segunda-feira, 26 de agosto de 2013

TRISTEZA DE PARDAL



Hoje, por razões muito pessoais, desejei pensar sobre a liberdade. Já estava escrevendo outro texto, quando me lembrei (nos raros momentos quando isso acontece, pois esqueço de quase tudo, até do que escrevo), me lembrei, dizia, do que segue. Ainda prefiro conviver com as corujas.
O texto foi escrito em setembro de 2010. Fiz algumas correções.

 TRISTEZA DE PARDAL

“Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” – João 8.36

Airton continua sendo o meu vizinho, do tempo quando morei no 128. Vez por outra o vejo, aos domingos, sentado no portão conversando com alguém: “E aí vizinho, tudo jóia?” Ele responde: “Tudo jóia, vizinho”.

É um antigo amigo. Um dia desses precisei dele: - “Vizinho, preciso de três ou quatro pardais para uma palestra. – “Claro vizinho”, deixa comigo”. No sábado, fui procurá-lo: – “Vizinho, disse ele, só consegui apanhar três fêmeas, mas estão com filhote e ficaram tristes. Precisei soltá-las, iriam morrer. Mas pode deixar que até amanhã dou um jeito”. Deu mesmo. Arrumou um casal de Manon, criado em cativeiro. (Eu desejava falar às crianças sobre a liberdade e no final da celebração, todos iríamos, e fomos, pra rua soltar os passarinhos). Os dois, ao serem libertados, não sabiam o que fazer com a liberdade. Uma pessoa idosa me perguntou: - “Pastor, soltou os passarinhos?” – “Sim”, respondi. “Pois a coruja vai pegá-los durante a noite”, sentenciou. Era verdade. Havia-me esquecido das corujas. As corujas, para além das gaiolas, são uma ameaça para quem deseja voar.

Só que a gaiola também mata. Não de uma vez, mas aos poucos. Primeiro tira a alegria, depois mata. Alguém, no primeiro dia de gaiola, briga contra a injustiça. Dois ou três dias de prisão são suficientes para mostrar que a luta será inútil. Com o tempo acostuma-se com o alpiste. Pula de um pauzinho noutro para afastar o tédio, depois se esquece do tanto de tempo que está preso: sintoma de morte não sabida. Todas as gaiolas trazem uma mórbida segurança. Finalmente as portas poderão até ficar abertas. Não fará diferença para quem esqueceu o que é a liberdade. Ensinar a ser livre e a voar pode ser poético, mas não é fácil, quando a prisão vira o modo de ser e viver.

Acho que Jesus foi meio por esse caminho: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres.” É tanta liberdade, que até hoje discutimos o seu tamanho. Uns acham que ela termina aqui, ponto. Outros, que termina lá. Outros, que está na linha do horizonte. De liberdade em liberdade, ou de graça sobre graça como diria Paulo aos Romanos, o ser humano não é capaz de acreditar que é possível aprender a ser livre, assumir as responsabilidades da própria vida, e abraçar a promessa anunciada por Jesus, em oposição à segurança daquela religiosidade que escravizava. Aparentemente dava certa segurança, mas era desumana e infiel. No texto, quem sai livre, vive, quem fica preso, mata e morre, morre enquanto mata, mata enquanto morre.

Da minha parte, prefiro enfrentar as corujas.

Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

ESTILO DE VIDA



“E disse-lhes: Esta casta não pode sair com coisa alguma, a não ser com oração e jejum” – Marcos 9.29

A tradução “casta” já é pejorativa. “Espécie” cai melhor, e que não tem nada a ver com Darwin, por favor. Também “jejum” não aparece nos melhores manuscritos, pois os mais antigos que a contém, um está num estado de conservação que não permite uma afirmação segura e outro é resultado de correções. É possível que “jejum” tenha sido acrescentado em razão de ser prática comum na igreja primitiva.

Fiquemos então só com a oração.

Num dado momento o êxtase vivido no monte tem que descer e se deparar com a vida, como aponta  Clademilson Paulino, e a vida se apresenta em condição de miséria e intermináveis debates entre a teologia e a tragédia. A teologia, já a conhecemos. Nela reside o sonho da compreensão perfeita para se tomar posse das virtudes por meio de atalhos e conceitos. Isto é vero: não é possível avaliar o quanto de cristãos aprendem apenas, e tão somente, os códigos herméticos da linguagem da religiosidade e, na medida em que o fazem, se tornam diametralmente opostos e distantes, tanto do monte (Marcos 9.2-13), como da vida e suas contradições (Marcos 9.14-29). Com outras palavras, não são nem místicos, nem aptos para o exercício da compreensão do ser humano em sua condição marginal. Eis a Igreja que gosta de cantar.

