sábado, 19 de julho de 2014

PACIÊNCIA PASTORAS, MUITA PACIÊNCIA!


Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu?  Mateus 7.4  

A expressão de Jesus, antes de qualquer coisa, se refere à obscuridade teológica.

Então estive presente, nessa semana, numa discussão inusitada. Uma organização, não expressamente bíblica (Ordem dos Pastores do Estado de São Paulo), tentava decidir sobre a não inclusão das pastoras (cuja ordenação é colocada sob suspeita de não ser bíblica), e se estas, biblicamente, poderiam pertencer à agremiação.

Não entendeu? Eu também não.

Karen Armstrong, que aqui entra para dar peso acadêmico ao discurso, diz que o fundamentalismo é mesmo muito contraditório. Não é pra menos, porque tudo gira pelo eixo do pré-conceito. Pré mesmo. O que vem antes do conceito e é mais puro, mais legítimo do qualquer outra coisa, pois está antes de tudo, e quando você já começa a pensar no assunto, não vale mais, porque pensar é estar no universo do conceito, e o pré-conceito, como diz, vem antes. Daí você tenta dizer que o equívoco está no fato de se tentar trazer para a vivência da igreja o modelo social da tribo, do tempo quando Israel ainda nem era Reino, antes de Saul, da época dos juízes; diz que a questão da ausência de mulheres no colégio apostólico pode significar um monte de coisa, que não é possível fazer exegese do que não existe, que a questão dos problemas da igreja de Corinto eram pontuais, que a tal da submissão da mulher no casamento não significa opressão, que casamento é uma coisa e a questão do gênero é outra, e cada um organiza a vida familiar como quiser; que não dá pra transformar possíveis regras de organização social em doutrina, senão teríamos que voltar pra tribo, sinagoga, ancião, roupão, e até o hebraico como expressão legítima e única da língua do sagrado; que a recomendação para as mulheres serem submissas não é dita para o homem; que Jesus valorizou as mulheres, que havia profetizas, que Júnia poderia ser mulher, blá-blá-blá, blá-blá-blá, blá-blá-blá.

Pois é, só que tudo está no universo conceitual, do questionamento, coisa que o pré-conceito nem dá importância. Não é uma questão de reflexão, mas de conceito antecipado, que nem conceito é, está antes dele, por conta disso o fundamentalismo reafirma que a ausência de mulheres no grupo de Jesus é proibição, que se há submissão da mulher ao marido, então uma casada não teria como pastorear uma comunidade, que os ditos de Coríntios, e somente os referentes à mulher, são válidos para todo o sempre amém. Então um amigo meu, que é contra a inclusão feminina, disse pra mim, Natanael eu respeito a sua opinião, e eu não to nem aí com o respeito dele, porque faz este discurso a partir da situação e quando a coisa virar, como é que vai ser? Vai fazer igual ao outro que criou uma ordenzinha particular na própria comunidade: dizendo-se bíblico, criou o que o texto não diz, mas vai reafirmar solenemente que se o texto não manda, pelo menos não proíbe, só que isso também só é válido nesse caso, e quanto às pastoras, que o texto também não proíbe, tem que ser interpretado de modo contrário, entendeu?. E se isso não for preconceito, desculpa aí, seria o quê?

Então fica nisso, um grupo não expressamente bíblico, tenta fundamentar biblicamente a não inclusão das pastoras, sem considerar biblicamente o preconceito, a desumanidade, a segregação, o que é o amor cristão, o sacerdócio real de todos os santos, e por aí se vai. E dá pra dialogar com esse discurso? É desumano, preconceituoso, retrógrado, medieval, de péssimo gosto, de hermenêutica e exegese ruins, de uma negação do próprio fundamentalismo porque faz exegese de palavra que não existe, e quando o texto não diz significa uma coisa, quando o mesmo texto continua não dizendo, se for no caso das pastoras, significa outra coisa. Tudo isso num mundo que prima pelo diálogo, igualdade de gênero, abertura, inclusão, liberdade e cidadania.

Um dia a gente cresce.

Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 17 de julho de 2014

O DESAFIO DO AMOR, DE NOVO



Aquele, pois, que sabe fazer o bem e o não faz comete pecado. – Tiago 4.17

Demorei pra sentar. O 371 estava lotado, e fiquei observando se o lugar que havia ficado vago, dava espaço. É que ao lado estava sentada uma jovem senhora, envelhecida, e que ocupava pouco mais de um assento. – Tenho oito filhos, e quatro netos, disse. – Hoje os filhos não têm nenhuma responsabilidade, casam e voltam pra casa, e ainda trazem as crias. O meu filho mais novo foi o juiz que me deu, o pai era um viciado, e a criança ia pra ser adotada; a minha patroa me ajudou, ela é advogada e promotora; o menino está agora com cinco anos, mas não é fácil, só quero trabalhar mais pra poder cuidar deles.

Ela não estava pedindo a minha opinião. Compartilhava a vida sofrida e o recebimento do filho adotado. Falou do marido que morava em outra cidade; lamentou, carinhosamente, o descaminho que ele sofrera por conta do álcool e que agora, depois de um acidente, se encontrava meio ruim da cabeça, disse ela. É claro que, se tivesse me perguntado, se deveria, sendo empregada doméstica, mãe e avó, adotar mais um, teria dito que não. Um redondo, sonoro e superlativo não. Mostraria a ela que num dado momento é necessário impor limites, não se pode dizer sim a tudo. Falaria como um herdeiro conceitual do mundo grego, o que de fato era o amor, mostraria as várias possibilidades interpretativas sobre o afeto, as nossas neuras em fazer tudo, até o que não podemos, só por conta de aceitação; dos sentimentos de culpa que nos impele, ou impede, de fazer isso ou aquilo, e certamente, aconselharia que avaliasse a vida emocional, e por fim, em hipótese alguma, recomendaria que alguém naquelas condições, jamais, deveria assumir outra criança.

Só que ela não perguntou. Acho que o menino de cinco anos agradeceu, sem saber, a pergunta que ela nunca fez, pois afinal agora tinha uma mãe-avó, doméstica, lutadora, com a casa cheia de outros filhos e netos, a enfrentar diariamente um ônibus lotado, depois de ter deixado almoço aos que ficaram, e a roupa a espera do tanque do período noturno. Uma faxineira e cozinheira que não sabe me explicar o que é o amor, muito menos escrever sobre ele; só sabe abrigar quem dela precisa, e ainda tem tempo de perdoar quem a abandonou; um coração largo, daqueles que parece ter sempre lugar pra mais um.

A gente é assim mesmo: sabe o que é amor, admira quem o abraça, mas via de regra nunca tem  coragem de fazer algo semelhante, ou pelo menos próximo. Saltei do ônibus, sem perguntar a ela pelo nome.

Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 15 de julho de 2014

UM POUCO


“Um pouco, e já não me vereis, mais um pouco, e me vereis.” João 17.16

Que quer dizer um pouco?

Um pouco é um pouco, ora. Espaço curto de tempo, alguns dias, entre a afirmação e a ressurreição, e nesse pouco estaria a totalidade da paixão. Então seria um pouco de alguma coisa, do tamanho da profundidade do sacrifício, mas apenas um pouco. Um pouco de traição, um pouco de beijo de quem esconde a miséria por meio do afeto, o que a torna mais miserável ainda. Um pouco o caminhar levando a cruz. Ser julgado um pouco, como um contra quem ninguém tem nada, mas será apenas um pouco. Um pouco para experimentar a solidão e o distanciamento do amigo que precisará de um galo pra se lembrar de mim, nada mais que um galo se tornando mais importante que uma história de vida, mas isso será apenas um pouco. Um pouco de jardim da agonia, um pouco de sangue, um pouco de conversa, frases curtas sobre oração, outras frases curtas sobre o sentido da verdade na presença do governador e juiz, mas será apenas um pouco. Carregar a cruz será um pouco, para fora da cidade porque um banido e impuro jamais poderia ser crucificado no centro da santidade histórica e o lugar será deslocado um pouco, vai sair do templo para o monte, e o tal monte se tornará o símbolo da vida enquanto o templo continuará tendo no seu pináculo o domínio do mal, quem lá no começo ofereceu a socorro dos anjos, mas isso é quase nada, é apenas um pouco. Depois um pouco de nudez, um pouco de humilhação na presença de todos.  Cravos nas mãos e nos pés, mas será apenas um pouco. Feridas? Apenas um pouco, um pouco de vinagre, um pouco de lança. Será rápido, mas alguém irá ganhar no jogo as roupas daquele não irá precisar mais delas, mas isso será apenas um pouco. Coisa curta, coisa rápida, coisa que quando se dá conta, já foi, por conta disso será apenas um pouco. Depois um pouco de morte, e então virá a vida.

