domingo, 14 de junho de 2015

DO CAJADO PARA AS ASAS


Acho que pastor deveria ter asas, não cajado.
Claro que é quase um absurdo.
Afinal de contas, o cajado serve pra muitas coisas.
Talvez traga o símbolo do socorro, a retirar do abismo, pelo pescoço, a ovelha perdida.
Talvez sirva como defesa, contra as investidas dos lobos.
Talvez auxilie o pastor na caminhada.
Só que talvez tudo isso seja apenas uma parte do imaginário, pois o cajado também se aproxima do cetro e do poder, tem a memória de Moisés mandando na natureza, a tirar água de pedra e a abrir o mar, e ainda recupera a segurança do Salmo 23.

O cajado pode ser ainda um sem sentido, adotado para qualquer coisa e nenhuma, até mesmo como ferramenta de correção, tomando emprestada outra metáfora do Pai que corrige o filho.

Jesus nunca disse nada sobre cajados.
Quando falou do bom pastor, que era ele mesmo, o colocou como símbolo de total entrega e disposição para o enfrentamento do mal: o limite da vida.
Também disse que o pastor, agora o da parábola, era incansável no resgate; e uma ovelha, com nome, sobrenome e pronome, merecia o retorno e busca no final da tarde, talvez noite adentro. Jesus não menciona cajados, nem no resgate, nem na procura, nem na defesa, menos na correção, e nunca pensou nele como símbolo de reinado. O pastor se defende apenas com a vida, caminha pela noite levando-se a si mesmo, pessoa e coração, a encontrar quem se perdera. Parece até não ter cajado.

Se não tem cajado, tem asas. Daí o pastor colocou-se sobre Jerusalém, chorou e disse que estivera aguardando que aqueles matadores de profetas, desde os pais, o que mostra a sedimentação da cultura da perseguição e morte, os tais religiosos desumanos desde a origem, se recolhessem sob suas asas. Asas são proteção, como o cajado, e são abrigo. São proteção em favor do desprotegido, e não contra o mal que agride, pois o mal não pode ser resistido por ele mesmo; o mal tem que se cansar de fazer o mal na tentativa de alcançar quem se encontra sob a proteção das asas. As asas aquecem, não levam pra lugar nenhum, juntam o que deve ser juntado, e ninguém é capaz de dizer quantos cabem sob as asas do pastor que não tem cajado. Não tem cajado, mas chora. Diz chorando como quem mistura palavras engasgadas com as lágrimas, e lamenta o quando da morte dos anunciadores dos novos tempos de graça, um depois do outro, e depois do outro, o outro, e todos os que haviam sido enviados também foram silenciados, apedrejados, publicamente expostos, porque matar a voz é como fechar a fonte e depois não saber qual a razão de ter morrido de sede. Triste de quem morre, triste de quem mata, tristeza de Deus por oferecer abrigo a quem preferiu exterminar até os portadores que indicavam o lugar onde se recolher e agasalhar.

O pastor, sem cajado e com asas, viu o futuro de quem estava fora de seu abrigo, chorou pelos que estavam ali, pelos que viriam depois, viu a casa deserta, abandonada, seguida da dor da espera e da chegada de um dia, ponto futuro, chamado apenas de dia do Senhor. E um pastor com asas, não com cajado, é só abrigo, não é nobre, não exerce o poder, nem tem a pompa de rei. Até parece que sequer pode fazer algo além de abrigar e proteger, mesmo que seja na fragilidade de quem também não tem a resistência desejada. É quase um desprovido de milagre. Um comum. E só quem se coloca sob as asas sabe o que é estar perto-sob como se fosse um só com aquele que o abriga. Daí não dá pra explicar.

Embora a proteção do cajado ainda seja algo presente no meu imaginário, quase impossível de ser desfeito a ponto das asas parecerem loucura, se pudesse escolher, preferiria estas; ou talvez o símbolo do aprisco, que de certo modo quer dizer a mesma coisa.

