segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

NATAL DOS ANJOS

“E eis que um anjo do Senhor veio sobre eles, e a glória do Senhor os cercou de resplendor, e tiveram grande temor.” Lucas 2.9

A felicidade foi dos anjos, mas o nascimento de Jesus não era, necessariamente, para eles. De certo modo sim, de certo modo, não. Era para as pessoas. Não somente pessoas, mas abandonados, rejeitados, doentes, marginalizados e sem futuro. Você pode achar que os seres celestiais exageraram, ou será que somos nós que valorizamos de menos? Pra ter havido tanta festa, não era pouca coisa. Finalmente os esquecidos teriam alguma oportunidade. Pessoas comuns, sem nomes, que ficavam esperando um milagre, também de um anjo, como no poço de Betesda, por exemplo. Um anjo, que nada falava, descia e agitava água e quem chegasse primeiro, levava a bênção. Coisa que ninguém explica direito ou sabe dizer a razão e o modo. Miseráveis da esperança remota, aguardando um anjo que viria. Quando? Ninguém sabia.

Naquela noite também ninguém esperava. O texto não menciona se havia doentes ou necessitados. Com certeza não estavam prestando nenhum culto, talvez nem orações, e o que os pastores estavam pensando, é outra coisa que não dá pra saber. Surge o anjo, do nada, para o mistério ficar ainda mais misterioso. No silêncio da noite, possivelmente calma, balido de ovelha, céu claro e limpo e num estrondo, aparece um anjo sabe-se lá de onde. Rompeu o silêncio de uma vez só: estava acontecendo o centro da história. Talvez os pastores não soubessem o que seria história, muito menos se teria centro, mas o anjo não fez cerimônia e foi logo anunciando. Se não tivesse havido anjo, alguém saberia do nascimento de Jesus? Essa não é uma pergunta séria, porque o sério era a celebração. O anjo solenemente, como nas festas da chegada dos reis e imperadores, entrou de uma maneira tão esplendorosa que o texto de Lucas diz que a Glória do Senhor os cercou. E foi conversar logo com pastores. Poderia ter sido com os líderes religiosos, mas não é sempre que quem detém o poder religioso entende das coisas de Deus. Antes de nascer, Jesus já mostrava o seu cartão de visita. Daí o lugar ficou majestosamente santo, e o anjo anunciou como se fosse, acredito, uma trombeta aguda numa solenidade real: - Não temais, porque eis aqui vos trago novas de grande alegria. Em seguida apareceram os seres celestiais em cena. É um crescente estético, um momento apresentando e descortinando outro, cada parte com a sua beleza e sentido, até que o céu se despencou em cânticos. Nunca mais se poderia dissociar Jesus de seu berço, animais e estábulo, longe do templo, dos sistemas religiosos que tinham pervertido a religião, quando a vida com Deus é coisa simples, como o estar num barraco, e o lugar sagrado já não seria mais Jerusalém, mas o campo. Lá fora, chamado de mundo, numa estrebaria, que abrigou um casal sem teto, noutra cidade, na verdade uma vila, lugar desprezado e esquecido, e foi lá que o anjo apareceu, os seres celestiais também e o céu se tornou em festa. Festa que deveria ser mais nossa que dos anjos, mas foi assim.

Céu e terra, tempo e eternidade, pessoas e anjos, noite que virava dia e manjedoura que se transformava no abrigo desabrigado mais comentado da história. Tudo estava junto e acontecendo ao mesmo tempo. Parecia um lago quando reflete o céu e você não sabe direito o que é céu, nem o que é lago, e os dois que são belos separados, se tornam mais belos ainda quanto estão juntos. Foi assim naquele dia, e Deus tocava a história humana com as próprias mãos, ou melhor, com o corpo inteiro. A nossa história nunca mais seria a mesma.

 pr. Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

SIMPLICIDADE E PUREZA

“Jesus sentou-se em frente ao cofre das ofertas e observava como a multidão colocava dinheiro no cofre.” (Marcos 12.41)