O demonismo que aparece no texto é o menos importante (Marcos 9.14-29). Demônios vão e vêm como se fosse um caminhar pela própria casa. Só que o debate teológico, que encerrou com o dito de Jesus, já estava posto e havia um desencontro sobre poder ou não poder; por parte dos apóstolos eu posso vocês não podem e por parte dos escribas nós não podemos, mas vocês também não. Um verdadeiro circo coberto de palavras, manipulação e torcida. Aos apóstolos seria útil mostrar que eles podiam, pois afinal estavam também em busca de identidade. Os escribas queriam que desse tudo errado, que nada acontecesse a não ser o fato do infeliz continuar possesso, mudo e surdo, porque ter razão é melhor que ver alguém libertado e humanizado e não importa a desgraça dele se for esse o preço a ser pago para mostrar que a minha crença é que é a correta, e que tudo mais vá pro inferno, inclusive e especialmente os que me dão razão por meio do sofrimento e morte.

Então aparece Jesus, dialoga de maneira rápida, começando com um sonoro “geração incrédula”. O pai, em lágrimas pedia sem acreditar, porque o amor ao filho era mais expressivo que a fé e foi justamente por causa disso que foi atendido, porque falta de fé até dá pra suportar, mas falta de amor, evidentemente não. Feita a humanização do antes endemoniado, entrou a resposta sobre o feito, cuja explicação não era uma questão de estratégia, domínio ou manipulação do sagrado, mas oração, só oração. Não da oração mágica, é claro, movida por um sentimento subjetivo, ou demonstração de poder e controle sobre o sagrado. Deixe isso para os empresários da fé. Era a oração que Jesus trouxera do monte (9.2-13), e antes disso, do suportar a morte abrindo mão da vida (8.34-38), antes disso ainda, a confiança em sua pessoa (8.27-33), e assim por diante, um adiante para trás no texto e na vida de Jesus, porque naquele momento a oração era o ponto agudo de toda uma existência. Não tinha nascido ali, naquela hora e instante. Vinha de antes, um longe anterior, regado à vida, misericórdia, perdão, inclusão, fraternidade e solidariedade. Quer mais?

Daí me aparecem aqueles que querem saber do segredo. Como é que o senhor faz? Qual fórmula secreta? Qual método? Seriam as palavras, beleza e sequencia? Talvez a maneira de se fazer? O que estaria faltando se fizemos tudo certinho? Diga pra nós: qual é o pulo do gato? E queriam fazer o milagre sem o profundo sentimento pela miséria humana, um não entender nem a razão da estada no monte, muito menos as lágrimas e o amor do pai.

Na ausência de tudo, Jesus disse que faltava apenas a oração, que estava naturalmente emendada com um estilo de vida, marcado pelo compadecimento, misericórdia e cumplicidade no sofrimento humano. Que não era um modo de falar, mas de se viver. Que não adiantava querer evocar os céus de um momento para o outro como se fosse um passe de mágica. Até porque a oração nunca foi, ou nunca deveria ter sido, produto de consumo, hoje tão explorada, comercializada e, principalmente, cara, caríssima, enriquecedora de sacerdotes e pastores na exploração de miseráveis e alienados.

Simples: uma vida coalhada de tudo. E a oração de Jesus saiu como uma conversa em forma de poesia que restaurou a vida e a dignidade humana de um abandonado. Não foi apenas banir o mal, limpar e restaurar, mas uma declaração que vida se conquista com vida, e a oração é o caminho entre uma vida e outra, de quem a dá para quem a recebe.


Natanael Gabriel da Silva


quinta-feira, 8 de agosto de 2013

...E RUBEM ALVES CHOROU (?)



“E Jesus lhe disse: Judas, com um beijo trais o Filho do Homem?” – Lucas 22.48

Foi numa entrevista. Ele relatava a própria história e quando mencionou a situação de sua chegada ao Brasil, por ocasião do Golpe Militar, disse que um de seus maiores amigos o havia delatado e, por conta disso, entrara para o rol dos procurados. Disse isso e sentiu fundo porque a memória do amigo não envelhecera nos cinquenta anos seguintes. Era como se tivesse acontecido ontem.

Se chorou, tinha que chorar mesmo. Depois, como sempre acontece, vem a culpa pela ingenuidade, da qual os que envelhecem crianças, nunca se livram. Uma questão de impotência, impossibilidade e quando viu, já foi. Fica a pergunta de quando teria sido o momento provocado capaz de suscitar a deslealdade, mas não é possível encontrá-lo, porque a questão não é essa e a resposta, se houvesse, não ajudaria, não aliviaria a dor e não resolveria qualquer culpa ou frustração pela perda do que não poderia ter sido perdido, mas foi. Não dá pra explicar a dor, o sentimento de abandono e a decepção em experimentar o que a crueldade humana é capaz de fazer.

