sábado, 28 de fevereiro de 2015

EM NOME DE DEUS, EM NOME DE DEUS?



“E Pedro, tomando-o de parte, começou a repreendê-lo, dizendo: Senhor, tem compaixão de ti; de modo nenhum te acontecerá isso.” – Mateus 16.22

É foi o que pensou ter feito Pedro, e quando Jesus anunciou sem rodeios a sua Paixão, que ninguém sabia direito do que se tratava, o apóstolo o chamou à parte e só não disse um “em nome de Jesus” porque ainda não era tempo, mas falou em nome de Deus, com direito a repreensão, correção e advertência, e foi logo determinando, o Deus que eu conheço não iria permitir isso, e vou lhe dizer que, de maneira nenhuma isso irá acontecer, porque se há uma coisa que conheço é a compaixão, ou misericórdia (hileos), de Deus, e posso dizer isso em nome dEle. Então você não sabe se Pedro fez isso por amizade, ou se foi mesmo politicagem para se aproximar mais de Jesus. Só que a resposta veio meio de canto, e saiu um para trás de mim, e foi logo declarado o nome do dito cujo, aquele que só sabe escandalizar, que não entende nada de misericórdia ou compaixão, muito menos de morte e de vida.

Daí Mateus ficaria com o cabelo em pé com o que fizeram no texto dele, separar o 23 (que não era numerado) do 24, como se assunto diferente fosse. A conversa sobre vida e morte continuou, e o “então” que começa o 24, quer dizer em razão de, em decorrência, por conseguinte e daí Jesus inverte o sentido de tudo o que se poderia pensar sobre compaixão, pois mostra que o ser humano vê a vida de um jeito, mas Deus de outro, e convida todo mundo a morrer com ele, a sair carregando a cruz pelas ruas (24), coisa que o dito cujo nominado não conseguia entender, e Jesus não falava de cruz como sofrimento, mas identificação, e todo mundo carregando a cruz de Cristo pelas ruas cada vez que sai de casa, e a traz pra casa, dorme com ela e conversa com os outros com os braços abertos, e se todos fizessem isso, a vida seria outra, é ou não é? A cruz na consciência, no coração e na disposição de quem já morreu, e se morreu, os valores são outros. Assumir que a cruz é a companhia do cristão, onde começa a vida depois da morte voluntária e é inseparável, colocada às costas como superação de vontade, donde nunca deveria ser despregada de ninguém, e nunca também ninguém deveria esquecê-la em qualquer canto, o que é mais comum do que se pensa, então cadê a sua cruz, sei não, e sair olhando os outros sempre à sombra da cruz, para de forma alguma esquecer o perdão recebido, e assim ir vivendo, ou morrendo, ou ainda morrendo e vivendo, duas coisas juntas, e carregar a cruz é falar de morte e vida, e continuou Jesus, pegue a sua e saia comigo, porque a cruz não é propriedade particular, também não é única, pegue a sua e fique sabendo que pra salvar a vida é preciso perdê-la (25), não é mesmo Pedro? e se você está pensando que fala em nome de Deus é porque não sabe o que é compaixão, nem a minha, nem a dEle, nem do que será no futuro, da misericórdia que mudará o mundo, da conquista da vida pela morte, porque só morrendo mesmo e nascendo de novo é que o ser humano pode ser reinventado, você não sabe disso, sequer entende, porque que adianta ganhar o mundo inteiro e perder a vida(26)?, então vai continuar sendo o que sempre foi e achar que a vida está nisso? O que você acha que eu vim fazer? Repetir o repetido? Não, a vida precisa ser recriada e isso não tem preço; se tivesse preço, quanto pagaria por ela? Quanto vale a sua alma, que é a vida que está por detrás da vida, o profundo do profundo, como aquela que faz de você quem é e literalmente que lhe dá ânimo, sentido, e lhe permite o ver o mundo, ou qualquer coisa nessa direção; será que você vai perdê-la exatamente por não saber que ela não deveria lhe pertencer? Daí quando você pensar que morri, retorno (27), e muitos que aqui estão, verão isso (28). É muita coisa, eu sei, morte que não é morte tentando resgatar a vida que não é vida.