Jesus, nesse tempo, já estava em Jerusalém. O cenário era outro e a vida urbana da cidade tinha outra cadência e preocupações. A miséria do desamparo, na região da Galiléia, centro-norte da Palestina, havia ficado para trás. Ficara também a multidão de famintos que o seguia esperando mais uma multiplicação de pães e peixes. O discurso do Templo é suficiente para mostrar que o ambiente não era mais o do acolhimento, mas do conflito, o que Jesus já sabia por antecipação. Ali estava o centro de uma religião que não precisava de Jesus, e sequer o poderia incluir.

Por conta disso foi possível sentar sem ser rodeado. Ninguém perguntando nada ou esperando alguma coisa. Foi Aristóteles quem disse que só se produz filosofia com o ócio. Seria difícil imaginar o quanto a vida pastoral precisa disso, pra pensar, escrever, pregar, criar situações e resolver problemas que aparentemente não teriam solução, e não sei quantos desses resolvi nas longas conversas com a minha parceira ao redor da Lagoa do Taquaral. Lá escrevi muitos textos, elaborei sermões, encaminhei soluções às dificuldades da Igreja e outras da Faculdade Teológica, e fiz longas orações. Acho que Aristóteles tinha razão, e se filosofia e qualidade de vida são, de certo modo, próximas, então isso explica a nossa incapacidade de pensar e resolver problemas com a calma e paciência que a costura exige.

Foi na calma e paciência que Jesus sentou. Do seu ócio, nasceu a história da viúva sem nome. As observações dele, incluídas as daqueles dias, tornaram-se cultura e modelo: Deus não se vende, e a riqueza está no coração. Uma pessoa sem nome pode ser mais importante que muita gente, e duas moedas podem ter mais valor que uma fortuna; que a verdadeira espiritualidade não reside nas orações litúrgicas e nos grandes momentos de celebração quando o sagrado se mostra luminoso, mas às vezes está do lado de fora, onde as intenções do coração emergem na vida e atitudes. A viúva nunca soube que tinha sido observada; talvez Jesus tenha sido para ela um desconhecido.

Simplicidade e pureza. Até Jesus parou pra ver.
Pr. Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

NO PAPEL E NO ROSTO

“Esta é a frase que foi escrita: MENE, MENE, TEQUEL e PARSIM.” – Daniel 5.25

Fui procurado, várias vezes, por pessoas queridas que não gostam muito desse negócio de se projetar o texto bíblico na tela, via datashow. Por um lado, a justificativa é a perda da espiritualidade, ou se preferir, o texto fica menos sagrado. Por outro, dispensa trazer os textos pros cultos e daqui a pouco ninguém vai mais encontrar nada em lugar nenhum: tadinho do livro de Habacuque, sabe onde fica? Já escutei reclamação até em casa. Pois é, tem um pouco de verdade nisso, mas projeção por projeção, não fui o primeiro, nem serei o último. Um dia, no tempo de Daniel, o texto foi parar na parede. Em tábuas de pedra, a gente já conhecia da época de Moisés. Daí um aluno um dia me procurou pra perguntar se havia algum texto original, original mesmo, escrito pela mão de Moisés. Disse a ele que não, e que até as tábuas da lei eram cópias: as primeiras o próprio Moisés jogou e quebrou num ato misturado de indignação e fúria. Bíblia não se joga, e quem fizer isso não sobrevive no nosso meio. Moisés fez, não aconteceu nada, mas Moisés era Moisés.

