo demais pra incluir todo o mundo, e tem que começar exclusivamente pela comunidade de fé. Agora, como a comunidade de fé nunca conseguiu a vivência plena deste amor, morreu então o amor entre as paredes dos templos, metamorfoseado em discurso de salvação e espera do céu, maquiado no ensino e pregação, promessa, sonho, conceito, até ser violentamente reduzido a uma área de conhecimento, na qual basta identificar que há o amor ágape, o fraterno, o erótico, que cada um significa uma coisa, como se tudo não fizesse parte do humano, e vamos conhecer a trilogia do amor, métodos de apresentação, formas, mas principalmente os limites: o amor vai até aqui. E a exegese se esbaldou, e se você não sabe grego, não pode saber nada sobre o amor, sinto muito. Então o amor adoeceu no limite do conceituado e do entendimento, deixou de ser sabedoria e se transformou em coisa; virou lei e deixou de ser virtude.

Então o mandamento, que vos ameis uns aos outros, é uma mensagem para o mundo, e o lavrador é o Pai. O ramo ligado à fonte do amor dá frutos de amor, muitos frutos, em pencas, pendem os galhos a ponto de fazê-los alcançar o chão. E se você me perguntar onde está a acefalia do mundo, que decepa ao vivo inocentes em nome da justiça, como um teatro da desumanidade sem limite, sob o discurso da legitimidade da violência do sagrado, eu diria que o mundo, hoje e sempre, é um deserto do amai-vos uns aos outros. E é aqui que começa o que podemos chamar de cidadania: a vida dada na vida do próximo.

Natanael Gabriel da Silva