sexta-feira, 30 de maio de 2014

CADÊ O CHÃO?


"Porque bem sabeis que, querendo ele ainda depois herdar a bênção, foi rejeitado, porque não achou lugar de arrependimento, ainda que com lágrimas o buscou."  (Hebreus 12 : 17)

Entrevistado pelo repórter, no auge do rush, ônibus lotado e trens suburbanos também, um estudante que não sabia se segurava a barra do apoio ou os livros na mão, respondeu quando lhe perguntaram a razão de não dar um passinho pra frente: - Não dá pra tirar o pé do chão, porque depois não dá pra colocar de volta.

É aí que entra Hebreus e sua interpretação da vida de Esaú, que vendeu a primogenitura por um prato de lentilhas, se arrependeu, mas quando desejou colocar o pé no chão, o chão não estava mais lá. O que poderia fazer? Nada. Assim foi perseguir o irmão. Na verdade não estava correndo atrás de Jacó, mas do próprio passado; e passou pelo perdão quando Jacó retornou pelo vale do Jaboque porque não tinha mais o que fazer. Naquele abraço, Esaú abraçou foi a si mesmo. Daí aprendeu que ficaria com o pé suspenso, flutuando, sem trégua nem tempo ou apoio pelo resto da vida. De certo modo, descansou. Mas, descanso basta? É, o tempo nem sempre dá uma segunda chance.

O tempo muda. Você muda com o tempo e as pessoas mudam também. O tempo que se perdeu é como o piso do ônibus donde se tirou o pé. A questão nem é o da vontade de colocar de volta, o problema é que o chão também se desloca, vai embora e quando você tenta pisar de novo, ou está ocupado, ou sumiu! Cadê o chão pra fincar o pé? Finca com gosto a equilibrar a vida, mas nada; o pé passa direto e se perde no vazio.

Deve ser muito triste procurar o lugar do arrependimento e não o encontrar mais. Querer perdoar e não conseguir, achar que deveria ser assim, se fosse, mas o tempo arrastou a ocasião e o pé pisa sobre outro, que não deveria estar lá. Mas está e tem coisa que a gente tem que fazer enquanto está no caminho com o/a outro/a. Caminhando, conversando, perdoando, revendo, mudando o futuro, novos laços, perspectivas e sonhos. Só que tem hora que o que deveria ser já foi, e quando você se dá conta, não tem mais jeito. Sentimento ruim o de desejar arrepender-se do que fez e não poder mais!  Onde está o lugar do arrependimento? Esaú procurou, mas não o encontrou. Sabia o que era arrependimento, o que deveria fazer e o que tinha se perdido, só não sabia que não tinha mais chão. Depois Esaú abraçou Jacó, mas não foi suficiente, rejeitou os presentes do irmão, mas também não foi suficiente, ouviu do irmão uma declaração, mais que honrosa e verdadeiramente nobre: - Tenho visto o teu rosto como se fosse o rosto de Deus. Isso também não foi suficiente, porque, fora de tempo, o perdão não é o mesmo. Segundo Hebreus, Esaú até chorou, e terminou nisso.

Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 26 de maio de 2014

O BADALAR DO SINO



(variações de I Coríntios 13)

“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o sino que tine.”