Daniel também era Daniel e quando se deparou com o escrito, que não estava num pergaminho, ou no sagrado templo, mas na parede e num lugar que chamar de profano seria pouco, não teve dúvidas: a Palavra de Deus pode ser escrita em qualquer lugar. A parede talvez não fosse o mais adequado para alguns, nem o ambiente de Belsazar que era o cúmulo da carnalidade, mas lá estava a Palavra, e fez efeito. Pros antigos, a festa parecia um carnaval, pros mais jovens, seria Rave. Só que, se o lugar era ou não impróprio, importa que o texto apareceu bem no alto e grande. Grande? Enorme, isso sim, e na minha imaginação estava em vermelho, Arial Black. Era uma sentença de morte para Belsazar e que ficara devendo pra balança. Gente ruim esse tal de Belsazar, irônico bebeu o vinho da festança nas taças sagradas do templo, talvez desejasse ser deus pra fazer uma coisa dessas. Daí veio a mão, o texto, a acusação, a sentença e a condenação. Belsazar não passou daquela noite. Agora, que o texto estava na parede, estava mesmo, e a profanação não estava no fato de ter sido escrito lá, mas no modo de vida de quem celebrava o que não devia, e se dava como senhor de si.

O texto pode estar num livro, na projeção, na parede ou no rosto de alguém, e isso não o diminui. Um dia Jesus olhou pra uma mulher num poço e leu o que estava em seus olhos, narrou sua história, disse de sua vida e não precisou nem de papel. Porque a Palavra de Deus está no papel, na parede, na vida, e será sempre Palavra do mesmo jeito. Tem gente que acha que guardar a Palavra no coração é decorar leis e regras, minúcias, endereços de textos, e coisa do gênero, porque acredita que o texto está no papel e não na vida. E qual foi a primeira palavra de Jesus, depois de ter sido confrontado pelo mal por quarenta dias? Lembra? Pra Mateus, um judeu cristão, Jesus reescreveu a Lei no Sermão do Monte. Agora, para Lucas, Jesus entrou na sinagoga e declarou a vida “O Espírito do Senhor está sobre mim”. Pra que? Para pregar as boas novas aos pobres, proclamar liberdade aos presos, dar vista aos cegos, libertar os oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor. Todas as expressões se referem a pessoas, gente perdida e sem rumo. Pessoas são textos vivos, com as quais nos encontramos, dialogamos, amamos ou oprimimos. Colocar a Palavra no coração, ou ter o Espírito do Senhor, tem a ver com o que se aprende com o texto, como este pode ser aplicado a si, ao outro e à vida. Acho que foi isso que Jesus fez.
pr. Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

COMO SE FOSSE

“Israel é uma vide frondosa; dá fruto para si mesmo...” – Oséias 10.1a
Depois continua o profeta dizendo algo mais ou menos assim, a respeito do Senhor: Se dou comida, eles sacrificam e agradecem outros deuses, se dou árvores, transformam seus troncos em ídolos. Não posso dar nada pra eles.
Isto deve ser muito difícil: Deus ter o amor para derramar, e não poder fazê-lo.
Uma vez disse a um amigo, músico, poeta, que tinha paixão em falar sobre Nietzsche, brigado com a vida por conta de sua sensibilidade, não entendia nada do nosso consumismo desenfreado, não sabia nem ganhar, muito menos gastar, e tinha que ser só para ser mais autêntico: - Você agride o mundo com a sua arte. É o seu modo de resistência. Continuei: - Deve ser muito difícil não conseguir dialogar com a vida.
Eu sei que ele sabia disso. Fernando Pessoa também sabia quando afirmou ser o poeta um fingidor. O músico olhou com surpresa, passou a mão pela barba mal cuidada e interrogou com o rosto como seu eu tivesse entrado no seu universo mais íntimo. Depois riu largado, e ainda estou vendo os seus olhos pequenos e a cabeça sendo jogada para traz. Dei-lhe um abraço e ganhei um amigo.
Não chegaria ao limite de afirmar que às vezes acho que o Senhor não sabe direito o que fazer com o próprio amor. Tem hora que isso passa pela minha cabeça, confesso. Só sei que o ser humano às vezes, ou quase sempre, dá fruto pra dentro. Cresce ao contrário e se apodrece ou atrofia, isso eu não sei. Ele se enche do que tem, como se fosse dele, pega o que não lhe pertence e faz o que não deve.
Coisa pra se pensar, não é?
pr. Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