Fim do diálogo. Depois disso, seis dias de silêncio. Em nome de Deus, até o silêncio faz sentido.

Natanael Gabriel da Silva

sábado, 21 de fevereiro de 2015

A MEMÓRIA E A MISERICÓRDIA


“Então ela disse a Elias: Que tens contra mim, ó homem de Deus? Vieste tu a mim para trazer à memória o meu pecado e matar meu filho?” – I Reis 17.18

Eu sei que trazer o passado não resolvido é sofrer duas vezes, mais que duas, muitas vezes, e se dá sempre quando o acontecido faz surgir do profundo os sentimentos que se achavam decantados. Talvez seja uma agonia imposta, um pouco pelos outros, um muito por si mesmo, pois a tragédia e o descaminho ficam voltando, vão e voltam, e sempre se refaz a reflexão pelo, aparentemente, mesmo viés, os fatos, acontecimentos, pessoas, o que fora dito, o que não fora dito, as expressões de quem disse que só a memória presenciada poderia fazer o registro, depois mistura-se tudo, e num dado momento o que poderia ter sido antes, fica pra depois, o dito é amaciado por bricolagem para atender os desejos da angústia e resolvê-la sem dar-lhe solução, é daí que nem sempre quem tem a memória é confiável em sua visita. Sua interpretação muda, distorce, sem se tornar mentira, mas que também não chega a ser verdade, entra numa nuvem, presa a lugar nenhum, flutuando, escurece como se tempestade fosse vir, mas repentinamente vem o sol, surgido só por conta da ânsia de claridade e luz, e nem quem participou do evento é capaz de dizer onde reside a verdade. Talvez nas nuvens.

A questão, contudo, não foi o fato do profeta ter feito algo, ou do acontecido inesperado ter trazido o trágico de volta, mas a solução dada à memória, impossível de ser consertada. É que trazer o pecado de volta, não resolve o problema da vida trágica que fora construída depois dele, não será possível apagá-lo como se não tivesse havido nada, mas, como dizem as más, ou boas, línguas, o que vale é a cura do sofrimento que sempre vem na esteira da memória não resolvida.

Foi assim que a viúva, que já era sofrida por determinação do destino, sofreu de novo, e agora na memória (zaw-kar), o ponto divisor, a marca, ou lembrança, onde não tem coisa que dá pra consertar, nem fazer diferente porque a história ninguém muda; veio então o sofrimento engordado pelos anos e sentiu-se punida pela morte do filho, o que era incompreensível, pois já estivera disposta a morrer, mas uma coisa é a disposição, outra é o acontecido, e quando o filho morreu, e morreu mesmo, o passado dela reviveu de um algo que nunca ninguém irá saber, nem precisa, e simplesmente confessou como se estivesse pasmada, pois finalmente entendera que o profeta viera primeiro pra tirá-los da morte anunciada, depois pra matar e demonstrar que a morte não deveria ser resultado de uma fatalidade, mas correção e punição, então a viúva não entendeu nada. Quando não há solução, cria-se uma. Veio então a bendita memória.

Só que veio também a solução no filho foi ressuscitado. Então não se sabe direito se a ressurreição aconteceu por conta do filho, ou se foi um apaziguamento da memória e da ira de Deus, que de ira não tinha nada, era só memória dela, culpa, dor de um mal praticado como evento, ou apenas dor do pecado de viver como não pertencente à nação dos eleitos, sangue gentio, não importa o que fosse, e o filho ressuscitado declarava que Deus não tinha nada a ver com aquilo. Está aqui seu filho, não tem nada de memória e você visitou o passado sofreu por conta dele sem necessidade, a não ser a de você se dar conta de quem é, do que fez, ter culpa para ser gente e pessoa, só isso. Pecado? Que pecado? Não sei do que a senhora está falando, e a vida voltou ao filho, está aqui seu filho, num milagre pra ser visto a dois e experimentado por três, sem multidão, teatro para a manifestação do poder ou qualquer coisa parecida; um milagre feito no quarto, apenas pra dizer que a memória confundira a vida, e se a morte é a punição maior é a redenção, então a viúva já poderia se considerar remida. Ela finaliza o diálogo reafirmando a presença do divino na vida do profeta, não sei se por conta da ressurreição, o que parece ser, ou se da memória estourada como furúnculo. Deus se preocupava com ela, não apenas em dar-lhe o que comer, mas era capaz de operar o milagre da concessão da vida.