Sim, faltou o texto.
Desta vez, segue abaixo:

Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes eu quis ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta seus filhotes debaixo das asas, e não quiseste! A vossa casa ficará abandonada. Pois desde agora vos digo que de modo algum me vereis, até que venham a dizer: Bendito o que vem em nome do Senhor.” – Mateus 23.37-39.

Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 9 de junho de 2015

EU AMO A IGREJA



“e manifestar qual seja a dispensação do mistério, desde os séculos, oculto em Deus, que criou todas as coisas, para que, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus se torne conhecido, agora, os principados e potestates nos lugares celestiais” – Aos Efésios 3.9 e 10


É provável que eu esteja meio fora de moda,
mas eu amo a Igreja.
Tenho motivos de sobra para criticá-la, pois
vivi e presenciei coisas surreais,
e também cheguei a pensar, e ainda penso,
que o desafio do Evangelho,
nem mesmo a igreja dá conta para si.
O Evangelho é um desafio para a própria Igreja.
Então, fico incomodado com o discurso consumista
que, em nome de igreja, que não é igreja,
pregadores procuram explorar a boa fé do simples, com promessas
vazias, cuja verdade está apenas na força do tom autoritário do
discurso.
Tem quem vende, tem quem compra.
Mesmo assim, eu amo a Igreja.
Aparecem ainda, e sempre, os segregadores e
defensores da moralidade e do gênero, que
excluem do pertencimento a Deus o ser humano amado por Ele,
como se desejassem ensinar ao Criador,
o que deve ser correto ou não.
Estes são os consagrados e defendem a ética do discurso,
mas aceitam a politicagem presente nas estruturas institucionais,
como se politicagem fosse sinônimo de esperteza, e a têm como virtude.
Aos infiéis da plebe, a lei.
Aos infiéis da politicagem, a admiração.
Aos cooptados por interesse e medo, fazem agora parte do time.
Bom proveito.
São os politiqueiros que se multiplicam como coelhos.
Vi tudo isso, mas eu amo a Igreja.
Estes lá estão, porque estão.
E estão exatamente por conta do tamanho
e coração do Reino que abriga
a todos, inclusive os oportunistas,
os carreiristas e até os apáticos consumidores
de celebração e culto.
Como diz Belchior, “Esperávamos os alquimistas...
E lá vem os arrivistas, consumistas,/mercadores”

Aqueles não são a Igreja,
nem quero me preocupar em saber se pertencem ou não a ela,
pois ela é a grande mãe plural e no superlativo
que só sabe o que é o amor,
mesmo quando o amor se volta contra ela.
Amo a igreja, sem entender porque há tanta pluralidade,
espaço aberto para o amor que nunca se basta ou chega ao fim,
porque não tem fim.
Então eu amo a igreja.

Também estou cansado de cantorias
e liturgias repetitivas sem criatividade
neste tempo quando nada mais basta.
As antigas orações, não bastam.
O estudo sereno do texto, suas contradições,
mistérios e ressignificação das
sagas, mitos e da vida, não bastam.
Também desejo o espanto por estar outra vez diante do sagrado,
como se nunca tivesse estado;
partilhar da oração que termina apenas com o poder falar,
nem precisa de resposta,
quando o apenas falar já é a resposta daquele que não precisaria ouvir,
o abraçar com afeto no encontrar o amigo,
parte do corpo, parte da vida.
Tudo isso está na Igreja,
por conta disso, eu amo a Igreja.

Você conhece o Guinélio?
Não, acho que não.
Conhece o Clademilson?
Também acho que não.
Com certeza, nem o Alonso, que pelo que sei nem espanhol é.
Laurencie é outro, que até a pronúncia do nome gera controvérsias.
São tantos...
Sabe quem é o Mateus? Já conversou com ele? É o Mateus, aquele que dorme, vez por outra entre os moradores de rua só pra experimentar a vida e abandono.
Um dia encontrei-me com Josué, e fiz dele um grande amigo.
Amigos. Não são perfeitos, são apenas meus amigos.
Sabe onde estão? Estão na Igreja.
Foi lá que os encontrei, e é lá que os encontro.
Eles me ensinaram a imperfeição por meio da pureza,
na busca infinda da ingenuidade e simplicidade.
Jamais teria aprendido isso se não os tivesse encontrado, sabe onde?
Na Igreja, é claro, e eu já disse isso.