UM GEROU OUTRO, QUE GEROU OUTRO



“Jacó gerou José, marido de Maria, da qual nasceu Jesus, chamado Cristo.” Mateus 1.16

Pode parecer lugar comum, e talvez você nem compreenda a diferença entre os Evangelhos, mas Mateus começa a narrativa sobre Jesus recuperando o histórico da tribo, um gerou outro, que gerou outro, e assim foi. Lucas começa com a pesquisa. Isso é quase engraçado porque, sendo grego, estava mais preocupado com a exatidão dos fatos narrados, comentados, aumentados, cortados, mitificados e distorcidos nas inacreditáveis conversas que se tinha sobre Jesus nas ruas. Daí resolveu pesquisar. 

Mateus focou no fato de ser Jesus o filho da promessa. Filho da promessa que nasceu numa linhagem de um povo eleito e especial para Deus. Eu sei que o texto de Mateus é nacionalista demais pro nosso gosto. Ninguém hoje iria tentar mostrar que Jesus é o Salvador só por conta de ter sido filho do filho do filho de tanta gente de raça pura. Até porque “raça” é um termo que já está indo embora. Já vai tarde, também concordo, porque em nome da “raça” muita gente matou, diferenciou tipos de pessoas só pelos traços genéticos e daí você vai precisar ler Nina Rodrigues.

Pra mim, que não sou judeu e quase não entendo de raça e gerações, Mateus traz a notícia pelas gerações que Jesus foi, e é, pessoa. Fez milagres sim, andou pela Palestina, conversou e discordou dos imperadores da religião, orientou um pequeno grupo de seguidores mais próximos, entrou em Jerusalém montado num jumento e saiu de lá carregando uma cruz. Pessoa, ser humano, cheio de sentimento e visão de mundo sobre a vida. Pessoa da voz, não deixou nada escrito, porque a vida não cabe num texto. A voz é o discurso da liberdade e não se faz exegese de milagre, só do texto. A vida escapa, os milagres também e a voz anunciada no Monte foi primeiro para o coração, depois para o texto. “Bem-aventurados os pobres de espírito, pois deles é o reino do céu.” Quem estava lá, ouviu, viu a expressão da face, o gesto com os braços, e para quem Jesus olhava diretamente naquele momento, ninguém sabe. Num dado momento declarou parábolas que até hoje são um fascínio, sempre novas e parece que ninguém nunca irá chegar à interpretação única e final; noutros momentos reuniu os amigos e fez longas declarações, verdadeiros tratados teológicos do tamanho da nossa história; versos instigantes que ora você pensa que é poesia, depois vê que é vida e finalmente se vê no texto e entra como personagem pra fazer parte da narrativa, e no semeador que saiu a semear você se dá com as próprias mãos se abrindo para lançar a liberdade, depois descobre que o semeador não deveria ser você, mas fica assim mesmo porque o que fora sentido não pode ser apagado e assim você já entrou na poesia e se viu lá também como chão onde cai a semente e diz: Isso é comigo! Você se torna narrador e personagem ao mesmo tempo; se vê na história e tem saudade de não ter estado lá.

Jesus pessoa, filho do filho do filho.
pr. Natanael Gabriel da Silva

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

"Êh, DOIS!"

“... e serão dois numa carne.” Efésios 5.31c

“Êh, dois”, dizia a minha sogra quando desejava comentar alguma coisa que Jesuina e eu tínhamos feito, ou pretendíamos fazer, meio reprovando, meio admirando, mas com muita afetividade. Os filhos ainda fazem isso, e quando duma observação ácida, começam: “Vocês dois, blá-blá-blá". Outro dia, um colega, pastor, já nem me lembro do contexto, conversando na monotonia e informalidade de acampamento pós-almoço, disse: “É muito engraçado, a gente nunca pensa em Jesuína e você como duas pessoas separadas, mas sempre como uma coisa só”, e fez o gesto com as mãos. “Coisa só” foi boa, e já falou rindo. Entrei na onda, uma risada não se perde, nem no banco do carona.