Só que a preocupação não está no pouco do sofrimento. É que os que não sabem o que é um pouco poderão entrar em desespero. Algo que apontará um esvaziamento, como se um pouco, pudesse ser muito, travessia de poucos dias que parecerá uma eternidade, daí  tristeza, incerteza, medo e ameaça de abandono. O pouco parecerá muito, pois sempre quando se olha para o próprio sofrimento, o tempo cessa como se nunca mais fosse voltar a ser contado outra vez, daí o pouco deixa de ser pouco, e vira muito, insuportavelmente muito. Mas é isso, um pouco, é apenas um pouco, um momento apenas, como se não fosse importante, como se a dor não fosse grande, como se a morte não fosse morte, porque afinal de contas, não será mesmo. Será, e não será, e muita gente vai gastar tempo depois a questionar isso, se houve mesmo morte ou não. O importante não é isso. O importante é o pouco. Passa rápido. Nada de abandono. E quando a vida brotar, pouco depois, será possível compreender que o muito sofrimento fora, de fato, apenas um pouco.

Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 10 de julho de 2014

ACEFALIA




“Não deis aos cães as coisas santas, nem deiteis aos porcos as vossas pérolas; para que não as pisem e, voltando-se, vos despedacem.”

Cães e porcos não são metáforas de pessoas, individualmente consideradas. É a massificação religiosa, acéfala, animalesca, que pisa sobre e onde não deve, não sabe reconhecer a humanidade de quem distribuiu virtude, e ainda desconhece o valor da vida, pronta sempre aos atos de bestialidade e morte. Não, não era exclusividade do judaísmo antigo. A conversa era com eles, mas a interrupção do discurso sobre o nunca julgar, seguido por uma finalização evocando a hipocrisia, fez o redator concluir tal hipocrisia com a bestialidade, e nisto está o superlativo literário. Do julgamento (7.1), à hipocrisia (7.5) e à bestialidade (7.6), caminho aberto pelo fascínio religioso que não entende o ser humano, como humano, mas é defensor de sistemas e credos.

Tinha que começar com o julgamento, pois este se dá como balança entre o bem e o mal, o bom e o mau, o incluído e o excluído, o pertencido e o marginal, o encaixado no credo e o disforme diferente; coisa de hipócrita mesmo como se todo o ser humano não fosse uma coisa e outra, como se a vida não fosse um pêndulo de indecisões que precisa ser constantemente avaliado para si, e badalasse apenas de um lado; coisa bestial, acéfala, de quem é capaz de pisar o que há de mais nobre, e ainda ameaçar o interlocutor não apenas de morte, mas o de fazê-lo em pedacinhos, com o ódio próprio de quem não sabe, nem de longe, o significado do que seja amor, por mais que reafirme, nos ditos e nos credos litúrgicos, o amarás a Deus de toda alma e coração.

Às vítimas da acefalia, ou vítimas da religião se preferir, continua o redator: pedi, e dar-se-vos-á,buscai e encontrareis; batei, e abrir-se-vos-á (7.7). Não será possível conter a bestialidade da religião que, em nome de Deus, dilacera e mata, sem piedade, mas será possível encontrar uma porta no meio de tanta busca. A imagem do verso 7 é urbana, de uma Jerusalém feita por becos, e os vitimados por conta da bestialidade a correr em busca de refúgio e socorro. Finaliza o redator, com um texto resumo sobre leis e profetas pouco enfatizado, por conta de sua força antropológica: “Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque este é a lei e os profetas.” (7.12)

Com outras palavras, a bestialidade começa pela hipocrisia, que começa com o julgamento. Só que o verdadeiro cristianismo começa pelo outro, (onde eu também estou) pessoa e alvo do amor de Deus.

Natanael Gabriel da Silva