sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

AS REGRAS E O JOGO DO AMOR




“Então, Jesus lhes disse: Eu vos pergunto: É permitido fazer o bem ou o mal no sábado? Salvar a vida, ou tirá-la?” – Lucas 6.9

A ideia não é minha. Não tenho tanta grandeza. Vou tomar, sem rodeios, mas com inquietação, o insight de Wittgenstein. Ele simplesmente pergunta se uma imagem difusa poderia ser preferida a uma nítida. Ele mesmo responde que, em muitas ocasiões, a difusa deve ser preferida, por que a nítida, embora clara, às vezes óbvia, poderia não ser necessária. De certo modo, o nítido das regras pode até estar no início de tudo, como ponto de partida, mas depois a vida se encarrega de ir mudando, alterando e por fim fica a memória inconsciente de regras que já não fazem sentido. A verdade então se dá como perdida, diluída, até se esparramar completamente. Fica menos densa, menos clara, e as regras que deram início ao jogo, acabam por perder o sentido. Surgem outras, a partir das primeiras, mas dissociadas delas. O jogo que começa, não é o que termina.

Pois é, daí Jesus entrou, conforme as regras, numa Sinagoga. Era sábado, e as regras permitiam isso. Entrou, sentou e começou a ensinar, tudo pontuado na cartilha. Um doente, com a mão atrofiada, que também seguia as regras, estava por ali. Daí as regras deixaram de ser suficientes. Jesus chamou o doente, colocou-o no meio, e fez uma pergunta para os outros que entendiam de regras pra ver se estas dariam conta da vida: - O que dizem as regras sobre fazer o bem ou o mal no dia de sábado? Silêncio. O bem, como sabemos, era a possibilidade de cura que estava a acontecer; o mal, como também sabemos, era ignorar o doente e fazer o sofrido permanecer com o sofrimento, por conta dos impedimentos das tais regras que tinham iniciado o jogo. – Que dizem as regras sobre a vida? – perguntou Jesus. Silêncio. Ora, as regras que impedem a vida, atuam em defesa da morte, é claro. Jesus então, que obedecera as regras como ponto de partida, estabeleceu novos caminhos, mudou os pressupostos, confundiu os defensores das regras, e simplesmente fez o que regra nenhuma poderia declarar que Ele poderia fazer. Curou.

Wittgenstein é uma festa quando emprestado à aparente composição matemática das regras religiosas, seus princípios universais aristotelicamente declinados pelo fascínio lógico e que geram a disposição imediata à obediência, em razão de seus automatismos de acontecimentos necessários, impostos pela coerência. Daí as regras mudam e vem a tal da liberdade que mais parece esboço, não tem fronteira, ninguém sabe o seu limite, e quando se pensa que alguma coisa caminhou em alguma direção, vê-se que a liberdade é uma dimensão tão aberta da vida, que é reinventada cada vez quando dela alguém se aproxima. Simplesmente foge. Do mesmo modo o amor, é claro. Até o amarás ao Senhor teu Deus tem que ter a dimensão do humano que não se mede: amar com todas as forças, de todo coração, como se coração tivesse esgotamento, e de toda a alma, que ninguém sabe direito o que é nem o que significa. É o mesmo que buscar na profundidade da profundidade o que não pode ser dito, onde não é possível fazer qualquer medição, está fora da linguagem, não tem universais para dar legitimidade e nem possibilidade de discurso, nem pode ser declinado como um mecanismo estruturalmente válido. O amor é um vazio de tão grande, e ao mesmo tempo tão cheio e completo, que não tem limites ou fronteiras, não pode ser compreendido senão pelo exagero e dele só se pode falar por meio de metáforas. Quando alguém diz, o amor é isto, ou aquilo, ao acabar de dizer já sabe que o dito ainda ficou pequeno, faltou muito, ou talvez quase tudo. O amor então é difuso, não segue as regras da linguagem, não pode ser contido na palavra, tem-se sempre a impressão de que se trata de um esboço, ou de uma caricatura, mesmo se dando como a obra de arte por excelência. Se o traçado já é assim, imagine a obra acabada. Não imagine, você não vai conseguir.

