terça-feira, 25 de março de 2014

É SÓ UMA QUESTÃO DE INTERPRETAÇÃO



“Por isso, lhes falo por parábolas; porque, vendo, não vêem; e, ouvindo, não ouvem, nem entendem.” – Mateus 13.13

Jesus poderia ter dito: “Falo por parábolas, porque é a única forma de expressar o que tenho para dizer. As parábolas têm sempre um sentido meio reservado, elas mostram e escondem e você sempre ficará com a sensação de que tem alguma coisa por detrás de outras coisas. E tem, porque as parábolas não têm fim. Elas levam você pra dentro delas e, de certo modo, você se dá como personagem, principal, secundário ou figurante, tudo misturado, muitas caras, e lá está você em todos os lugares da história narrada. Na parábola que acabei de contar, a do semeador, nela você se identifica com quem joga as sementes, sua simplicidade, esperança e investimento na vida, porque também deseja ver a vida brotar. Só que também se identifica com aqueles que recebem a semente e, na maioria das vezes, não sabem o que fazer com elas. Bem, de qualquer modo, se falasse da profundidade da existência por meio dos instrumentos que vocês conhecem, “façam isso”, “façam aquilo”, “isso pode”, “isso não pode”, vocês iriam ficar se vigiando, ao invés de cada um olhar para dentro de si. É por isso que falo em parábolas. Não é um modo caricaturado de falar das coisas espirituais, mas a profundidade da alma, que excede a possibilidade de compreensão, só emerge quando dita de um modo que nada se conclui, que tudo fica em aberto, e poderá ser lida, compreendida, recortada, ensinada por um tempo que vocês nem sequer poderiam imaginar. Não basta ouvir, nem entender as palavras, porque vai além disso. Afinal, cada um escuta o que quer, do jeito que prefere entender, porque quem interpreta é que dá sentido. Um coração endurecido, ou quem escuta dando pouca importância (v.15), será sempre alguém que irá reduzir, por mais belo que seja o que foi dito, a profundidade da graça. Na verdade, você pensa que a graça, ou o amor, ou ainda a fé, por exemplo, são uma coisa, quando não são - não raras vezes são exatamente o contrário. O problema é que o coração não deixa interpretar como se deve. Se vocês acham que a compreensão é uma questão do que se vê e do que se entende, podem estar enganados, muito enganados. Então , vamos conversar sobre o semeador que vai jogando a semente, sem planejamento, sem escolher onde as elas deveriam cair, e vai colocando com a mão, esparramando como se aspergisse, uma nuvem de sementes, e com a mão cheia, abarrotada, vai fazendo chover vida como se caísse do céu; o semeador não distingue esse daquele, um de outro, simplesmente vai jogando e as sementes vão caindo em todos os cantos e de todos os modos e cada um vai fazendo a leitura do que recebe, cada um pega de um jeito, cada qual entende como quer. Uns jogam fora logo de cara, afinal qual a importância que pode haver numa semente? Outros têm expectativas que vão além do que se possa imaginar, querem receber muito, mas não têm a grandeza de enfiar a semente para dentro, querem que ela faça o que tem que fazer, mas que fique só na superfície, um pouco pra dentro, mas um pouco pra fora, às vezes mais pra fora que pra dentro; outros mais espertos vão querer aproveitar tudo o que há de melhor do que foi semeado, mas também continuam tentando controlar a própria vida, como se tivessem medo de perdê-la; agora quem se torna parte da semente, e a semente parte dele, ou dela, com profundidade e leveza, vai transformar o mundo com a docilidade de seus frutos, e todos vão querer degustar, em algum momento, de sua presença e pessoa. Os frutos brotarão em pencas, no lugar de um, cem, no lugar de outro, sessenta, em outro, trinta, alguns um pouco mais, outros um pouco menos, mas serão tantos frutos que os galhos ficarão arcados, abarrotados, lindo de se ver, frutos disponíveis, acessíveis e prontos para a colheita, apreciados, saborosos e que tornam o mundo menos árido e a vida menos amarga; gente que dá sombra como abrigo, e alimenta quem dele, ou dela, se aproxima, com fartura e generosidade."

“Não tem segredo nenhum”, certamente diria Jesus, “é só uma questão de interpretação”.