Só o amor sobrevive, porque só ele é grande o bastante para ser eterno, como virtude e sonho. O amor supera a linguagem do que poderia ser o limite do mistério, para além das falas de anjos e profetas, ou da decifração dos símbolos de profundidade. Sem o amor, palavras, são só palavras. O amor está além da fé, e os montes transportados de um canto a outro, no domínio do humano sobre o mundo da natureza, tarefa exclusiva do “assim diz o Senhor”, também não seria milagre suficiente a superá-lo, pois o amor é mais divino que divino, e mais milagre que dominar a criação. Está além da profunda generosidade e desapego ao que poderia ser mais importante, como posse e propriedade, ou da entrega do humano em sacrifício voluntário, horrendo e dramático, no rumo e desejo da remissão e purificação. O amor suporta o sofrimento, porque é maior do que ele, e sua ação será sempre um aguaceiro de benignidade, ato sublime de bondade, paciência e compreensão. Nunca, jamais, é invejoso. Não porque a inveja seja colocada como uma ao lado do amor, sendo dada como um paralelo justaposto de sua negatividade e do mesmo tamanho. Nada disso. O amor não é invejoso não por ser oposto à inveja, ou a quaisquer outras virtudes adoecidas, mas por ser infinitamente maior. É maior que tudo. O amor dissolve tudo o que precisa ser dissolvido, e nem por isso se entrega à soberba, porque está acima por natureza e condição; quando acontece a soberba, mesmo que coalhada de espiritualidade, é porque ainda não aconteceu o amor. O amor, assim, não pode ser indecente, porque seria outra forma de diminuição. Nem busca interesses próprios, como se pelo fato de alguém amar se tornasse portador de créditos. Nada de gerar constrangimento, manipular ou produzir submissão por meio de força e poder. O amor não escraviza, ensina o amado a amar. Daí o amor recebe de volta o amor ensinado, pois o interesse do amor é  amar e criar um círculo de amor. Dissolve, novamente, qualquer rompimento e tem uma ingenuidade própria de quem está no controle de tudo. A tristeza do amor é a injustiça, mas a sua alegria está na verdade. Suporta toda e qualquer coisa, justamente por ser grande demais, envolve e abraça o sofrimento para que o sofrimento faça sofrer, seja diluído e se perca na memória como um presente ausente. O amor é tudo, crê em tudo, porque está além da fé, espera tudo porque no amor a esperança é um futuro acontecido. O amor não comete erros, sua jornada é sem sequelas e vai superando a espiritualidade profunda, as manifestações tidas como espirituais de todas as formas, até o sobrenatural, aparecido e realizado. Tudo cessa e desaparece na direção do tempo, coisas que se perdem nos registros para que nunca se saiba o que de fato teria sido ou não, mas com o amor é diferente, porque não tem hermenêutica, não pode ser interpretado, compreendido, dimensionado, ou avaliado. Isto porque tudo o que temos, em qualquer situação, seja por conhecimento, seja pelo que se fala, até mesmo em profecia e seu marco de ocorrência determinista, tudo é apenas parte. O conhecimento de e sobre qualquer coisa será sempre, e apenas, um pouco. Até mesmo a voz profética é parcial, recortada pela cultura e pela vida, na dinâmica do sempre crescimento, renovação e busca. As coisas crescem, porque são menores que o amor. É como a vida, a infância e seu mundo, nada é final, sempre uma construção, sempre uma retomada, reconceituação, modo de se ver o futuro, expectativas e sonhos que se dissipam no ar e se perdem no crescimento como se nunca tivessem havido. Saber amar é acabar com as coisas de menino e se dar conta da limitação e da parcialidade de tudo o que se lê, e tudo é, apesar de às vezes não parecer, enigmático, oculto e escondido. E quando for desvendado, perderá o sentido, até mesmo a fé e a esperança. Se agora o que é o mais importante é a fé, a busca do sobrenatural, a compreensão do que não pode ser compreendido; e se junto à fé, a esperança apontar para o futuro que já está presente, como um futuro realizado, um céu acontecido, o caminho ainda mais excelente não são seria esses, por conta da limitação do tempo e da existência. O mais excelente é o amor, que está para além da fé e da esperança; é maior que tudo, envolve tudo, desmancha o que precisa ser desmanchado, cura o que precisa ser curado, supera os abismos e aproxima o que parecia impossível de ser reunido. Só o amor faz isso. Fora do amor, a vida é apenas um badalar de sinos: é como se batesse uma única vez.

Natanael Gabriel da Silva

sábado, 24 de maio de 2014

LOGO PERTO




Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta, e espaçoso, o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela;  E porque estreita é a porta, e apertado, o caminho que leva à vida, e poucos há que a encontrem.” – Mateus 7.13,14

Segui à risca a orientação: Natanael, vá de Confins pra Belo Horizonte de ônibus, lá pegue um táxi pro hotel. E assim foi a corrida mais curta e mais rápida da minha vida. Ainda bem, porque tive que aguentar um motorista mal humorado, havia ficado duas horas na fila de espera de passageiro, e quando saímos a bandeirada de quatro e pouco, teve um acréscimo de dois e pouco, e o resultado foi seis e pouco. Não tirei a razão dele. É que o logo ali, quando não se conhece as curvas e os buracos, fica muito distante, a ponto de não ser possível ver o fim.