Então, eu prefiro o retrato difuso do amor às regras nítidas. Eu me rendo ao não saber o que é o amor, nem entender direito como ele é, nem como será, sei que o possuo não possuindo, que o recebo sem receber, que lhe pertenço sem pertencer, que nele estou imerso e flutuando, tanto presente quanto ausente, pois ao mesmo tempo em que está, sinto como se faltasse, parece tudo, mas se apresenta como pouco, estou sempre achando que poderia haver mais, quando parece que já está completo, e tenho saudade dele como se não estivesse junto, embora esteja nele colado, parece que no passado fora mais intenso, mas hoje é o mesmo, no futuro será igual ao de hoje, mas também será outro, nele estou sempre perdido, mas é onde acabo por me encontrar; o amor pode não ter rosto, mas nunca vi algo tão humano. No esboço do que poderia ser, mas não é, o amor vai simplesmente não sendo, para continuar o que sempre foi.

Há quem prefira a nitidez das regras. Sinto muito.

Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

OLHARES...



UM OLHAR de amor...
“E Jesus, olhando para ele, o amou e disse: Falta-te uma coisa: Vai, e vende tudo quanto tens, e dá-os aos pobres, e terás um tesouro no céu” (Marcos 10:21)

UM OLHAR de angústia: um céu longe demais...
 “Mas ele contrariado com essa palavra, retirou-se triste, porque possuía muitas propriedades” (Marcos 10:22)

UM OLHAR de saudade: o que poderia ter sido, mas não foi – tão perto, e tão longe...
“E disse-lhe o Senhor: Esta é a terra de que jurei a Abraão, Isaque e Jacó, dizendo: À tua semente a darei; mostro-ta para a veres com os teus olhos, porém para lá não passarás” (Deut. 34:5)

UM OLHAR diante do inexplicável...
“E o que estava assentado era, na aparência, semelhante à pedra de jaspe e de sardônica; e o arco celeste estava ao redor do trono e era semelhante à esmeralda” (Apoc. 4:3)

UM OLHAR em conflito: êxtase e tragédia...
“Então disse eu: ai de mim, que vou perecendo! Porque eu sou um homem de lábios impuros e habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos!”  (Isaías 6:5)

UM OLHAR de esperança: o filho que nunca deveria ter partido...
“E, levantando-se, foi para seu pai; e quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e se moveu de íntima compaixão...” (Lucas 16:20)

UM OLHAR de ansiedade e culpa: o perdão improvável e imerecido...
“E levantou Jacó os olhos e olhou, e eis que vinha Esaú (...). Então, Esaú correu-lhe ao encontro e o abraçou; e lançou-se sobre o seu pescoço e o beijou; e choraram” (Gênesis 33:1-4)

UM OLHAR em busca de socorro...
“Elevo os olhos para os montes: de onde me virá o socorro? (Salmo 121:1)

UM OLHAR, que só o olhar explica...
“E, virando-se o Senhor, olhou para Pedro, e Pedro lembrou-se da palavra do Senhor, como tinha dito: Antes que o galo cante hoje, me negarás três vezes. E saindo Pedro, par fora, chorou amargamente” (Lucas 22:61-62)

UM OLHAR de saudade, e o presente se deu como um infinito trágico...
“E a mulher de Ló olhou para trás e ficou convertida numa estátua de sal” (Gênesis 19:26)

UM OLHAR de desespero, só desespero, nada mais que desespero...
“E, no Hades, ergueu os olhos, estando em tormentos e viu ao longe Abraão e Lázaro, no seu seio” (Lucas 16:23)

UM OLHAR de compaixão, amor, esperança e missão...
“Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste! (Mateus 23:37-39)

UM OLHAR de gratidão e busca: a vida é simples...
“Olhai para os lírios do campo, como eles crescem (...) E eu vos digo que nem mesmo Salomão em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles” (Mateus 6:28)

UM OLHAR e uma lágrima...
“E afirmou a sua vista e fitou os olhos nele, até se envergonhar; e chorou o homem de Deus” (II Reis 8:11)

UM OLHAR quebrantado: o sagrado, irremediavelmente, estava profanado...
“...e contemplei os muros de Jerusalém, que estavam fendidos, e as suas portas, que tinham sido consumidas pelo fogo” (Neemias 2:13-14)

UM OLHAR de perfeição e completude: a invenção da vida...
“E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom; e foi a tarde e a manhã: o dia sexto” (Gênesis 1:31)

UM OLHAR de gratidão: haveria vida a partir da morte...
“Tiraram, pois, a pedra. E Jesus, levantando os olhos para o céu, disse: Pai, graças te dou, por me haveres ouvido” (João 11:41)