Natanael Gabriel da Silva


terça-feira, 11 de março de 2014

A JORNADA




E, quando orardes, não sejas como os hipócritas, pois se comprazem em orar em pé nas sinagogas e às esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens. Em verdade vos digo que já receberam o seu galardão. Mas tu, quando orares, entra no teu aposento e, fechando a tua porta, ora a teu Pai, que vê o que está oculto; e teu Pai, que vê o que está oculto, te recompensará. - Mateus 6. 5-6

É assim: a jornada começa na sinagoga, vai pra rua, depois pra casa, mais precisamente para o quarto, e no quarto, a profundidade da alma. Deus não está necessariamente na sinagoga, nem na rua, e nem no quarto. O único lugar possível de encontrá-lo é no abismo da vida.

Foi rápido demais, eu sei. Então, vamos começar pelo começo. A sinagoga, a igreja, a comunidade, enfim, qualquer espaço onde o sagrado se manifesta, é na verdade o lugar da competitividade e da comercialização do simbólico religioso, cuja moeda de troca é o prestígio e a admiração.  É o espaço da manifestação dos dons espirituais, escolhidos e assumidos dentre aqueles que dão notoriedade ao possuidor. Tanto faz, pode ser o domínio de uma área de conhecimento, o exercício do sobrenaturalismo, ou uma função política-institucional; qualquer destas coisas, próximas ou distantes, se dão no espaço circunscrito onde Deus é delimitado e que chamamos de templo. Agora, saindo pra rua, miserável é aquele que não vê as pessoas nem o cotidiano, e carrega consigo para além das fronteiras, o modo de vida da qual se envaidecia no sagrado. Já não servia para lá, sinagoga ou igreja, nem vai servir para cá, pra rua, lugar onde estão aqueles que não podem e não têm instrumentos para competir com a espiritualidade oficial. Na rua tem gente comum tentando sobreviver num drama social que nem mesmo eles entendem, e, do ponto de vista formal, lá não existem competidores por estarem todos aquém. A isso, o discurso oficial, chama de mundo profano. Por serem banidos e excluídos do sagrado, quem está na rua, corre o risco de admirar ainda mais o portador das virtudes e dos dons espirituais, que saíra do templo,  o que torna o excluído mais excluído ainda, e o religioso superlativamente miserável.

Bem saindo da rua, o caminho é o da casa. Não tem nada a ver com a questão do público que está nas ruas, com o privado da casa, isto é, com a religião que se manifesta no âmbito individualidade. Nada disso. É que tanto na sinagoga, como na rua, o religioso fica pensando como é que as demais pessoas estariam vendo a espiritualidade dele. É semelhante ao que possui um carro que ninguém tem, e como não pode descer do veículo pra se ver dirigindo, precisa imaginar e projetar a admiração dos outros a si mesmo. Com outras palavras, se admira com o que imagina estar ocorrendo a partir do outro, e se olha duas vezes: olha pra si, e pensa que os outros também olham para ele, e assim se vê através de si mesmo e através do outro. Neste caso, o outro, como pessoa não existe. O problema deste religioso não é apenas um modo de fé ou liturgia, mas de isolamento, individualidade e orgulho. É isso que é ser miserável no superlativo. 

Então, para romper com a imaginação e admiração por si e através dos outros, é preciso ir pra casa. Em casa, ir pro quarto, e dentro do quarto, encontrar os demônios que estão dentro da alma, dar-se no derramamento, no profundo ato de sinceridade e solidão, lugar onde as palavras não são suficientes, na queda livre para dentro de si a uma conversa franca, consigo mesmo e com aquele que conhece a vida pelo lado de dentro. E, do lado de dentro, o Pai. E o Pai, é o Pai. O pegar pela mão está no profundo. Lá está também quem agasalha, protege, ampara, mostra a trilha da vida, olha filho vá por aqui, assim não, é deste modo que se faz, olha bem, e daí é só ir conversando, ficando quieto pra ouvir,  e quando pergunta, já que lá não tem palavras, a resposta já vem antes como se pergunta não tivesse havido, e o diálogo prossegue, porque dentro do quarto, o tempo fica suspenso como se não houvesse tempo e a conversa entra noite adentro como se não houvesse noite. Não tem noite, não tem dia, tem apenas profundidade e o Pai presente no lugar que não tem lugar, conversando para além das palavras, e dando conselhos que vão além dos conceitos. Depois é voltar pra rua e enxergar o outro, ver a vida, a miséria, e se dar como profeta contra a desumanidade. É assim que se aprende a amar.

Nem sei se é simples. Só sei que é assim.

Natanael Gabriel da Silva