terça-feira, 29 de abril de 2014

A PRIMEIRA MISSIONÁRIA ou AS IGREJAS DAS DONAS DE CASA


(resposta a um artigo de jornal - um pedido de desculpa à minha pastora)

Deixou, pois a mulher o seu cântaro, e foi à cidade, e disse àqueles homens: Vinde e vede um homem que me disse tudo quanto tenho feito; porventura, não é este o Cristo? Saíram, pois, da cidade e foram ter com ele [Jesus]. -  João 4.28 a 30
 
Caso Jesus fizesse parte de uma das comunidades que conheço, que bem poderiam ser identificadas como “as igrejas das donas de casa”, certamente teria dito aos homens que chegaram noticiados por uma mulher, que a vinda deles não valia, que seria necessário começar tudo de novo, que apenas um homem, o autorizado a falar, proclamar e ensinar, teria legitimidade pra dizer alguma coisa em nome de Deus. Então vamos fazer assim, diria Jesus, eu vou chegar outra vez perto do poço, você, é você mesmo, você que é homem, chefe de família vem também se aproximando, é assim mesmo, com a sua mulher, isso, daí ela vai ficar olhando a gente conversar, depois então você vai pra cidade, porque o evangelho que estou anunciando será exclusivo dos homens, mesmo que isso pareça teatro.

Pois é. Não foi assim. A mulher, que ficou conhecida como adúltera pelos intérpretes (homens é claro), que bem poderia ser a samaritana, como tem sido corrigido, não tinha o perfil esperado das igrejas das donas de casa, embora cuidasse da família quando de sua estada no poço. Estava tudo errado, e Jesus também. A vida dela era fora dos padrões: havia se casado cinco vezes. Conversou com um estranho. Não conversou respondendo perguntas, não. Fez colocações sérias. Mostrou conhecer a história de seu povo, expectativas, os lugares do sagrado, sabia o que era um profeta, não só sabia como dava-lhe crédito, entendia da promessa da vinda do Messias, não só da vinda, mas da missão dele, o que ele provavelmente diria, qual seria o seu perfil, e tanto sabia que fez o encaixe entre o que pensava e a pessoa de Jesus e não teve dúvidas: “não é este o Cristo?” Pergunta retórica, porque antes retornou pra cidade, sem cântaro, sem nada, pra ser mais rápida, não deu água a beber a Jesus, como este pedira; sem dúvida, a convicção faz a pressa.

Assim se fez, feita de vocação e missão para uma cidade inteira, a primeira pastora-missionária, antes de Paulo, antes da famosa e discutida confissão de Cesaréia por Pedro, antes dos milagres narrados por João, já que o único milagre que vira fora o de ter tido contato com o espelho da própria vida, ter conversado com uma pessoa que, ao falar dela e sobre o seu passado fez com tanto respeito e humanização, que ela simplesmente o viu como um profeta, não interrompeu o diálogo, nem revidou com agressividade. Daí você fica pensando se o reconhecimento dela de que Jesus era o Messias teria sido em razão do diálogo de profundidade, ou se pelo tratamento humano que recebera, ou se tudo isso estava misturado, o humano e o divino, a pessoa e o gênero, o ser humano e sua individualidade, sua história e esperança. É claro que as comunidades, ou as “igrejas das donas de casa”, alienadas, expropriadas por um falso cristianismo que não entende do humano, nem da história, nem das leituras das injustiças causadas pela violência do sagrado, muito menos de interpretação bíblica, embora dela falem como inerrantes interpretes, diriam: Sim-senhor; não-senhor, faço-sim-senhor, estou-aqui-senhor, e assim confirmariam que a nossa caminhada na libertação feminina ainda está longe, mas longe, muito longe, de ser considerada a legítima luta contra um dos pecados sociais mais antigos da história.
 
Será verdade que ainda estamos discutindo os direitos da mulher?

Natanael Gabriel da Silva

domingo, 27 de abril de 2014

UMA METÁFORA



Um deles feriu o servo do sumo sacerdote e cortou-lhe a orelha direita. Mas Jesus acudiu, dizendo: Deixai, basta. E, tocando-lhe a orelha, o curou. – Lucas 22.50,51

O ódio é como um trem em alta velocidade: ou termina num desastre, quando termina, ou vai parando aos poucos, ameaçado pelo amor.

Só que tem sempre alguém que acha que será capaz de colocá-lo em movimento e depois simplesmente desligar a chave geral, como se a inércia não fosse a virtude principal do deslocamento do ódio. Nunca deu certo, mas também nunca deixou de haver pessoas assim. Passa sempre pelo despertar da fagulha que leva ao desajuste coletivo e aos poucos o inconsciente, também coletivo, se responsabiliza pelo movimento e daí começa a inércia. Nem sempre a memória ou o conteúdo da motivação conseguem ser explicadas, e fica o movimento pelo movimento que dá uma ideia de que todos estão numa única direção com um único sentido possível. Deste modo o ódio adquire vida própria, vontade própria e quando alguém pergunta onde estaria a chave que dera início ao movimento, descobre que a chave não existe, ninguém sabe onde fica, nunca ninguém viu embora todos soubessem da existência. Quem disse que se tratava de um botão vermelho escondido debaixo do painel, descobre que ele mesmo nunca, jamais o vira, depois fica em dúvida se foi um sonho que se transformou em pesadelo, e por mais que queira saber quando foi e quem e qual a razão de ter sido acionado o ódio ao movimento, o anônimo desaparece, como se nunca tivesse havido, para então ser esquecido. É claro que a personificação se dará contra quem, principalmente, defendia o discurso do amor. Será este tido como responsável, pois se há uma coisa que ódio faz, e consegue, é adoecer o amor e tentar anular a legitimidade de quem o defendia, só para mostrar que com ele, o ódio, o jeito não é o amor, mas a identificação e punição dos culpados. Enquanto busca os culpados, o ódio coletivo consegue despertar até nas pessoas que com ele não se afinavam, o que têm de mais primitivo. O que era enorme, fica ainda maior, e a vingança, que alimenta o ódio, e o ódio, que alimenta a vingança, criam o círculo vicioso até que alguém, em algum momento, terá a desventura de lembrar-se do amor. E é assim que o ódio se alimenta do ódio e o amor fica à espera ser lembrado para então reiniciar, outra vez, e muito lentamente, uma nova etapa de redescoberta da vida.

