segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

AS CONTRADIÇÕES DA HUMILDADE

“Mas, mesmo que quisesse gloriar-me, eu não seria louco, porque estaria dizendo a verdade. No entanto, abstenho-me de fazê-lo, para que ninguém pense de mim além do que em mim vê ou de mim ouve, até mesmo sobre essas extraordinárias revelações.” – II Coríntios 12.6 e 7a.

Humildade é como o tempo no presente, quando se toma consciência dele, já passou, não é mais e se perdeu.

A humildade é contraditória. Você precisa estar e ser consciente de quem é, saber da própria condição, que espaço ocupa, potencialidades e sonhos. Só que você, mesmo sabendo de si, deve dar espaço para que o outro seja considerado como mais importante que você. Não se trata de hipocrisia, e a diferença está na pureza sincera do procedimento e reconhecimento. Também não é o comportamento politicamente correto, porque não é manipulação. Nem inconsciência, porque seria um desconhecer-se. Muito menos inferioridade, porque aí se daria como patologia. Trata-se do saber de si, como também do outro, e depois dar-se como um aprendiz da vida numa subordinação consciente e livre. O outro poderá julgar errado, projetar-se e tentar ocupar um espaço que não pertence a ele, e o humilde ao mesmo tempo em que se reserva à defesa para cuidar de si, não modifica o comportamento em relação ao outro, porque terá que vivenciar a humildade como uma adequação entre quem é e o que pode ser chamado de mundo. O outro não entra nesta equação primeira, só depois. Entra como aquele que se dá diante de quem se porta com humildade. Não é preciso dizer que a humildade é antinatural, tem que ser provocada e vivenciada entre o ser e o mostrar-se. E distância é antagônica. Uma coisa e outra não se encaixam, não são similares, nem necessariamente próximas, e fazem parte da mesma origem como ponto de partida. Simplesmente uma contradição, consciente e assumida; contradição esta que se avoluma na medida em que as virtudes e o crescimento pessoal, como o intelectual, se desenvolvem. A proporção é inversa, quanto mais vai somando conteúdo, experiência e vida, mais terá o humilde que se esforçar para alcançar o outro, mais diminuição terá que fazer para ser um igual e se possível menor.

Agora, quando o que se apresenta como humilde assume, por um lampejo, a consciência das próprias qualidades, virtudes, conhecimento, formação ou posição, já se deu ao mesmo tempo vazio de tudo isso. A humildade é a limitação consciente de tudo, para que o tudo permaneça no lado de dentro. É sufocante, eu sei, e tem hora que não é possível suportar. Paulo não suportou.

Daí a crise. O desejo de Paulo era o de querer ser visto, a partir de fora, de como ele realmente era, por dentro, mas sem mostrar-se. É claro que o apóstolo não conhecia a janela de Johari, ou o que é apenas visto pelo outro, e até mesmo o eu completamente oculto. Não seria possível exigir dele um crescimento pessoal por meio de algum feedback. Se fosse assim, talvez tivesse se defendido menos e aprendido mais.  O assunto que Paulo abordava na carta tinha a ver com um julgamento prévio e condenatório que alguém havia lhe imputado. Precisou legislar em causa própria e ninguém consegue fazer isso a não ser dando um basta na humildade. Caiu na armadilha, e expôs sobre si e tentou estabelecer uma leitura pelo menos razoável das qualidades que julgava possuir. Ele diz, depois diz que não deveria ter dito, lamenta a situação imposta e fica nisso, porque vai e retorna, não querendo ser, mas sendo, não desejando mostrar-se, mas fazendo exatamente isso. Não era uma questão apenas pessoal, eu sei, pois estava em jogo a fraternidade comunitária, mas nem isso justifica. Ficou deste modo, e não podia ser diferente, porque as contradições da humildade, ser e precisar ser, simplesmente não se resolvem.

Assim, talvez, seja possível entender melhor o tratamento dado por Jesus sobre o vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque eu o sou. É o miolo e coisa que só a humildade explica, ou não explica, e faz: lavar os pés uns dos outros, como ato consciente, voluntário, livre, fraterno, leal, honroso, submisso, deliberado, diligente, sabedor de si, do outro, e que faz com que aquele que lava continue sendo sempre quem foi, mas modifica a vida de quem é lavado. Este, por outro lado, sabe não ser merecedor, mas não consegue dizer não à nobreza de um ato quase incompreensível.

A humildade é contraditória e incompreensível e é incompreensível porque é contraditória. Não é uma escrita em linha reta, mas vai além da linha. Se tivesse linha, não seria humildade, porque a humildade não tem suporte, apenas direção. Se terminar, onde e quando termina a linha, não é nada. Será menos. Na melhor das hipóteses apenas alguém igual num mundo de vaidades, cheio de pessoas vendendo a própria imagem em liquidação como feirante a vender bananas, aos berros e em busca de auditório. Não é pra menos que os humildes de espírito, diz Jesus, serão bem-aventurados.

Natanael Gabriel da Silva

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