Elias? Que Elias?
A reconstrução da memória fundante é muito interessante
porque, de certo modo, os eventos sempre são visitados a partir da percepção
hermenêutica das verdades de quem se as possui, isto é, construímos o passado com a
nossa cara. É aí que entram os Elias.
E você vai me perguntar se não existiu apenas um Elias. Bem,
houve um Elias, cujo registro já é memória (I Reis 17 a 23; II Reis 1 e 2), e aparece
como profeta, misterioso, já homem feito para que o milagre da origem se desse
ainda mais como divino, surgiu como o Tisbita; por um lado com a firmeza do
“assim diz o Senhor”, por outro como um executor de quatrocentos profetas de
Baal os quais mandara matar, o que não soa nada bem em tempo de tanto
fundamentalismo; depois fugiu, tomou o rumo do deserto, desejou morrer e
caminhou até Horebe, onde teve um encontro com Deus. Depois desceu do monte,
nomeou outro profeta para substituí-lo e finalmente não morreu. Juntou o não-nascimento
com a não-morte, para que a memória fosse enriquecida de mistério, coisa que só
a religião consegue (não)explicar.
O segundo Elias, que já não era necessariamente aquele,
aparece na imagem e memória dos escribas, já que estes esperavam, de algum modo, seu retorno (Mateus 17.10). Ninguém sabe direito qual o recorte que haviam feito
para desejar um Elias que fosse favorável ao discurso que possuíam. Seria, ao que parece, um reformador ainda mais radical. Talvez o tivessem projetado quando
enfrentara Acabe, quando o primeiro Elias fora portador da voz e comando de vida e morte contra os infiéis,
e qualquer escriba, fariseu, ou sacerdote, teria este Elias como referência para o
início de um novo tempo. Legalista, é óbvio. Seria um Elias com o rosto deles.
O Elias do livro dos Reis, o primeiro, e o dos escribas, o
segundo, não eram os mesmos. Então veio um terceiro Elias, que apareceu na
transfiguração aos apóstolos (Mateus 17.3), e não dá pra saber que Elias eles
viram. Pela narrativa, parece que ficaram pasmados diante do todo, que não
impediu que singularizassem os personagens: Moisés, Elias e Jesus, numa relação
temática próxima: monte, Deus sendo visto, missão e novo tempo. Assim, num
monte já havia estado Moisés, conforme o Êxodo, quando recebera a Lei. O
primeiro Elias, o do livro dos Reis, também tivera uma grande experiência no
Horebe. Agora, no monte, num novo Sinai para os apóstolos, a
transfiguração, que os colocava no centro do milagre dos milagres. Ora, se o
Elias dos escribas fora, possivelmente, recortado do enfrentamento a Acabe, o
dos apóstolos poderia ter sido o do imaginário da presença divina nos montes, já que
nas duas ocasiões, tanto a Moisés como a Elias, o Senhor fora, de certo modo,
visto. Estavam então os apóstolos na terceira edição do lugar privilegiado do
sagrado. Descer para quê?
Então entra em cena o Elias de número quatro, que não havia
estado em nenhum monte, João
Batista (Mateus 17.12,13), sem milagre de transfiguração, independente de
qualquer sistema religioso ou político, marginal, esquecido, pobre, e que
também, como Moisés e Elias, estivera no deserto. A memória do Deus provedor
do monte é melhor que a memória da peregrinação pelo deserto, e ninguém quer
uma esperança que esteja residindo no nada, nem comendo gafanhotos, que olha
para o centro da adoração a partir do desterro e recupera a memória da
libertação do Egito, dizendo com isso que o meio urbano perdera o Deus da
caminhada, virara templo, local de poder, dinheiro, segregação, impiedade,
desavença, corrupção, e de lá, do deserto, o Elias de número quatro havia
lançado um raça de víboras, vestido de linho, na miséria, sem nada; um Elias
que nem os apóstolos o tinham recebido como Elias, passara despercebido, não
fazia sentido, porque dizia, reafirmava e repetia do machado colocado à raiz
das árvores, que iria cortar tudo e sem deixar vestígios, e parecia que era
contra, não a favor, porque não se opunha aos romanos, mas aos de sua terra e
os sentenciava. Era um Elias que não tinha nascido por dentro do sistema,
parecia estranho, um que não pertencia nem mesmo aos apóstolos, não se dava ao
anseio de corresponder às expectativas do tipo de liberdade que queriam, e
quando a gente olha a liberdade por um lado, não vê o libertador que vem pelo
outro. Ficar no monte qualquer um quer e pelo gosto dos que estavam com Jesus, estariam
lá até hoje, olhando, paralisados, babando o êxtase da presença do sagrado. E o
Elias de número quatro não tinha nada disso, falava que falava, e ainda dizia
que ninguém iria fugir da ira futura, e ao invés de trazer a esperança, dava
logo uma palavra de morte contra aquela religião corrupta e hipócrita. Ninguém
queria este Elias e por conta disso não poderia ser visto como Elias, nem
entendido como tal, pois a memória e a esperança, repito, sempre constroem o sentido por dentro da hermenêutica de quem as possui; memória e esperança funcionam
como sonhos programados e que nem sempre comportam uma palavra profética.
Então você acaba por não saber se o chamado “precursor” de
Jesus era uma pessoa, como desejam os credos cristãos, ou uma nova maneira,
quase absurda, de se reescrever a memória fundante, voltada para a condenação
da hipocrisia; que precisava ser solitária para ser independente, vir do
deserto para ser peregrina e simples, e assim ter legitimidade para condenar o
mal de um sistema desumano e impiedoso.
Disse Jesus: Elias já veio. E tinha vindo mesmo. Era o
quarto Elias. O da vida simples. Fora mais que profeta e se dera apenas como
voz que clamava pelo deserto. Um Elias, que não era Elias, para ser Elias.
Natanael Gabriel da Silva