segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O MILAGRE VISTO PELO LADO DE DENTRO

“Disse o Senhor a Moisés: Porque clamas a mim? Dize ao povo de Israel que marchem.” – Êxodo 14.15

Apenas para se ter uma idéia: a travessia do Mar Vermelho para o antigo Israel é semelhante à ressurreição de Jesus aos cristãos. Na travessia, o Mar era uma barreira que impedia o retorno, só dava pra ir em frente. É como o tempo, não dá pra voltar. 

O texto é rico em imagens da tragédia. Milagre de salvamento e morte, paredes de águas e a promessa de que haveria um outro lado. Lado da frente, não lado do lado, porque o futuro se abria no comando do cajado, tocando a água e a cortando como se fosse queijo, macia, consistente-mole e era só caminhar pra outra margem. Esta também era misteriosa, pouco ou nada se sabia dela, mas jornada é jornada, a gente começa e vai sem saber. A expressão “Porque clamas a mim?” pode parecer uma cobrança, inquietação e até mesmo dura repreensão, mas pode ser também uma presença, não precisa clamar que Eu estou aqui, onde sempre estive e estarei. Pode ser um “Vou com vocês, como sempre, e a travessia do Mar, de certo modo, será minha também. Moisés! Coloque o povo pra caminhar que eu vou junto!” Acho que foi isso. Oração diferente. Uma oração que não precisava de oração, um estar desde sempre e um vamos atravessar juntos como declaração de pastoreio e presença. 

O marchar era para o outro lado e também para o depois, caminhar por sobre e dentro do milagre. O mar abriu e o povo passou por dentro dele, todo mundo caminhando pelo meio do milagre. Milagre grande é assim, faz a gente ficar dentro dele, imerso, por dentro e para frente. Pra você e para mim que estamos acostumados com o milagre no coração,subjetivo, que já é imenso, não entendemos o milagre acontecendo pelos lados, nas muralhas de águas, por debaixo, nos pés secos e por cima, na brisa que sustenta o milagre e a gente passando por dentro dele como se fosse um túnel.  E vamos, que vamos, vocês comigo e Eu com vocês! 

Acho que não tem jeito da gente caminhar pro futuro sem andar no milagre como se fosse túnel. Quando o deserto chegar, e vai chegar, a gente vê o que Deus vai fazer, se vai mandar ou não chuva de pão ou de carne, se vai haver oásis ou coisa parecida. Tudo isso, separado ou somado, é o de menos. Deus cuida. Importa hoje botar o pé no túnel e marchar. Vai ter sempre um cajado abrindo caminho, vento misterioso aparecendo de uma hora para outra, e você caminhando dentro do milagre protegido/a e amado/a, sem entender e também sem esperar. Milagre repentino, inusitado, nunca antes havido, feito portal para o futuro e o novo tempo à espera, do outro lado. 

Feliz 2015.
Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A REINVENÇÃO DO AMOR



“Para alumiar aos que estão assentados em trevas e sombra de morte; a fim de dirigir os nossos pés pelo caminho da paz.” – Lucas 1.79

É, eu sei que as regras e sistemas de fé não deram conta de explicar, mesmo que fosse um pouco, o amor do Cristo. Desde que o cristianismo se deu por instituição e precisou definir impropriamente a expressão de João de que Deus é amor, o conceito tomou o lugar da vida. O amor virou coisa e não foi mais possível encontrá-lo. Ficou meio perdido entre a aceitação de uma doutrina, talvez um pouco mais perto do encantamento das celebrações, quando não se sabe se o amor aparece em favor do adorado ou do adorador, pois na projeção do eu profundo em busca do êxtase, o fiel se solta na adoração e amor a si mesmo, sem se dar conta disso. É por esta razão que cultuar/celebrar tem uma natureza terapêutica. Deste modo a morte vicária do Cordeiro Pascal acaba por se perder, sempre e incansavelmente interpretada, quase no esgotamento da compreensão, a partir das tradições do sacrifício judaico. Assim se reduz, ou quase, a um ritual como o dos tempos antigos. O amor? Esquecido, é claro! Fica novamente à espera de ser reencontrado.

Daí a importância do Natal. Recupero a sábia recomendação do autor de Eclesiastes: lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade. Isto porque a vida com Deus não é uma fotografia, um instante paralisado na experiência com o sagrado, mas um prolongamento no tempo; é um deslocando, uma jornada, uma condição de presença e peregrinação. Jesus reinventou o amor. Fez dele uma caminhada, o colocou diante da vida e suas contradições. Não é possível entender o sacrifício de Jesus sem o Sermão do Monte, nem ver nos milagres apenas expressões doutrinárias que expliquem uma determinada hermenêutica de fé. Jesus foi o amor caminhante. Amor que ensinou com amor como se deve amar. Depois foi mostrando como é que se recupera um cego pelo caminho, a forma de como se abraça uma criança e, na beleza do encantamento, diz a afirmação que ninguém no mundo consegue explicar: dá o Reino dos Céus aos pequeninos. Estes superam as confissões, não são oficiais de religião, não têm nada a oferecer para quem quer que seja, nem sabem o que seria Lei e doutrinas, histórias e sagas; e as comunidades de fé ficam tentando fixar a chamada idade da inocência para estabelecer o limite do perdão: perdem o conteúdo logo na saída - não é possível dar sentido ao que não tem sentido. Isto é o mesmo que esquecer o amor, ou nunca tê-lo na memória. Memória mesmo, não conceito, mas como história de vida, no inconceitual do que seja estar e ser.