A mulher, interpretado o ocorrido por Jesus (Lucas 4.26), a que fez referência, se tornou como exemplo e símbolo da universal misericórdia de Deus. Do pecado dela, nem Jesus disse qualquer coisa. Talvez fosse mesmo o pecado da exclusão da elite dos não pertencidos. E foi assim que da memória e culpa, a viúva, sem nome, se tornou filha do Reino, por inclusão e determinação da misericórdia.

Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

PARÁFRASE DO PODER: Liderança Religiosa, manipulação e domínio



Mateus 23

Eu vou falar uma coisa pra vocês, é sobre a avidez pelo poder; faz com que a pessoa se dê como sentada na fonte do que poderia ser chamada de Revelação, porque é de lá que emanam as determinações inquestionáveis, cuja resposta é apenas a obediência. Gente sentada na cadeira de Moisés é o superlativo da arrogância e do domínio, na facilidade suprema da manipulação por meio do religioso. Se vocês olharem bem, vai ser difícil discordar deles, primeiro porque falam em nome da Tradição, depois porque tudo se encaixa como se verdade fosse. O único problema é que, como todo poder, só são vigilantes dos outros, sabem de tudo, ficam preocupados com o que os outros fazem, se constituem como porta-vozes da são doutrina, e como estão assentados no limite da fé, assim o fazem sem rodeios e ainda dão a ideia de que isso tudo é justo e perfeito. Pois é, mas quando vocês olharem para a vida deles, verão que eles não têm qualquer conteúdo, pior, são podres. Gostam de aparecer de maneira estratégica, vocês os verão nas reuniões, não em todas porque em tempo de eleição e consolidação política do poder, quando então a manipulação se dá como legitimada, aí aparecem, com aquele sorrisinho malufista, poucas palavras, porque só os que não têm juízo falam muito e se expõem, concordam com todos, porque o interesse deles não é para com a verdade, mas para com o que lhes interessa, e mesmo quando dizem e afirmam, solenemente, que estão ali por causa do que acreditam ser justo, não fique na deles, é só discurso. Eles irão fazer como o general de Gabriel García Márquez, em nunca dar uma ordem que não possa ser obedecida, e nunca discutir assunto que não faça diferença. Eles irão aparecer, ou se esconder, quando assim o quiserem. Quando sumirem do mapa, pode ter certeza, há algo que está sendo maquinado, costurado, e quando vier à tona ninguém irá vê-los por detrás dos descaminhos, são ocultos, falam uma coisa aqui, do tipo, olha cuidado com tal pessoa, e saem fora, nunca dizem a razão, são especialistas em lançar dúvidas vazias só para surtir o espanto e o assombro, depois fica nisso e nunca ninguém irá saber onde começou, e a vítima, ninguém irá se preocupar com ela, porque as pessoas gostam de agradar o poder, acham que politicagem é esperteza, são capazes de isolar, ou numa linguagem de uma certa denominação, excluir alguém por causa de adultério, mas a politicagem é incentivada, admirada, em alguns momentos até reverenciada, e você irá encontrar conversas daqui e dali dizendo que tal pessoa é impossível, muitos risos, porque ninguém vai ter coragem para fazer alguma coisa, pois de certo modo, os instrumentos do poliqueiro dão medo. Deste modo aparecem no espaço público sendo chamados de Mestres e vão dizer que nada disso apenas servos, mas é outra coisa na qual vocês não devem acreditar, porque gostam dos primeiros lugares, fazem parte de toda e qualquer função, comissões, e eu diria até de conselhos e juntas, mas acho que vocês não sabem o que isto significa, mas deixa prá lá, são especialistas em educação secular, educação teológica, missões, ação social, e pasmem, vão se dar ao luxo de entender de rádio e televisão, são conhecedores também de contabilidade, gerenciamento estratégico, e vão mudando se setores como se fossem moscas desde que estejam lá, apelam pra democracia quando estão no plenário, mas lutarão contra o colegiado quando estiverem no poder legitimado dizendo assim ninguém consegue trabalhar, alguns terão o perfil de notáveis como Getúlio Vargas e Eva Perón, que formariam um belo casal se a vida os tivesse premiado com a aproximação. É por conta disso que eles ficam na cadeira de Moisés e na porta de entrada do céu, e ficam ali descaminhando um e outro, indicando a direção errada, e criam um prejuízo para a vida cristã que não dá pra medir, e daí todo mundo fica cético com relação às virtudes cristãs, e são uma chaga, doença, e quando você vai chegando perto, eles ficam ali do lado de fora bem na entradinha da porta do céu fazendo vistoria, enfiando a mão dentro dos bolsos pra tirar o que você tem, passando a mão na cabeça pra fazer você perder o que pensa, e ficam ali fardados, bem na porta, do lado de fora, que é o lugar deles, mas como não podem entrar do modo como são, também impedem os outros, criam barreiras, são especialistas em doutrinas, sabe aquela corrida de cem metros com barreiras ? – pois é, na corrida, pelo menos o atleta sabe quando as barreiras terminam, só que eles vão colocando uma, mais uma, outra, colocam óleo pro infeliz, ou pra infeliz escorregar, olha isso não pode, mas como não pode?, não pode porque não pode, Moisés não quer, não está claro no texto e quando não está claro, a gente esclarece o texto e melhora o que está escrito, de tal modo que agora o que não está escrito fica sendo mais importante do que aquilo que está escrito, entendeu? – não, não entendi, bem entendendo ou não, não pode, porque a gente decide por decreto e votação, pode ou não pode pessoal?, e os cooptados, aqueles que ficam à deriva admirando o poder e querendo fazer parte dele, dizem, não pode mesmo, em coro, porque a manipulação exige uma única voz, como se fossem um só, viu?, todo mundo concorda com o não pode, então agora não pode por decreto, e ponto final. É daí que surgem os prosélitos, os fascinados pelas regras políticas do impedimento, aderem ao sistema e ficam colados nele esperando a vez, se tornam até mesmo piores, eu diria duas vezes se dão como filhos do inferno. Só são capazes de ver o poder e o dinheiro, e vão achar que o ouro ou a riqueza do templo é mais importante que o santuário, e o que vai ter de gente em nome do ouro movendo ações de recuperação patrimonial contra os doutrinariamente incorretos, se eu contasse a vocês, não acreditariam, mas é isso mesmo, estão mais preocupados com paredes do que com pessoas, irão declarar compromissos com o sistema, chegam até a jurar pelo que se oferece no ato de sacrifício e adoração, mas com Aquele que é maior que o altar, nada, porque a vida de fé deles começa e termina ali mesmo. Enfim é isso aí, ou quase isso.