É, não teria sido assim se tivéssemos navegado ao acaso. Nisso acredito que ainda somos muito tribais e o “...serão ambos uma única carne” é como se fosse um traço biológico, automático, e que vem como garantia de fábrica. Lembro-me dos tempos de loja, dizíamos ao comprador: “Garantia de três meses e assistência técnica permanente”. Ou seja, caso em três meses dê defeito, o conserto fica por nossa conta. Agora, depois disso traga que vamos estar sempre aqui pra consertar. Acabou não sendo verdade porque a loja já fechou, o prédio foi demolido, os donos faleceram, e o permanente não permaneceu.

Pois é, casamento tem assistência técnica permanente, e nem sei quantas vezes o Senhor teve que intervir pra consertar o que quebramos. Depois, com o tempo, escrevemos o próprio manual. Diferente da máquina que envelhece e enfraquece, o casamento parece que, quando fica bom mesmo, acaba, e já é “tempo de morrer” (time to die), como diria o personagem no impagável diálogo em Blade Runner, sob o som de “Tears in Rain” de Vanguelis.

Quando a gente escreve o próprio manual e vira gente, daí o casamento fica bom, e vai ficando bom aos poucos, ou não, pra quem tem aversão a manuais. É muito difícil escrevê-los, pois o de outros não dá pra entender, vem escrito em mandarim. No “uma só carne” não basta deixar de fazer o que é errado, mas agir e provocar ações que sejam afirmativas e que tenham valores. Uma coisa é o funcionário que faz o que deve fazer, outra é o criativo, o que apresenta sugestões e vai por onde ninguém foi. A vida conjugal não precisa de gente batendo cartão e cumprindo horário, tem que se dar desbravando. Aquele que vai escarafunchando, persistindo, entrando no mundo do outro, abrindo caminho, construindo estradas, pontes, e enquanto anda, escreve o próprio manual, faz as anotações, compara o amor encontrado nas andanças com o da nota do fabricante, e bota o pé na estrada. Haja quilômetros porque, quando me casei, não sabia que o caminho pro coração fosse tão longo. Um metro e meio de gente que virou zilhões de quilômetros. Êta caminho comprido, sô! Depois é desenhar o mapa, e o entra e sai já está memorizado. Um dia entra de mala e cuia e não sai nunca mais.

Por isso, quando você olhar para alguém que sozinho não faz sentido, talvez esteja diante de um holograma. As verdadeiras pessoas estão uma dentro da outra, ou como diria o Chico, “se na bagunça do teu coração, meu sangue errou de veia e se perdeu”. Não só o sangue, a pessoa completa e por inteiro; só que também não se perdeu, mas se encontrou.

pr. Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

SONHO DE CRIANÇA


“Quanto Israel era menino, eu o amei, e do Egito chamei o meu filho.” – Oséias 11.8

Ingenuidade, o começo,o  antes da corrupção, o anterior a qualquer coisa. Da ingenuidade da meninice veio o amor, e do amor a libertação. É assim que Oséias traz a memória do lamento do Senhor sobre o seu povo. Lamento derramado em tristeza e, de certo modo, sem compreender muito bem a razão pela qual uma juventude tão linda teria se transformado numa maturidade tão rebelde. 

Um menino escravo, mas menino. Na meninice, acreditava na esperança da libertação. Respirava o dia em que isso fosse acontecer. Coração centrado; era isso. Expectativa e o olhar cravado no futuro na convicção de que não seria sempre daquele jeito. O tempo futuro funcionava como cordas que puxavam a vida para frente, assim como uma criança é puxada para a maturidade, e vai ter que crescer. Vai deixar as coisas de criança e alcançar o futuro. Quando chegar lá, fará o quê? Cresceu e o que fez da vida? Parou de olhar o futuro, ficou sem alvo, sem objetivo, achou que a libertação já estava conquistada, que Deus era sua propriedade, que não precisava mais sonhar com o paraíso porque o paraíso já tinha sido conquistado, e foi assim que murchou.