Com a Igreja muito cantei em celebrações e cultos,
algumas vezes porque fazia parte da liturgia,
noutras, bem noutras, se deu o encontro com o fascinoso,
inexplicáveis momentos de contrição e sentimento profundo de ser
agasalhado por quem eu nunca vi,
chamo-o de Senhor, porque acho
que não tem termo melhor,
agora, se foi um encontro com o sumamente Outro, ou se foi com
o outro que sou eu mesmo, e que desconheço, o que importa?
Se desconheço, desconheço.
Seja o Ser-em-Si de Tillich, Mistério Absoluto de Rahner, o Ser Débil de
Vattimo, ou o outro humano, pessoa e ser, da parábola do filho pródigo, que
acaba por ser eu mesmo, o que importa?
Importa que foi lá, na Igreja,
combatida igreja, entrincheirada por cardeais,
bispos, pastores, diáconos, apóstolos,
paipóstolos, palavra que só a pós-modernidade mesmo poderia ter inventado,
regentes de corais, pastores de novo,
politiqueiros presidenciáveis de setores
maiores e menores das sagradas instituições
e que acreditam que servir a Deus está numa função.
Não sei se não está, mas também isso não importa,
porque as estruturas também
não são a Igreja, e não raras vezes, ou quase sempre, são obstáculos
que espelham e formam o modo de ser do simples que se rende cooptado,
povo e gente que nem sabe direito o que aquilo significa.

Aí você vai me dizer, tá aí a ideologia de quem explora e cultiva a falsa consciência
daquele que deveria aprender a lutar pela liberdade e contra opressão.
Tiro o meu chapéu.
Você está certo.
Lamentavelmente certo. Religião serva do poder, que coisa horrível, subserviente.
Que coisa triste.
Não é a única vítima.
O poder é assim mesmo, domina as até os centros de conscientização,
e está nos palácios do saber que se dão como guetos de funcionários e doutores
que se protegem, num apadrinhamento que faria envergonhar Brasília;
o poder manipula a mídia e está também presente na igreja.
Precisamos denunciar toda e qualquer forma de manipulação e escravidão.
Tudo isso está na Igreja, porque lá cabem todos, infelizmente ou felizmente, e quem se atreve a arrancar o joio, e se o joio for eu mesmo? Se não sei, não sei.
Daí, por democracia e perdição, completa e absoluta,
do mal latente, do qual todos somos portadores, o que faz a Igreja?
Inclui todos.
Cabem todos, inclusive eu.
Nem sei direito o que isso significa,
só posso dizer, que eu amo a Igreja plural, ampla, aberta, feito árvore do
Reino onde todas as aves podem ser agasalhadas.
Sonho antigo este.

Amo a Igreja porque nela aprendi o que é a vida, quem é o outro,
qual o sentido da existência humana,
como perdoar, como ser perdoado, como ser amado,
como ter esperança, como recolher-se no silêncio, como acreditar numa única
via de estrada ainda oculta, que vai se abrindo passo a passo, se parar, fecha, e dar um passo assim não há quem não tenha medo, mas de passo em passo, fui caminhando e fazendo o caminho.
Na igreja aprendi o que é abraçar, ter amigos e traçar o plano, que pode
não ser nada, ou outra coisa, sonhar com filhos crescidos, e ter a sensação
de ter cumprido a missão, ou pelo menos uma, ou parte de uma.
Não estar perdido, apesar da perdição.
Não viver do desamor, apesar do mal.
Ter esperança, apesar do medo.
Caminhar, sem ter trilha.
Tudo isso veio da Igreja.
Lá, na Igreja, tem sempre alguém a me chamar pelo nome
e a me perguntar: Como está? Estava com saudade de você!
São meus amigos.
Sempre os reencontro.
Sabe onde? Acho que sabe.
Amo a Igreja.
Não sei a medida disso, nem se tem medida.
Só sei dizer que eu amo a Igreja.

Natanael Gabriel da Silva