Acho que é por essa razão que a porta para o Reino só é estreita, não tem comprimento, porque não é um corredor. Não é um passar pela porta e depois ficar sofrendo no túnel claustrofóbico que nunca acaba, e tem gente que chama isso de vida. Eu sei que esse sofrimento também foi alimentado pelo cristianismo do investimento, aquele que pensa a existência em longo prazo, como se o Reino estivesse apenas no fim. Só que não é assim. É por conta disso que o Reino é como o tesouro que está logo ali. É perto na distância e no tempo, é um ali, ou aqui, já.  Tão aqui e já que quase não dá pra acreditar que sendo tesouro, e tesouro mesmo, o sujeito só o encontre quando nele tropeça. Tropeçar é colocar o tesouro ao alcance do corpo, e tempo o bastante pra apanhá-lo, porque nem dá para pensar, e nem pode. É uma busca que está no sangue, parece que a gente já conhece, quando vê sabe o que é e quando se dá conta, já pegou pra si. Parece complicado, mas não é, porque perto e logo está também a moeda perdida. Está logo ali, debaixo da sujeira, bem pertinho, e sem dúvida que lá está. Diferente do tesouro encontrado, quase por acaso, a moeda é uma certeza do que fora perdido, do que deveria estar em outro lugar e se desmanchou na posse. Caiu, correu, se enfiou debaixo de alguma sujeira da vida, e vai ser preciso vassoura e tempo esticado de procura, mas é um tempo da certeza do está aqui e sei que vou achar, pode demorar, mas encontro, ora se encontro. Dentro de casa, minúscula casa de uma mulher pobre da antiga palestina, com pouco espaço pra procurar, só que o espaço não é o tamanho do quarto, mas a altura da sujeira, do pó, e de toda porcaria que foi juntada, e logo dentro de casa, como é que pode isso? Pode, porque é assim mesmo, o Reino se acha e se perde na intimidade. 

Só que complicado mesmo foi o filho pródigo, que tinha o Reino perto, o tesouro estava ali, não perdeu moeda, antes achou outras, e foi dar a volta ao e no mundo, como se pra chegar a um ponto, tivesse ido pelo lado contrário até completar a volta. A sujeira dele estava noutro lugar, largou o Reino logo perto, e se mandou, perdeu e teve que voltar, porque sabia onde encontrá-lo. Pro pródigo o Reino não estava no chão, estava em sua história e vida, centrado na compaixão do pai, e o Reino não era uma coisa, mas afetividade, presença pura do pai que valia a vergonha do retorno, e tudo isto é complicado, porque para o pródigo o Reino tinha ficado, mas também tinha ido com ele, e quando o procurou, o encontrou na memória e no pertencimento do que havia sido a vida toda e não tinha sequer percebido. Havia estado dentro do Reino, depois saiu, sem saber o que era, nem o que seria, mas voltou, porque precisava voltar.

Então, quando alguém perguntar pra você quem é o próximo e porque o próximo é chamado de próximo, certamente vai se lembrar de que é porque o Reino está no face a face, e a pessoa que é outro é também você, porque deve amá-lo como a si mesmo, está posto perto e logo. Quem encontra o próximo no caminho, pela parábola, se pensar dá a volta, mas se for a ele, apanhará o Reino com as mãos, o colocará num lugar pra ser cuidado, como se fosse ferido, e não saberá jamais que tudo aconteceu ao contrário, o ferido e o abandonado era você e foi o Reino que o levou pra ser cuidado, lhe deu abrigo e pagou a conta, porque você é o outro, e não sabia disso, e aí irá entender que a vítima da desumanidade e falta de solidariedade é você mesmo, e quem cuida do outro é como se abraçasse e cuidasse do Reino como se tivesse vida. E tem.