Creio que o lamento de Oséias tem a ver com isto: a vida só se alimenta de crescimento e desejo; ela anda através dos sonhos que vitalizam o corpo para caminhar na direção deles. Os sonhos são as trilhas do futuro. Para Oséias o povo havia deixado de sonhar em andar com Deus. Um sonho cada vez mais abandonado no nosso tempo. Sonho de servi-lo num dia novo que se abre; num ano novo que se aproxima.

Pr Natanael Gabriel da Silva


domingo, 27 de novembro de 2011

DE VOLTA PARA CASA


“Que homem dentre vós, tendo cem ovelhas, e perdendo uma delas, não deixa no deserto as noventa e nove, e não vai após a perdida até que venha a achá-la?” (Luc 15:4)
              
Foi numa tarde como tantas outras e o pastor, após o terminar o dia, empreendeu a costumeira contagem das ovelhas. Pela manhã saíra a buscar os pastos verdejantes. Era uma conquista diária, numa terra inóspita que nem sempre tinha o que oferecer. Cada dia uma batalha.

A contagem era rotina, monótona, mas tinha que ser feita. Naquele dia, porém, faltava uma. Só uma. De cem, uma. Nem sequer imaginava como teria acontecido, mas aconteceu. Ovelha é assim mesmo, mesmo vigiada, some. Você não explica, eu também não, e parece caso perdido; quando o pastor menos espera a ovelha vai embora. Vai caminhando com os olhos grudados no chão; não olha para o horizonte. Aí não dá outra: quem só olha pro chão, via de regra, se perde. Quando deu por si, já era tarde, noite entrando, silêncio no barulho do vento. Buracos acontecem, e o ruim às vezes fica pior. Se ela caiu, não sei.

Ao terminar a contagem, o pastor não teve escolha. Fez o que qualquer pastor faria. Saiu no encalço. Não pensou duas vezes: deixou as outras noventa e nove e empreendeu a busca. Estava mais preocupado com a perdida que com as outras, porque nesse caso um vale mais que cem. Não era uma questão de valor, porque as coisas não se medem assim. Uma vida não se coloca na balança e não tem peso. Saiu o pastor e foi andando na própria trilha antes que a noite densa entrasse pelo mesmo caminho. Não sabia onde estaria a desgarrada, mas se ela não tivesse se afastado muito por onde o rebanho havia estado, talvez tivesse alguma chance. E o pastor foi andando, andando e andando. Foi até encontrá-la. Se ela estava num buraco, não sei. Se caminhara tanto que já não tinha pernas pra voltar, também não sei. Se, como se diz, o pastor quebrou-lhe as pernas para não fugir mais, é outra coisa que não sei. Só sei que teve que voltar enrolada no pescoço do pastor, como se fosse cachecol. Foi trazida assim, nos ombros pra não errar o caminho, porque o pastor mostra por onde se deve andar e quando não dá, carrega nas costas porque assim não tem erro, e retorna até quando deposita a perdida entre as outras. Assim terá certeza de que o rebanho estará completo.

Daí o pastor reuniu os amigos e celebrou porque uma vida é uma vida, e não tem aquela que é menos importante, ou outra que não mereça uma caminhada do pastor pelo deserto. Nada disso. Sem cansaço ou reclamação, para o pastor vale o encontro, e seu desejo é voltar para casa com a ovelha que se perdera. Não seria a primeira, nem a última. Pela narrativa dá até pra entender que se tratava de um evento mais ou menos comum, quase como se fosse parte da natureza da ovelha o perder-se. Só que a figura realçada na parábola não é a ovelha que se perdeu, nem as que ficaram no aprisco, muito menos os amigos, mas a do pastor e sua alegria por encontrar quem se perdera.

