domingo, 31 de julho de 2016

O DOUTOR


“Ai de vós, doutores da lei, porque retivestes a chave do conhecimento; vós mesmos não entrastes e impedistes os que desejavam entrar.” – Lucas 11.52

Doutor aqui é o intérprete de tudo o que é sagrado e é capaz de dizer, ensinar e determinar os passos, pé por pé, de como se deve fazer para agradar o Santo. O doutor possui a chave, porque detém autoritariamente o modo correto de interpretação, estabelece parâmetros e exigências para descortinar a verdade, como se fosse um espaço que só poderia ser compreendido e interpretado por ele. É isso que torna o outro dependente, serviçal, escravo, impotente e vítima do discurso. O doutor conhece os originais dos originais, esconde os trâmites e dúvidas das contradições textuais. Nunca irá confessar que há muito se estuda os primeiros versos sobre a Criação como poesia, mas não saberá nem o que isso significa e ocultará a informação aos dominados, com medo de que possam perder a fé. Achará que a poética é menor do que Lei e não saberá guiar a vida por princípios, apenas pelo império da norma. Deste modo o doutor oculta os questionamentos e os tenta superar com a explicação de que, afinal de contas, a fé não pode ser compreendida e interpretada completamente. Nisso o doutor tem razão, mas só chega nesse ponto quando não mais tem resposta, e acaba por se tonar este um esconderijo hermenêutico, com uma porta de saída do outro lado da gruta que ninguém conhece. Então, quando consegue a façanha, sai pra respirar pela porta artificial, como se tivesse vencido a dúvida sem resposta, para manter o domínio do que chamaria de essencial e necessário. Há um pouco que se deve conhecer bem conhecido, reafirma o doutor, confirmado e compreendido a partir do original, e este pouco é suficiente para levar ao cativeiro o cativo mediante apenas uma conjunção adversativa: mas. Coisa do tipo: Deus é amor, mas é também justiça; e o “mas” fica na memória do condenado à privação da liberdade, numa interpretação ruim e que coloca dimensões éticas opostas, como se o Perfeito fosse capaz de um algo diminuído por outro; atributos contraditórios que bem poderiam ser expressos no inverso, ou seja: Deus é justiça, mas é também amor – assim eu nunca ouvi, pois este discurso é libertário demais para quem não consegue sobreviver sem a justiça como instrumento de poder, mais humana que divina; imposta e interpretada como sentença condenatória. Sabe por quem? Pelo doutor, é claro! Assim o doutor mantém a autoridade e empurra a vítima do discurso para dentro da caverna, sem dar-lhe o mapa de uma saída, que o próprio doutor não tem, mas isso jamais irá confessar. Assim, o doutor que diz saber de tudo e autoridade letrada e estudada no assunto, vai indicando os passos para o cativo e que sempre acabam numa parede sem porta. Até pra voltar o aprendiz terá que depender do discurso renovador do doutor. Ele irá chamar as barreiras, e os becos do labirinto, de pecado, dirá das limitações do condenado, afirmará sua falta de fé, porque quem não encontra a porta, só não acha porque não tem fé. E o doutor trocou a pessoalidade da porta de João 10.9 pelo estudo sobre a porta, ou fez o salto do Cristo para cristologia como diz Harnack. Fez isso porque uma porta pessoa não permite o exercício do poder. Fez isso e se perdeu. Não haverá saída, porque o doutor é o Doutor das letras e dos escritos, o Hermes a interpretar a linguagem dos deuses, seja esta textual ou sobrenatural, e soma à autoridade da letra, o domínio das forças do mal, e lá vai o doutor dos milagres curar os famigerados e infelizes de todos os tipos de infortúnios.  Ficam os cativos escravizados pelo êxtase e momento quando o milagre, distorcido de seu evento social e cultural, se der então como realizado. E tem milagre todas as horas, é uma fábrica de milagres que tornaria o Ford e sua linha de produção, coisa de criança. Assim como nas fábricas de automóveis, os milagres dos doutores do sagrado não acontecem nas ruas, pelo caminho, no encontro com os miseráveis, nada disso. São milagres de templos da produtividade, suntuosos templos, cheios de assombro para que o milagre pareça ser ainda mais milagroso, cantoria e voz profética dentro da fábrica e suas máquinas em linha. Fica o milagre cativo feito produto como se o mundo não fosse o lugar da manifestação do divino.

Mas, aos doutores, tem um ai de vós pela criação da carga colocada sobre o outro, seja de medo, dúvida, dependência ou exigência (Lucas 11.46). Tem um ai de vós pela distorção da história e o uso ideológico do discurso (Lucas 11.47); tem sangue e morte, porque o doutor das letras e do sagrado mata sim o seu próximo e não raras vezes se apropria de seus bens. E se retroagir no tempo, sentenciava Jesus, irá encontrar a presença do manipulador, cuja conduta se repete, desde quando é possível de se falar de ter havido existência (Lucas 11.50,51).

Pois é, só sei que o Evangelho da Graça e do Amor, o Evangelho Maltrapilho, como diria Brennan Manning, continua escondido. Tão escondido que fica difícil saber o que de fato significa.

Natanael Gabriel da Silva



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