Sabe como é que vocês identificam estes sepulcros caiados, politiqueiros, criadores de regras éticas para os outros, que não conseguem ver alguém se dar bem no que faz no real pastoreio de gente? Que quando querem alijar alguém dizem ali vai um liberal, sem saber direito nem o que isso significa, sabe como identificá-los? Vou ser simples: não amam a justiça, como autenticidade, fraternidade, igualdade e solidariedade; não entendem de misericórdia, se voltam até mesmo contra aqueles que lhes estenderam as mãos, porque são ingratos, inconsequentes, e na maioria das vezes, sequer têm bom senso; e por fim não entendem nada de fé e fidelidade, porque a vida deles começa e termina neles. Só existem eles no mundo e acham que irão continuar no poder, mesmo depois de mortos. Sequer têm consciência do limite da vida.

Então, mire e veja: não caia na conversa deles, o que vale mesmo na vida são as virtudes de um coração puro, e daí teríamos que voltar às bem-aventuranças. O resto é pura hipocrisia. Desta, o mundo já está cheio.

Natanael Gabriel da Silva

sábado, 14 de fevereiro de 2015

AS FLORES E O VENTO

"Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade...” Eclesiastes 12.1

Não sou especialista em música. Só um escutador. Eu sei que estou atrasado, mas conforme o tempo passa, vou me dando como admirador do chamado Pessoal do Ceará, entusiastas pela igualdade e fraternidade, em oposição ao oportunismo dos, então, chamados Novos Baianos, que juntados aos poetas da resistência, se dão no discurso de Belchior como crianças que pediam permissão para se tornarem artistas e rebeldes, e enriquecidos pela miséria, viam o mundo azul por conta dos óculos escuros, na busca do conforto necessário, pois de carrão podia-se chegar mais rápido à revolução.

