segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

SIMEÃO, PROFETA LIBERAL




“Havia em Jerusalém um homem chamado Simeão; homem este justo e piedoso que esperava a consolação de Israel; e o Espírito Santo estava sobre ele.” – Lucas 2.25

Eu sei que você já ouvir falar de Teologia Liberal, mas profecia liberal, acho que é a primeira vez. Pois é, Simeão foi mesmo. Ele tomou o menino Jesus nos braços e disse, agora posso morrer em paz, porque a salvação está aqui e a luz chegou para mundo inteiro, e mundo inteiro para ele não era uma questão geográfica, mas étnica, mais precisamente, o rompimento da cultura de gueto havida em Israel de que Deus era só pra eles. Tem gente que acha ainda isso e religiões, denominações, seitas como se fala de uma em relação à outra pra diminuir a legitimidade, ainda se dizem portadoras da última condição e possibilidade da posse do divino, Deus nos pertence, com exclusividade, e para ser redundante, exclusividade única, com fórmulas de interpretação, celebração e determinação do que seria ou não correto quanto ao descortinamento do sagrado.

Daí veio Simeão, tomou a criança e disse cantando, a salmodiar, a musicalizar, e poetou nos dois sentidos da profundidade: uma em nome do Espírito Santo que não podia ser controlado pela Lei ou pelas regras e se dava como pertencente ao ensimesmamento profético do imaginário religioso, outra na expressão da arte literária, como letrista e músico, na exteriorização da incompreensível subjetividade que deveria ser traduzida na beleza da adoração, e não podia ser de outro modo, porque a salvação ali, literalmente em suas mãos, iria libertar até Deus como propriedade do mundo judaico. Iria libertar também a gentalha, mais conhecida à época como gentios, só que nesse caso seria um libertar pra dentro, chamado de inclusão. Libertaria também gente que, como ele, aguardava os novos tempos. Libertaria os oprimidos, a religião do templo e do sacerdócio, e daria à geografia do sagrado o tamanho do cosmos. Só não libertaria a mãe da dor da perda do filho, que feito espada, penetraria sem matar, mas matava, pois aquele que nascia já vinha acompanhado da morte anunciada, porque sofrimento assim, só cura, sofrendo.

É, Simeão é o profeta liberal cheio de contradições, como toda teologia gestada na liberdade, libertação e liberalidade. Ao apanhar a vida nas mãos, também dela se despediu como se abraçasse a morte em celebração (v. 29); depois também sabia que toda liberdade implica em resistência e luta, incompreensão e perseguição por parte do próprio mundo religioso, (v. 34). E de fato foi o que aconteceu. E a liberdade entrou para a história em forma de gente, profecia, celebração e cantoria. 

E olha, era só o começo.

Natanael Gabriel da Silva


segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O PARADOXO DO NATAL: Nascimento e Morte, Morte e Nascimento




“Vendo-se iludido pelos magos, enfureceu-se Herodes grandemente e mandou matar todos os meninos de Belém e de todos os seus arredores, de dois anos para baixo, conforme o tempo do qual com precisa se informara dos magos.” – Mateus 2.16

A beleza da narrativa sobrenatural sobre os eventos do nascimento de Jesus quase escondem a tragédia das crianças vitimadas por Herodes. O paradoxo do Natal, nascimento e morte, morte e nascimento, não deve ser visto como uma coisa oposta a outra, embora esta ideia não esteja definitivamente afastada. É uma questão de pano de fundo onde a malignidade atinge um grau de bestialidade tal que vai além do limite da possibilidade de compreensão.  Ao mesmo tempo, a poesia da vida que nascia, em forma de liberdade e perdão, também extrapolava a possibilidade do entendimento humano no inconceito do que é chamado de Graça. Daí você me pergunta, onde afinal estava Deus que não fez nada em defesa dos inocentes, e daí eu também respondo, que a malignidade do coração humano aparece no texto e na história como registro superlativo, a ponto de fazer o que fez, sem dó ou piedade, dando assim vazão à perdição irrecuperável da condição humana. A morte dos inocentes foi, antes de tudo, um exagero e aberração da falta de sentido.