A questão não é o perder-se, mas o permitir ser encontrado/a. E voltar nos ombros do pastor não dá nem história, só sentimento de proteção e de retorno para casa, que nem caminho se conhece mais. Nem precisa conhecer. Só o pastor sabe onde fica, coloca nos ombros e a traz para casa.

pr Natanael Gabriel da Silva

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

NA LINHA DE FRENTE

“E iam no caminho, subindo para Jerusalém; e Jesus ia adiante deles. E eles maravilhavam-se e seguiam-no atemorizados. E, tornando a tomar consigo os doze, começou a dizer-lhes as coisas que deviam sobrevir...” Marcos 10.32

Talvez fossem dois blocos, como final de São Silvestre. Os cansados, no segundo, os mais cansados que os cansados, no terceiro, e os cansadíssimos dos cansadíssimos no quarto e outros, porque o superlativo também tem limite. Jesus estava à frente, os demais no segundo grupo, só que não estavam cansados, mas com medo. Então os que têm medo, no segundo, os mais aterrorizados que os aterrorizados, no terceiro, e não é necessário repetir os limites do superlativo.

Daí Jesus começou o discurso, o que parecia ruim, ficaria pior. Ele seria o alvo, problema e solução, mas estava indo à frente porque Jesus quando teve que enfrentar a cruz não ficou no final da fila. Também não amenizou, e nem mesmo colocou uma frase fatalista como se não tivesse outra solução, coisa que a gente faz e às vezes nem sabe direito o que significa: “Estou nas mãos de Deus”. Jesus não disse isso, mas disse que seria envergonhado, afrontado, humilhado e crucificado. Depois conclui: mas o Filho do Homem ressuscitará.

O problema não seria o sofrimento, como não foi. O sofrimento faria parte. A questão na vida é o assumir o futuro, quando se sabe o que fazer e o que o Senhor pensa disso. É isso que faz diferença. Dá até pra falar sobre o assunto, sem mágoa de Deus, ou raiva da vida, sem medo de enfrentar o que vem pela frente e se dar como participante do primeiro bloco. Afinal, o tempo e a vida terão que ser enfrentados hoje, é ou não é?

Pastor Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

BEM-VINDO A JEREMIAS 33.3



“Clama a mim, e responder-te-ei, e anunciar-te-ei coisas grandes e firmes, que não sabes.” – Jeremias 33.3

Jeremias estava preso e o clamar a mim, ao Senhor, aconteceu num tempo de incerteza e sofrimento. Trata-se de uma palavra de alento. Um alento, de certo modo, beligerante porque o que é anunciado depois é a destruição do próprio povo do profeta.

Talvez não fosse esta a ideia do “... anunciar-te-ei coisas grandes e firmes, que não sabes”, até porque não é possível falar sobre o que não se sabe. Com outras palavras, que coisas grandes seriam essas? Você não sabe e nunca irá saber; eu não sei e nunca irei saber porque era para Jeremias, como Jeremias, só pra ele. Depois ele poderia, ou deveria, divulgar.

Então, nem você e nem eu, sabemos quais coisas grandes o Senhor poderá fazer. Tem coisa que você pede já sabendo do que se trata, e às vezes são corriqueiras, imediatas, do cotidiano. Nesse caso você sabe o que pede e já sabe qual seria o resultado pretendido. E quando você não sabe o que precisa, e muito menos o resultado pretendido? Pois é, bem-vindo ao texto de Jeremias 33.3.

Nesse caso “clamar” não tem um conteúdo específico. É apenas clamar: suplicar, depender, confiar, depositar, honrar, conviver e por aí se vai. E olha que o texto não está mencionando necessariamente um milagre, mas apenas a palavra e só palavra. Talvez o milagre que você espera, seja apenas ouvir, e dentre tantos sons da rua, escritórios e falas, a voz, em alguns casos, quase esquecida e que vem de Deus.

Pr Natanael Gabriel da Silva