Pois bem, assim Fagner, do Pessoal do Ceará, me pareceu uma boa opção para um sábado de manhã, e as flores com o tempo que perdem a força e a ventania vem mais forte, resgatou o dia quando me dei conta de que os mesmos ventos, sempre os mesmos, nem mais, nem menos intensos, haviam se tornado mais fortes em razão da fragilidade que simplesmente um dia havia aparecido. E o discurso de que somos sempre os mesmos não leva em consideração, nem a natureza, nem a insuficiência insuperável da longa caminhada. Assim o ceticismo, em menor ou maior grau, é quase inevitável; e as paixões e ilusões perdidas nas lembranças, vão tornando você quem agora é, e o coração alado, sai a voar, e vai desfolhando os olhos, retirando as camadas e véus que antes ofuscavam a vida. Uma estrada só, cantava Fagner, de um caminho só, para uma só jornada; daí é só deserto. 

O ceticismo em contraponto à beleza do encanto pela vida, proposto por Fagner, é o drama da experiência com a dor da descoberta, e o saber viver parece chegar sempre tarde demais. Este ceticismo, dizia, está lá no também cético pregador de Eclesiastes. Não é uma questão de se, mas do quando as flores terão o seu momento de fragilidade e não suportarão o vento que sempre foi e será; e não haverá sonho de fortalecimento capaz de alterar a prerrogativa da angustia heideggeriana. Daí a recomendação do lembrar-se do Criador desde a mocidade. Não é uma promessa de que, num dado momento, a força será renovada como se a juventude pudesse ser novamente o fundamento, porque não é verdade, mesmo que Isaías e sua águia digam o contrário.  

Então, para o modesto pregador, profeta do ceticismo e do trágico existencial, uma vida com Deus não se escreve como uma foto, mas é um deslocamento no tempo, um desde a mocidade, um quando mais cedo melhor, uma jornada de dias percorridos que só faz sentido quando as flores perdem a força, ou quando a vida for se esvaindo, como prefere o pregador; de qualquer modo, tempo percorrido, vivido, gastado e presenciado com o acompanhamento do Criador, passo a passo, dia a dia. Não há promessa de mudança, cura, reposição do corpo, ou qualquer outra coisa. Trata-se apenas do pastoreio e presença do Santo na reflexão da vida, do tentar refazer até onde a memória alcança, na confirmação de que valeu a pena. Não tem importância se o tempo cria um lapso entre a memória presente e a remota, porque esta será mais importante, e virão histórias repetidas, narradas para amigos como se primeira vez fosse, e ninguém suportará o risinho de quem se cansou de escutar as mesmas coisas, e você nunca saberá a razão cômica, porque a memória não ajudará o que aconteceu ontem, mas o menos importante será o imediato outrora, o que valerá será a vida escrita desde a mocidade, será sempre uma memória da presença do Sagrado, seu ilimitado amor, seu cuidado em ter feito a vida bela, da segurança que não se explica, nem a vida e seus valores, construída como se natural fosse. 

Não fora natural, apenas uma opção e escolha em querer o Criador como companheiro e amigo.

Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

DESPLANEJAMENTO



“O Reino dos céus é semelhante ao...”

É isso mesmo, Mateus 13. Faça a leitura de todo o texto, e você irá encontrar, dentre tantas outras coisas, o desplanejamento. Eu sei que o discurso de Jesus está imbricado no imaginário campesino do Reino do Norte. E na época do levando e conduzindo a vida pela natureza, numa teoria cíclica da história, o que vale é o inusitado como espanto e esperança.