O nascimento de Jesus é ameaçador e deflagra a morte por conta do inexplicável medo que tomara conta de Herodes. Não iria acontecer nada em seu tempo. Herodes não viveria o bastante pra ver o que significaria a estrela, o menino e Belém. Nada sabia sobre profecias, promessas e salvação. Só entendia de morte e impiedade absoluta. Coisas do coração humano, que geraram pavor e dor, consternação e impotência dos oprimidos, e o lamento espraiou-se sem fim (Mateus 2.17,18), choro e perda inconsolável. Tudo isso fazia a luz de Jesus ser mais luz, o perdão, mais perdão ainda, e a necessidade de misericórdia, mais misericordiosa ainda, e a esperança, mais esperançosa ainda. Tudo no superlativo, pois só um superlativo de vida é capaz de enfrentar o superlativo da morte e da miséria humana; superá-lo e assim tornar o paradoxo apenas aparente, mas sem eliminar a dor da perda, nem ocultar a tragédia humana, quando esta acredita ter o poder e a capacidade de controlar a história.

E foi neste contexto que Jesus nasceu.

Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

GRAÇAS TE DOU, Ó PAI



“Naquele tempo, respondendo Jesus, disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e instruídos e as revelaste aos pequeninos.” Mateus 11.25

Tinha que começar com gratidão, porque afinal, nem tudo estava perdido. Os pequeninos tinham acesso à incompreensível mensagem de perdão e liberdade, coisas que nem sempre os sistemas religiosos conheciam ou conhecem. Daí Jesus agradece. Um pouco porque sabia que o traçado estava claro, mas certamente outro pouco, ou outro muito, porque a trilha havia sido aberta por um caminho absolutamente novo. Isto é, quando se começa com o discurso pela busca da verdade, com o domínio do sagrado e imposição de infinitas regras de conduta, o resultado será sempre o mesmo: cansaço e opressão. Foi assim com o judaísmo, foi de novo com o cristianismo medieval e de novo com o protestantismo histórico, e não dá nem pra falar dos mercadores da fé. Tem sempre alguém querendo segurar nas mãos o modo certo, único/exclusivo de se abraçar a graça e a liberdade; uns pela hierarquia, outros pelo texto, outros ainda pelo controle do sobrenatural. Esse alguém, que pode ser uma pessoa ou um colegiado, também será o mesmo que incluirá, ou não, quem segue e obedece os ditames das regras. Cansaço, opressão, nada mais que isto e o cristianismo, deste modo, deixa de ser cristianismo.

Então dizia Jesus: há esperança. O discurso agora vai por outro caminho e, ao fazer a curva, pegou na passagem e incluiu o marginal, aquele que estava fora, tanto por ter sido deliberadamente excluído, como por não compreender que determinadas coisas deveriam fazer parte da vida cristã, de uma maneira quase óbvia, mas estão ausentes. E o caminho que faz curva é o da pessoalidade: “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai; e ninguém conhece o Filho, senão o Pai; e ninguém conhece o Pai, senão o Filho...” E o que é pessoalidade? Pessoalidade é apenas o estar junto, não importam os sábados, as liturgias, teologias sistemáticas, ou qualquer outra coisa. Estar junto é estar junto: pessoa e presença.

Daí vem o alívio. Não vem necessariamente o descanso, como quem se senta pra esperar a onda passar, reunir forças e novamente sair para o enfrentamento. Nada disso. Apenas a total transferência da opressão e do cansaço, substituindo toda essa carga pela graça, liberdade, pessoalidade, alívio, inclusão, pertencimento, refrigério e esvaziamento completo da culpa. E tudo isso é tão inédito, novo, singular e belo, que não começa pela solução, nem pelo convite: começa com gratidão. E gratidão grande, diante da condição de paternidade e criação. Então, o convite, não é convite, é antes de tudo uma oração, e que não pediu nada, só agradeceu.



Natanael Gabriel da Silva


terça-feira, 3 de dezembro de 2013

CARTA ABERTA A UM AMIGO PASTOR



 “E vos darei pastores segundo o meu coração, que vos apascentem com ciência e com inteligência” – Jeremias 3.15


Pois é, estava pensando e orando por você, quando, nesta manhã decidi responder a uma pergunta que você não me fez. O texto acima foi o que me veio, despertado, sem que o tivesse pedido ou programado. Texto fácil, mas ao mesmo tempo completo e pra entendê-lo é necessário conhecer um pouco o coração de Deus, e é aqui que a coisa complica.

Não conheço o coração de Deus, nem mesmo o meu. Às vezes me sinto forasteiro em mim mesmo, a fazer leituras e esboços de possibilidades que dependerão de tempo, muito tempo, pra alguma maturação.