UM OLHAR para ao infinito: memória e estrelas...
“Então, o levou fora e disse: Olha, agora, para os céus e conta as estrelas, se as pode contar. E disse-lhe: Assim será a sua semente” (Gênesis 15:5)

UM OLHAR, num momento único: a história teria um centro...
“E junto à cruz de Jesus estava sua mãe, e a irmã de sua mãe, Maria, mulher de Clopas, e Maria Madalena “ (João 19:25-26)

UM OLHAR, a perguntar pelo humano...
“...e escondeu-se Adão e sua mulher da presença do Senhor Deus, entre as árvores do jardim. E chamou o Senhor Deus a Adão e disse-lhe:  Onde estás ?” (Gênesis 3:9)

UM OLHAR e um mistério...
“Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração; prova-me, e conhece os meus pensamentos; E vê se há em mim algum caminho mau, e guia-me pelo caminho eterno” (Salmo 139: 23,24)

UM OLHAR e o perdão...
“E endireitando-se Jesus, e não vendo ninguém mais do que a mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno; vai-te, e não  peques mais”

Natanael Gabriel da Silva

sábado, 17 de janeiro de 2015

EU CONFESSO



“Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor.” – I João 4.8

Estou pegando um gancho. Talvez impróprio, de gosto pra lá de duvidoso, mas o texto tem que surgir de algum lugar, não é mesmo? Daí eu li durante a semana sobre Deus não ser manco, isto é, não ser apenas amor, mas justiça, e não é preciso saber do restante, porque caminhou na trilha da aplicação da pena, no viés condenatório, e por aí se foi.

Então eu confesso: creio num Deus manco. A metáfora é ruim, não por culpa minha, é claro, porque desde antes tenho sido cartilhado em tantos outros atributos divinos, assim chamados pelo protestantismo confessionalista, que às vezes me perco no entrecortar de um e outro. Mas imagino hoje que tais palavras são apenas referências simbólicas, pedagógicas e sistematizadoras, no tecido de valores a Ele atribuídos, feito rede, que se perdem e se comunicam no emaranhado do tudo junto e misturado. Fica difícil dizer de um, sem os outros; dos outros, sem o um. Mas, deixa isso pra lá.

Bem, um Deus manco não é de todo ruim, porque se aproxima do humano, e continua perfeito na metáfora, onde os trilhos dos símbolos se encontram, ou se aproximam no horizonte, se preferir. Talvez seja isso mesmo, Deus manco, porque é possível que o texto também seja manco. Não é ele que diz: Deus é amor? Talvez porque tenha sido mesmo uma tremenda mancada perdoar quem, justamente, deveria ser apedrejada, e não me venha com aquela história de que o parceiro do adultério estaria entre os que pretendiam apedrejar, porque Jesus não queria ver ninguém morrendo naquele dia, talvez desejasse poetas que escrevessem na areia, e que falam da justiça humana a lápis. Agora, que foi complicado o perdão, sem penalização de ninguém, isso foi. E a mulher Samaritana? Eu sei da sua história, dizia Jesus, mas a fonte da vida nasce por dentro da injustiça humana, restaura a dignidade, e depois não recomendou que voltasse a se casar com o primeiro marido como se a história pudesse ser consertada. Daí vem uma parábola e me diz que quem chegar por último recebe o mesmo! Dá pra entender? É justo? Um opressor numa árvore e pouco depois Jesus, não apenas entra em sua casa, mas passa a noite lá! Não teria gente mais justa pra ser recompensada?