Quando Jesus colocou no lugar a orelha de um dos servos do sumo sacerdote, que segundo João chamava-se Malco, cortada com ódio por Pedro, não fazia apenas uma cura, nem queria somente restaurar a integridade de uma vida, ou ainda afirmar que quase sempre o ódio fere quem não deve: tratava-se, na verdade, de uma metáfora viva. Ou a cruz começava com o amor e com o perdão, ou não teria sentido.

E foi assim que começou o cristianismo.

Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 21 de abril de 2014

O AMOR E A DÍVIDA


(Este é um texto antigo. Escrevi a primeira versão em 1995. Algumas alterações foram necessárias para que o discurso fosse atualizado. Hoje, me lembrei dele, e aqui segue...)

A ninguém devais coisa alguma, a não ser o amor com que vos ameis uns aos outros...    (Romanos 13:8)            

O amor é dívida. Independe do querer, ou não querer, boa ou má vontade. Não está relacionado a qualquer tipo de condição, quer seja do amado ou de quem ama. Não necessita de reciprocidade, nem mesmo de reconhecimento. Quem ama, ama pelo simples fato de amar, sem visualizar recompensa, pois nada que se receba de volta, por maior valor que tenha, jamais poderá suplantar o amor dispensado, ou proceder a uma quitação justa. O pagamento do amor, é amar. Como nunca será possível saber qual seria a intensidade do amor de alguém, a solução é devolver o amor na capacidade máxima do que se pode, daí a conta da totalidade da alma como o montante único de validação. Esta será a única garantia de alguém poder amar na mesma proporção em que foi amado. Não é uma questão de quantidade, mas de potência. Não é um compromisso como se fosse acordo, como se num dado momento dois resolvessem assumir um pacto de se amarem. Terá sempre um início unilateral. Alguém terá que amar primeiro. Foi por este princípio que o amor foi disponibilizado, um estando antes, para que o constrangimento jamais fosse traduzido como obrigação ou comando, e se nos O amamos é porque Ele nos amou primeiro, diz João. Disse e assinou embaixo, porque o amor veio da plenitude do Pai, e do exagero do Filho. Não suportamos a avalanche de amor, nos entregamos, e ainda fizemos pouco. Teremos sempre a sensação que jamais iremos oferecer a mesma magnitude de amor. Fica na paz: a desistência de resposta à altura, não deve gerar culpa, nem medo, muito menos inferioridade, apenas rendição.

Assim, só o amor conquista e exerce o fascínio do constrangimento ao amado, desarma a guarda, estrangula a incapacidade de afeto, restaura ao humano a dignidade da limitação, por mais contraditório que isso possa parecer. O amor é terapêutico. Remédio que passa pelo coração e é transferido para o outro, como se, de passagem, não optasse por nenhum paradeiro. Vai e fica, parece que foi, mas nunca saiu. É ele que faz caminhar uma segunda milha, mesmo que injusta e incompreensível (Mateus 5:41); oferece a outra face, mesmo não concordando com o agressor (Mateus 5:39); faz passar uma noite num jardim, mesmo que seja em agonia (Marcos 14:32-42); transforma riquezas em coisas sem qualquer importância (Filipenses 3:7); ultrapassa os limites do tempo e quarenta anos, serão apenas quarenta anos (Êxodo 2:11 a 3:22); faz do Caos, um paraíso (Gênesis 1:1-2); torna vaqueiros em profetas (Amós 7:14); extrai de prisioneiros, a gratidão (Atos 16:25); dá resistência, esperança e vida ao que está abraçado com desumana agressão (II A Timóteo 4:6-8); faz a terra dos chacais ser conquista pela vegetação do pântano (Isaías 35:7); transforma corações secos em fontes (João 4:10); quebra preconceitos (Atos 10:1-48). Incondicional, o amor faz um rico debruçar-se aos pés do pobre (Marcos 10:17-22); questiona o sono e remete, quem dele não entende, o  caminhar pela noite (João 3:1-21); traz um filho de volta para casa (Lucas 15:11-32); faz do bruto, a resplandecência do rosto do Santo (Gênesis 33:10).

O Amor é o milagre que tem a legitimidade em sua própria essencialidade. Então, se é dívida, é uma ausência. Sendo ausência, não nos pertence. O temos, sem possuir. E quando compartilhamos, oferecemos o que não é nosso, pois o amor é uma condição de meio, está no deslocamento, no movimento em direção ao outro, o seu pertencimento está no público, na alteridade. Por conta disso, tem a natureza reflexa, como um espelho: ao ir, também volta; duplica de tamanho e intensidade: volta no tanto que foi como se fosse um reflexo, mas atravessa o espelho e atinge o outro sem nada perder, como se não tivesse refletido. É um milagre, eu sei.

Não há nada mais belo na vida do que saber amar. Não há alegria maior do que ser amado.

Natanael Gabriel da Silva