Às vezes acho que o coração de Deus são projeções das nossas próprias neuras e desumanidade, e tenho a certeza de que Freud concordaria com isso. Outras vezes tento compreender que o texto bíblico faz um caminhar de uma religiosidade, que, diga-se de passagem, não deu certo, por ter sido desumana, em guerras de conquista que dependeram de massacres, incompreensíveis a qualquer mente mediana de nosso tempo, para o perfeito ato completo de humanização e amor, encontrados nos Evangelhos. Tenho horror à agressividade e tentativas constantes de cerceamento da liberdade, pois sempre aprendi que o Cristo dos Evangelhos era uma pessoa branda, de palavra mansa, e mesmo o evento do templo não deve ser tomado como regra de controle (ou descontrole), como se a vida se resumisse à beligerância. Por conta disso, também não me adapto ao discurso do poder, do controle do imaginário religioso pelo viés da manipulação, seja este com a finalidade de enriquecimento, seja com a finalidade de projeção de uma piedade forjada. Contudo, entre a religiosidade humana antiga das guerras da conquista e da Lei de Moisés até chegar nas bem-aventuranças do Sermão do Monte, muita gente fica perdida pelo caminho e com isso abraça um cristianismo pela metade. Tem gente que fica no poderio do reinado, ou se apodera da legitimidade profética para atribuir, a si mesmo, o controle da religião e da fé, como se fosse o único guardião da verdade. Irá encontrar outros que se identificação mais com João, o defensor do amor, do que com o inadequado recorte doutrinarista de Paulo, como se este apóstolo só tivesse ditado normas e estabelecido regras. Modelos é que não faltam.

Posso estar errado, mas diante da crescente desumanidade, clericalismo extremo e visão tão curta, e ao mesmo tempo tão sacramental da vida religiosa, haverá um momento quando, um/a jovem mostrar-se vocacionado/a ao pastoreamento, na decisão completa de entregar a vida pra cuidar de gente, os já pertencentes ao círculo de oficiais da religião, chamados de pastores, ao invés de se reunirem para repetir as milenares perguntas que nem sempre a fé conseguiu responder, cujo modelo veio importado para a perpetuação da doutrina, ao invés disso, e do modo mais brasileiro possível, irão celebrar o feito inédito e incomum numa churrascaria bem brasileira, com direito à alegria, abraços e profunda gratidão, porque num mar de jovens sem caminho, aquele, exatamente aquele, fez a incoerente e inexplicável opção de se tornar um porta-voz ao mundo da mensagem do amor, da generosidade, do resgate do excluído e do profundo respeito pela dignidade e vida humana.

É, não entendo mesmo nada do coração de Deus. Só quero, por carta, te abraçar e dizer que você é uma pessoa singular.

No Amor de Jesus,
Natanael Gabriel da Silva


sábado, 30 de novembro de 2013

O LUGAR DO REINO




“E, quando Jesus ia saindo do templo, aproximaram-se dele os seus discípulos para lhe mostrarem a estrutura do templo. Jesus, porém, lhes disse: Não vedes tudo isto? Em verdade vos digo que não ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derribada” – Mateus 24.1,2
 
Depois de tudo o que já tinha sido feito, depois do Sermão do Monte, depois das muitas curas, da libertação dos cegos pelo caminho, dos discursos sobre a vida, sobre o Reino como uma árvore nascida de uma pequena semente e dos pássaros agasalhados em sua copa, plurais, de todas as espécies, depois de ter mostrado ao rico que para seguir a Jesus bastava ele, pessoa e coração, e não as coisas que tinha ou o que fazia, depois do milagre da multiplicação dos pães, o novo maná servido e sobejado a todos, depois de andar por sobre as águas, depois de dizer que o semeador saiu para semear, alhures, e as sementes foram caindo, sem estrutura, imposição ou sacerdotes, caindo como chuva em dia de verão, então, depois de tudo isso, o orgulho pelo templo é o retrocesso do retrocesso, a memória que não lhes pertencia e teria sido uma eterna desconstrutora, caso não tivesse tido um fim.