Saiu Jesus amando. Foi entrando e andando pelas ruas a procura de pessoas para serem amadas. Eram os sem destinos, os alijados, excluídos e endemoninhados, marca maior da ausência de amor, como se os tais estivessem na fronteira do esquecimento. Gente que vivia em caverna, na completa falta de solução e cidadania. Adúlteros e cobradores de impostos corruptos, aos quais, na nossa visão, só caberia condenação e pena. Jesus os recupera. Você vai achar que foi por conta de seu poder divino em mudar a história e mostrar-se como perfeitamente Deus fazendo milagres, eu vou preferir como sendo a expressão do amor em movimento, afinal Deus é amor. Talvez eu esteja errado.

Contudo, ou sem tudo, o Natal é para mim a reinvenção do amor. É a história do filho de um carpinteiro e de uma mulher conhecida apenas como Maria. Nasceu na esquecida e pobre Palestina; nela numa vila, e na vila, numa estrebaria. Depois passou a vida se dando em amor, a ponto de escrevê-lo com outra tonalidade e arranjo. Tão exagerado que só foi possível referir-se a ele por meio de parábolas, pois estas são superação de sentido; ou por curas, que nada mais são que inexplicáveis transbordamento de vida. Até quando reescreveu a Lei, principiou pelo exagero da extrema felicidade dos chamados bem-aventurados.

E foi assim que o amor se tornou, ao mesmo tempo, superlativo e pessoa. Depois ressuscitou, para ser eterno.

Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O AMOR - ÚNICA ESPERANÇA




“Em por se multiplicar a iniquidade, o amor de muitos esfriará” – Mateus 24.13

O mal odeia o amor. Seu alvo não é gerar a descrença, porque até mesmo a fé pode ser sua parceira e se dar por potencializada, a ponto de produzir a morte, seja em nome de uma verdade, seja em um movimento.

Claro está, no discurso de Jesus, que a fé não poderá alterar o rumo das coisas, nem impedir a fatalidade para onde a vida caminha. Vocês não irão precisar de fé para, milagrosamente, impedir o mal ou mudar o rumo da história. Vão precisar de amor, pois só ele é capaz de suportar o insuportável, cansa o sofrimento de tanto fazer sofrer, e se doa no limite do que possa ser doado, pois o seu dom maior não é receber ou mudar a ordem das coisas, mas apenas se dar. O mal não suporta a paciência do amor, sua esperança e insistência.

Daí a conversa entre Jesus e seus discípulos que começara com a pergunta sobre o quando do destino do espaço sagrado, consubstanciado no templo, ao redor do qual o simbólico religioso havia se dado, tanto judaico, como cristão: - Dize-nos quando serão estas coisas e que sinal haverá da tua vinda e do fim do mundo? – questionaram os discípulos a partir da afirmação de que do templo não ficaria pedra sobre pedra, como afirmara Jesus. Vai haver muita coisa, este respondeu, e começou pelas guerras, povos inteiros se digladiando num inexplicável ódio, que nenhuma motivação explica, e por conta disso e também em razão da desumanidade generalizada, onde se perderá a importância do outro e da vida, virão então fome e miséria, parceiras da destruição e da exclusão. Até a natureza mostrará o seu descontentamento com isso, e a instabilidade será cósmica. Nem vocês escaparão, dizia Jesus, serão simplesmente atormentados (e não há expressão mais radical do que esta como superlativo de injustiça e sofrimento), morrerão ou se tornarão excluídos, e nessa situação toda, não haverá resistência, desaparecerá a fraternidade e emergirá o conflito, com direito a falsos profetas, que serão porta-vozes dos falsos cristos; mas o pior de tudo é que o mal fará sucumbir o amor, e quando o amor se esconde, não há mais nada para ser feito, apenas o fim (Mateus 24.4-13).


Não vai ficar nada, nem o templo, que também será vítima do ódio, nem ninguém, porque a doença matará o doente para morrer com ele. E tudo começará (será futuro mesmo?) com a elevação do cristo, que não é o Cristo (24.4); e um cristo para não ser Cristo, só se for vazio de amor, pois não consigo entender a cruz por outro caminho. Nela, na cruz, o profundo humano se entregou à corrupção da degenerescência e o mal se fez superlativo, para que fosse identificado, vencido e superado pela perfeita e completa ressurreição. Só que o mal retorna no cristo que não é o Cristo, e não haverá fé suficiente para estabelecer o limite ou a compreensão entre um e outro, isto é, o verdadeiro e o falso se identificarão pela proximidade, e não haverá legitimidade no discurso religioso capaz de levantar a voz profética contra a malignidade emergente. Assim o mal se lançará, a provocar a decadência. A desumanidade irá aflorar, o amor se recolherá e se esconderá para, finalmente, se dar por ineficaz. 
 


Por quê? Porque o que chamamos de mundo, o que nos inclui, precisa de amor. O amor resiste ao mal porque é a dádiva que faz do humano, humano. Foi assim com a cruz.

Natanael Gabriel da Silva