O desplanejamento é um problema em tempos de estratégias e investimentos só naquilo que vale a pena. Antes do antes já se deve saber onde se deve chegar, quais os meios para alcançar os objetivos e, no final, fazer a avaliação dos resultados. Quem conseguiu, fica. Quem não, fora. Isso é válido para empresas e igrejas, estas cada vez mais próximas das fábricas que dos campos, engolidas pelos Tempos Modernos e parte do mercado de consumo dos bens religiosos. Negocia-se de tudo, e qualquer coisa, especialmente gente, e o mercado se abre pelos métodos de convencimento, estratégias e ações, programadas, reprogramas, revistas e aos poucos vai se melhorando no distanciamento, e daí quando alguém pergunta que igreja é essa, a gente recomenda ler “1984” de George Orwell.

Pois é, nas parábolas não tem planejamento. Você vai me dizer que para o semeador sair a semear ele precisaria de, no mínimo, estabelecer algumas metas, e eu vou lhe responder que é por essa razão que há uma diversidade de parábolas. É um semeador que sai a semear em qualquer canto, pra quem quer que seja, para onde o vento leva; braços largos, soltando com maestria a nuvem de pequenos grãos, não se incomodando com as aves, nem onde as sementes irão cair, porque se fosse hoje, ah, meu amigo, se fosse hoje ia ter gente passando próximo ao semeador e achando um absurdo ele estar jogando semente fora, deveria programar, colocar uma por uma, pois é melhor uma semente no lugar certo, exato, e isto dá pra planejar, aquela que já se sabe que irá vingar, do que uma braçada inteira de centenas de sementes que não vão chegar a lugar nenhum. Mas que semeador descuidado! Tem emprego pra ele? Deveria primeiro analisar o solo, o vento, controlar as aves; mas sai jogando sementes, como se as jogasse fora!


E o grão de mostarda? O inesperado grão de mostarda que cresce sozinho sem programação ou planejamento? Porque vai crescer, de um modo ou de outro, e quando o planejamento estratégico dos que queriam arrancar o joio é acertado, o dono diz, nada disso, sem alvos de limpeza, porque isso não se faz desse modo, e o ser humano, com planejamento e tudo, não conhece nada do que seja a vida e confunde uma coisa com outra, a outra com a coisa, faz o que não deve, e o planejamento não funciona, porque a vida não pode sequer ser reconhecida com precisão, está entrelaçada pelas raízes do que você não pode ver, e quando pensa que está fazendo uma coisa, faz outra, não adianta fazer isso, crescer e achar que isso é o Reino, quando é exatamente o contrário.

Depois, o Reino mesmo, é como um tesouro escondido que ninguém planejou encontrar, ninguém nem sabia que havia tesouro, e o sujeito vai e tropeça nele, estava ali e ele não sabia; ou ainda como uma pérola, que o negociante só tinha notícia por sonho e fantasia, só existia no imaginário da idealização; e não é que o cara se dá com a tal pérola? Única, perfeita, por acaso, sem planejamento, apenas com o sonho de um dia poder estar diante dela, embora ele mesmo não acreditasse muito nisso. Imagine o espanto! E o fermento? Dá pra planejar quanto vai render? Dá pra saber qual a qualidade de peixe que a rede vai trazer?

Então é assim, joga-se aqui, tropeça-se ali, um sonho é encontrado pelo caminho, noutro momento a vida cresce e vira outra coisa, o fermento vai até onde dá pra ir, depois termina no terminado. Joga-se também a rede e pronto, e não adianta dizer que a rede foi jogada a noite inteira e nada de peixe, porque quem conhece diz, lança de novo, do outro lado, e seu papel é só lançar, é a única coisa que você sabe fazer, então faça, e o pescador, que sabia tudo de pesca, joga só pra dizer que quem disse estava errado, mas não há de ver que a noite ruim de pescaria se transforma na grande pesca? Tão grande que seria a última, de Pedro é claro; depois quis ser pescador de novo, mas não deu certo, foi quando ele planejou o “vou pescar” e não pescou coisa nenhuma.

Por quê? Ora, porque “Abrirei em parábolas a sua boca; multiplicarei coisas ocultas desde a criação do mundo.” (Mateus 13.35) O mistério faz parte do desplanejamento, pertence ao mundo do espanto, se dá como possível esperança, mas ninguém sabe quando e se irá se deparar com ele; e não há planejamento estratégico capaz de fazê-lo se manifestar. Sequer dá pra avaliar os resultados. No Reino, o nosso papel, é um ir fazendo sempre, só isso.


Natanael Gabriel da Silva