O fim, não era apenas de um templo ou prédio. Era o fim do sistema religioso, que em nome de Deus, segregava, perseguia e apedrejava. Fim de um sistema corrupto, como toda e qualquer organização que toma posse do sagrado e se dá como sua única interlocutora. Torna-se assim opressora por origem, destino e comando, orgulhosa de sua simetria doutrinária, organização e, infelizmente, também orgulhosa de seus bens e recursos, e porque não dizer, de sua multidão de seguidores. – Nada disso vai ficar de pé, disse Jesus, porque a vida cristã está nas pessoas, não nos sistemas, está nas ruas de quem sai do templo, olha para trás e confessa a falta de importância em tudo aquilo. Vale mais, muito mais, uma viúva à porta e suas duas moedinhas, ou um endemoninhado banido com sua legião de diabos, ou um paralítico trazido por sobre o teto, ou uma mulher impura que toca o santo e que além de continuar santo, santifica a impura, e não o inverso como determinava o sistema religioso segregador, ou ainda são mais importantes os malditos banidos de Betesda que no tanque sobreviviam a custa da miséria e da esperança, enquanto a religião no mesmíssimo momento se reunia em festa no templo. Jesus preferiu estar com aqueles, é claro, porque o Reino dos Céus é um tesouro que está no campo, não no templo, está nas ruas e Deus não se encontra, necessariamente, nos atos litúrgicos de adoração, ou nos oráculos proféticos regularmente determinados a acontecer, com dia e hora previamente agendados, mais conhecidos como sermões ou homilias. Nada disso. O Reino está na caminhada pelas ruas, por entre as pessoas, no andar pela vida, onde estão os campos, os lírios e os pardais que nos ensinam a viver.

Orgulho pelo templo e religião que se professa! Ninguém merece!

Natanael Gabriel da Silva

sábado, 16 de novembro de 2013

E QUEM PRECISA DE MILAGRE?



Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; não, não, porque o que passa disso é de procedência maligna. – Mateus 5.37

“Acredito, porque um filho não vai mentir pra mãe!” – foi a sentença, quase uma clarividência profética, que encerrou a nossa conversa matinal num sábado de sol. Minha mãe e eu conversávamos sobre filhos e o assunto migrou para o bem-estar que ela sentia quando, madrugadas adentro, ficava perguntando como estariam as suas sete crias e, ao mesmo tempo, descansava: - “Está tudo bem!”, os filhos diziam. Então eu continuei: - “Escuta isso, mas não acredita”, daí ela me deu a lição dos seus oitenta e seis anos vividos desde o tempo da revolução de 32 e sua fuga numa madrugada de São João da Boa Vista, do tempo da lavoura e do pai que morreu cedo, e eu já vivi mais do que ele, do tempo quando passava as madrugadas pensando o que colocaria à mesa pra saciar a boca dos sete, do tempo quando fazia roupas de saco de farinha e de açúcar e as tingia na cor que o uniforme escolar exigia, do quando só tinha um vestido que o lavava à noite enquanto os pequenos dormiam, do quando voltava da entrega do bordado a encontrar-se com os dois, os pequenos dos pequenos, já à porta da padaria à espera do pão que tinha sumido da mesa.

Então o “Acredito, porque um filho não vai mentir pra sua mãe!” veio acompanhado, cheio de tudo o que poderia ser mais gratificante e realizador, o sentimento de que valeu a pena, e por conta do acredito, chegaram o descanso e o sono, na trilha do realizado, da vida que agora se esgota e que teve uma completude parcial em si mesma: não fez tudo o que precisava, mas fez tudo o que deveria ter sido feito.

Não foi um “acredito” como se esperasse um milagre, claro que não. Também não foi um “acredito” politicamente correto, educadamente pastoral. Isso também não. Por um lado foi um acredito pós-empenho, pós-esforço, pós-dedicação, um “acredito” no plural e no superlativo e que não tinha por natureza agradar quem quer que fosse, mas satisfez o próprio coração, que descansou agasalhado pela confiança. Um acredito que transfere ao outro a responsabilidade da ética, da autenticidade e da transparência, mesmo que se torne vítima dele.

Sai de casa naquela manhã de sábado com a memória da fé que está no passado, não da que reside no futuro. A fé por conta do que passou tem a cor da simplicidade e traz o merecido descanso e uma incompreensível paz. Trata-se da fé no que aconteceu, ou um acredito por conta de um princípio, fundamentado tão somente na ingenuidade. Não espera um milagre, nem é crítico em relação à resposta, mas é o suficiente pra fazer sorrir e descansar, mesmo que seja na madrugada.

E daí? Quem precisa de milagre?

Natanael Gabriel da Silva