Quem é o maior? Não tem maior! Mas como não tem maior? Tem que ter um maior! Pois é, não tem, só tem menores, só servos, gente lavando os pés dos outros, e todo mundo sendo pequeno. Parece injusto, mas é assim mesmo. O maior só pode ser uma criança, e todo mundo criança, pra nunca mais crescer, porque no Reino não cabem reis, nem rainhas, ditadores da lei como hermeneutas absolutos da verdade, nem pregadores que chamam para si o domínio do humano coletivo, só tem servos. Parece mancada, mas não é. Tragam o cego, aquele que vocês acreditam que está sofrendo porque deve ter feito alguma coisa na vida e recebeu o merecido castigo de Deus e agora tem que ficar à beira da estrada suplicando, é ele mesmo, aquele ali, o cego que não tem nenhum direito, porque se o Reino fosse feito de justos já estaria cheio de tanta gente que se acha; que venha o cego excluído, banido, religiosamente condenado, aquele que não tem chance, o que alimenta a benevolência de vocês que precisam dele pra mostrar piedade, isso, ele mesmo, vou mostrar-lhes onde está aquilo que poderia ser chamado de justiça de Deus. O cego vai ver, porque o que não pode ser medido pela justiça, pode ser vencido pela Graça. Agora, juntem as pessoas e as dividam em grupos, que eu multiplico os pães, e tem pão pra todo mundo, depois vai ter gente dizendo que, aquele que tinha o pão guardado, aprenderá a dividir, mas nunca ninguém saberá de onde veio tanto pão e peixe, e vai ficar assim mesmo. Não é justo, mas se fosse justo, não haveria mistério. Outra coisa que eu sei que não é justa, mas terminado o dia, é bom contar as ovelhas, e vai perceber que a que se perdeu será sempre a última, por matemática e exclusão. Está perdida num buraco, e a noite de trabalho, que será até mais difícil, começa de novo como se fosse o amanhecer. Nada de dizer a ela que se perdeu por merecer, que foi justo o sofrimento, e a deixar sofrer, pelo menos um pouco, para que da próxima vez aprenda a ficar mais atenta. Sofra ovelha, assim você vira gente! - (porque a metáfora, dita pra ovelha, deve ser a promessa de virar pessoa, não é mesmo?).

Amor é isso, é o injusto do perdão, da não causa, do imotivado, do não ter razão para, nem lugar de, nem até aqui, nem depois daqui, sem largura ou profundidade. O amor e a Graça se misturam. Esta não é justa, nem injusta, é apenas Graça. E não tem perna.

Natanael Gabriel da Silva

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

O SACERDOTE, O PROFETA E O PASTOR

É fácil, ou quase fácil.

A natureza: 
do sacerdote, os ritos; do profeta, a fala; do pastor, o cuidado.

O lugar: 
do sacerdote, o templo; do profeta, a cidade; do pastor, o campo.

O discurso: 
do sacerdote, as leis rituais; do profeta, a visão; do pastor, a parábola.

A preocupação: 
do sacerdote, elite cultual; do profeta, a denúncia das injustiças; do pastor, a inclusão.

O espaço político: 
do sacerdote, a manutenção; do profeta, a denúncia; do pastor, a esperança do Reino, para além dos reinos: o abrigo plural.

O sonho: 
do sacerdote, a obediência; do profeta, a ética e a justiça social; do pastor, o perdão e o amor comunitário.

O texto: 
ao sacerdote, as regras; ao profeta, o assim diz o Senhor; ao pastor o ouviste o que foi dito aos antigos, eu porém vos digo.

A preocupação: 
do sacerdote, a permanência; do profeta, a mudança; do pastor, a esperança.

O Sonho: 
do sacerdote, o sacrifício perfeito, do profeta, o novo reino; do pastor, o novo ser humano.

O Desejo: 
do sacerdote, o sumo sacerdócio; do profeta, a palavra pura; do pastor, os verdes pastos e as águas tranquilas.

O Caminhar: 
do sacerdote, é pelo Templo; do profeta, é pela nação; do pastor, é pelo mundo.

A liturgia: 
do sacerdote, é o sacrifício; do profeta, a restauração ética; do pastor, a vida e a liberdade.

O aprendizado: 
do sacerdote, o cultivo dos ritos; do profeta, o anúncio; do pastor, o humano.

A fonte: 
do sacerdote, as tradições; do profeta, o futuro; do pastor, a vida.

O ideal: 
do sacerdote, a perfeição no rito; do profeta, o resgate nacional; do pastor, o acolhimento.

O outro: 
ao sacerdote, um pecador sacrificante; ao profeta, um ouvinte a ser restaurado; ao pastor, um humano a ser socorrido.

O mal: 
ao sacerdote, é banido com o rito; ao profeta, é afastado com a transformação; ao pastor é dinâmica e convivência com o humano.

O símbolo: do sacerdote, o altar que aponta para o alto; do profeta, a lei e a ética, que apontam para o outro; do pastor, o cajado, que protege e resgata o humano.

Acho que é isso, ou quase isso. Mas também não é tudo, nem quase nada, ou outra coisa.

Natanael Gabriel da Silva