“Os quais servem de exemplo e sombra das coisas
celestiais…” Hebreus 8.5
O complicado livro de Hebreus e que demorou para
ser incluído entre os denominados textos sagrados, tem um autor que já falava
do Eterno como aquele que tem uma reserva de sentido. Ninguém sabe se Hebreus é
um tratado, uma carta ou um sermão. Não é possível afirmar quem seria o autor,
nem quando teria sido escrito. Tem um judaísmo helênico como conteúdo, mas
segue uma estrutura literária judaica. O livro faz um contrabando do imaginário
religioso do Antigo Testamento, em seus ícones mais significatios e os supera
em significado transformando tudo o que era, como se não fosse, ou tivesse sido
apenas pela metade. Quando se pensava que o caminho do sagrado tinha sido
vencido, lá vem Hebreus assumindo o discurso da sombra. Do
imaginário religioso judaico o autor de Hebreus retira a eugenia a partir de
Abraão, o templo, os sacrifícios, a Lei, e por aí se vai, e os transpõe para a
pessoalidade, ou corpo, como diria Paulo em Colosensses 2.17, do Cristo. Deste
modo Hebreus transforma o que parecia real como sombra. Pensava-se que fosse
real, histórico e encerrado, com liturgia e código, mas tudo então é
transformado em rastros, no caso, sombras. Assim se dá o Cristo, que não é um
templo, no sentido objetivo. Nem Lei, no sentido positivo, ou um rito no
sentido estético. Cristo é pessoa, corpo, e não é possível um pertencimento,
com e nele, por meio do imaginário superado e tido como sombra. Com outras
palavras, Cristo, pessoa e corpo, interage com o outro por meio do
relacionamento, aproximação, interiorização e pertencimento. Não mais seria por
meio dos ritos, muito menos de templos. Ao pertencimento que torna o discípulo
pertencido a Cristo, o vínculo é chamado de fé. É por esta razão que o capítulo
da fé está em Hebreus. Esta é a substitutiva dos ícones do sagrado, que se
tornaram sombra, e se realizaram na pessoa. Todavia, acaba o autor de Hebreus a
penetrar em outra sombra, não limitada em sentido como a anterior, mas
exatamente em razão de seu contrário, por ter um excesso de significado; também
é sem a objetividade, como no caso das sombras que foram sucedidas, e igualmente
possui múltiplas possibilidades interpretativas.
Conversar sobre teologia é dialogar sobre estas
sombras. Todos igualmente procuramos, por meio da lógica de um discurso,
identificar os traços de quem lá está. E é quem mesmo, por não ser coisa, ou um
inventado. O segredo, e o que faz da teologia, teologia, é saber que Ele está
lá. O Cristo é o próprio conteúdo, mas tem que ser sombra para que não haja
aquele que O tenha sob domínio hermenêutico. Cada qual vai desenhando o
contorno que vê e é capaz de afirmar com toda a segurança que um dia conseguiu
limitar a sombra pelas palavras, juntou expressões, deu um corpo que parecia
ser o da sombra e irá defender o encontro como o sublime como se tivesse sido o
único possuidor e detentor do real sentido e conteúdo. Sairá fundando grupos,
organizando sistemas. Os tais serão objetivos, terão endereço, liturgia, escala
de comando com apóstolos e apostolas, comandará grupos com afirmações
categóricas que dará mais verdade ao conteúdo das palavras que tentaram
desvendar as sombras, e porque não dizer, a aprisionaram. Só que um dia este, o
possuidor e detentor do discurso único e correto, seja singular ou coletivo,
acaba. E o excesso de sentido, para a sobrevivência do imaginário que não pode
ser contido, permanece, sai do domínio das centenárias comunidades e suas
hierarquias e invadem as ruas, os becos, as casas dos pobres e lá se reconstrói
como sentido a desafiar os grandes sistemas, mistura-se com credos e ritos que
emergem sabe-se lá de onde, o que também é outra sombra, e que moram no
cotidiano. O absoluto permanece como sagrado e se revela no ocultamento do
mistério.
Nada me encanta mais que o excesso de sentido, do
que não pode ser apreendido ou limitado. Longe do ceticismo, mas bem longe
mesmo, me deleito na busca daquele onde a alma se dissolve, a partir do qual
tenho aprendido o que é a vida. Saio das sombras e encontro o outro, ou desço
do Sinai, ou da Transfiguração, e me deparo com o singular, a pessoa, o
coletivo da convivência, onde deve espraiar a cidadania e a fraternidade. Isso
porque trago da sombra o que busquei e encontrei. Pode ser chamado de amor,
misericórdia, ou graça, pois a sombra, ao contrário do se pode pensar, não é
vazia. Tem apenas um significado que não pode ser alcançado no seu sentido
objetivo. Quem procura o sentido, fica por lá a procurar e afirmar que de fato
encontrou, só falta melhorar o que já está compreendido, estudar o estudado,
conceituar o conceituado, e juntar um novo juízo para ficar ainda mais claro. O
barraco vai ficando cheio de detalhes, vírgulas, exegeses de textos e dos
textos que estão por detrás dos textos. Lá o morador das palavras não descerá
para as vilas e esquecerá o que de fato é um humano.
Sombras, mistério, paixão e graça são fontes, não
objetos.
Natanael Gabriel da Silva
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