A pergunta de Jesus a Judas não foi feita para ser respondida. É uma declaração de espanto, uma perda, um afastamento, uma ruptura na história, a despedida de dois amigos que se olham pelas costas e se perdem no horizonte, como diz Goethe. É um despedir-se sem fim, um filme sem a última parte, uma peça de teatro sem encerramento, uma árvore bonita que morre antes de dar fruto, uma sequela, o fosso surgido entre duas fronteiras, a descoberta de repende de dois idiomas e duas formas de se interpretar a vida e que nunca se cruzaram, um nada que sobra. É a morte do passado, inutilidade do vivenciado, a perda do afeto que parecia ter havido, mas era apenas engano e manipulação. E é possível que a expressão “Filho do Homem”, nada mais seja, que o humano mais humano de Jesus sob o impacto da falta de sentido para uma pergunta sem solução.

Sem solução, e sem conclusão, apenas uma pergunta que não tem resposta do onde começa e ou termina a verdadeira amizade, o companheirismo e a autêntica solidariedade. E tinha que ter um beijo asqueroso para que o ato indesejado se tornasse ainda mais cruel e incompreensível.

Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

O ORÁCULO E O HUMANO


E disse: Em verdade vos digo que nenhum profeta é recebido na sua pátria.- Lucas 4.24

A fé depende do mistério, do que está oculto e precisa ser desvelado e compreendido. A fé é uma espécie de decodificação e único meio de aproximação do que não se mostra como passivo de entendimento e conceituação. O texto Aos Hebreus coloca fé nessa dimensão. A cura do cego de nascença narrado por João, também, e o mistério é colocado sobre a pessoa de Jesus: o fato de ser ele um ilustre sem história. Talvez seja esta uma das principais questões colocadas sobre o profetismo de Israel, isto é, os profetas são sempre dados como sem nascimento, passado ou futuro, só aparecem os oráculos de  datação complexa, ou perdida para sempre. Até o tempo profético é misterioso, e ficam os abismos do quem, quando, a quem e de onde, desafiando o sentido. O mistério sobre o profeta torna o profeta, profeta, porque é a partir do ocultamento que se cria o mito, pois só o mito é capaz de ler o que não pode ser lido e fica a mistura entre o texto do oráculo e a vida do profeta de tal modo que é, quase impossível, determinar onde termina um e começa ou outro, e onde começa o outro e termina o um.

Só que a fé, ou o controle do sentido do mistério, também é poder. Quem controla, pela fé, o que está em oculto, tem também o poder de estabelecer o sentido da vida e da religião. É o fundamentalista que se esconde por detrás da interpretação correta das línguas originais no protestantismo histórico (batistas, presbiterianos e metodistas, por exemplo), ou é o neopentecostal que se apropria e domina o sobrenatural dos milagres, por meio de curas e exorcismos e, por meio destes, a plenitude do poder e controle sobre a fé e fiéis.

Se fé é poder de controle e domínio e se quem possui o domínio hermenêutico é aquele que também aterroriza, nada mais impróprio que o ocultamento e o mistério se apresentarem ao banido e excluído, como no caso da viúva de Elias e do leproso Naamã de Eliseu (Lucas 5.25-3). Que Elias e Eliseu tinham sido profetas, não restava qualquer dúvida, com todos os adereços de surgimento, arrebatamento e sobrenaturalismos, sem contar a vocação, independência e vida à margem da sociedade, tanto por exclusão quanto por opção. Agora, o problema é que ambos haviam arrancado do ocultamento o humano banido, no caso da viúva, e o humano que ameaçava e oprimia; pois atrás de um e outro está a miséria e o drama da vida. Daí a pergunta: o mistério é só um algo que se encontra escondido, ou o mistério é recolocar vida a quem está à margem dela, sobrevivendo como por esforço na profunda miséria da fome (viúva de Sarepta de Sidom) ou convivendo, sem viver com, sob a dor de não saber o que fazer de si (Naamã)? Afinal o que é o mistério? O que é a fé que o desvela e o compreende? O mistério está no profeta, sem começo ou sem fim, ou está no resgate da vida que se apresenta como excluída pelas religiões que dominam a linguagem da fé como instrumento de poder?

Foi essa a dúvida levantada por Jesus na sinagoga em Nazaré. Sabe o que aconteceu? Ele foi expulso da cidade. Quem liberta o oprimido do opressor deve ser banido, e aquele que transforma o mistério em gente e a fé como atitude na direção da profunda humanidade, não tem espaço numa religiosidade fundamentalista. A palavra-oráculo, na profecia de Jesus, assumia a dimensão vida-libertação e o mistério se consubstanciava na pessoalidade do excluído inacessível. Finalmente a fé, que é a ponte entre o ser humano e o mistério, emergia como quebra de qualquer preconceito.

Não é todo mundo, ou qualquer expressão religiosa, que suporta isso.

Natanael Gabriel da Silva