Então a porta, é só porta. No curtíssimo passo de travessia está o tesouro, o que fora perdido, e o outro, pessoa e próximo. Não tem corredor, apenas passagem. É um logo perto.

Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 13 de maio de 2014

DO OUTRO LADO DA RUA




“E eu vos digo a vós: Pedi, e dar-se-vos-á; buscai, e achareis; batei, e abrir-se-vos-á; porque qualquer que pede recebe; e quem busca acha; e a quem bate, abrir-se-lhe-á.” Lucas 11.9-10

Basta pedir, buscar e achar, certo? Claro que não! Será preciso controlar as variáveis, compreender a espiritualidade profunda, e se permitir fazer parte de um mundo que não nos pertence, como um transportar do recorte de uma vida à outra.

Eu sei que não é fácil, mas é. Lucas faz uma acorde genial: reduz a conhecida oração do Pai Nosso e a transforma em uma parábola. Deste modo migra diretamente da conversa e confissão para a vida. Na oração do Pai Nosso tem o pedir, o buscar e o bater à porta da casa do Pai, tem também pão, e ainda o socorro. E quando a oração vira parábola, a poesia se torna coisa e vida e nos leva para dentro do texto. Múltiplos personagens nos quais o interlocutor se vê como Pai, na forma de amigo, importunado, descansando, entregue ao desligamento como se já não estivesse mais ali onde poderia ser encontrado, a levantar-se lentamente, tentando compreender a razão de alguém procurá-lo em momento tão incomum. Só que o interlocutor, o ouvinte da parábola, é também quem importuna o amigo, que precisa de coragem na dúvida de ir, ou não, por incomodar e pedir o que aparentemente deveria ter de sobra. Poderia ouvir do amigo o apontamento do descuido, da falta de zelo, como um que tem descaso pelo que possui, que não está preparado nunca para qualquer situação, e assim voltar com as mãos vazias, e o amigo que parecia amigo, não era amigo, se irritara por já estar dormindo, a porta que ficara aberta o dia todo, fora fechada, e os filhos, todos, já na cama. Acordar a família inteira, sem razão, então tem que ter coragem, mesmo consciente de que pediria pão, só pão, coisa que com certeza o importunado à meia-noite teria. Coragem pra atravessar a rua, ir pensando e argumentando consigo mesmo no ensaio de possíveis perguntas e respostas, mas quando se dá face a face com o amigo da parábola, ou o Pai na oração, no silêncio da meia-noite, aí é diferente; quando se está diante, basta pedir o essencial, e que sai quase balbuciado: preciso de pão. Voz baixa, sem autoridade ou exigência. Nem tenta trazer à memória do Pai, ou amigo, que ele prometera isso ou aquilo, porque isso seria uma tentativa de inverter o constrangimento, como se incomodar fosse virtude.

Pois é, Deus, como o Pai, ou amigo, sendo incomodado é uma imagem pouco comum, mas necessária. É o limite, à meia-noite, e tem gente atravessando a rua pra pedir qualquer coisa, de qualquer modo, mas quem é amigo, amigo mesmo, atravessa a rua como o suspiro da única possibilidade e socorro. Pedir pão, é pedir pão, não é outra ou qualquer coisa. Pão aqui está no lugar de pão, nada mais.

Daí, você e eu, interlocutores e em diálogo com o texto, quando personagens dos que batem à porta, temos vergonha de pedir. É, vergonha de não ter feito o mínimo necessário, e vamos ter que novamente atravessar a rua, não deveria ser assim, mas será porque não tem outro caminho, incomodar de novo, como se não tivesse havido um antes, e perdemos a conta de quantas vezes atravessamos a rua. Envergonhados batemos, e o paciente Pai, paciente de um modo que a nossa vergonha não pode compreender, porque se fôssemos ele, não faríamos o que faz, abre a porta que parecia fechada, escancara a despensa de graça, onde parece que o que mais tem é pão, e enche a mão da gente pra atravessar a rua no retorno. A gente sabe que incomodou, não faríamos o que Ele faz. Só que não é assim, e nunca será. Atravessamos a rua e iremos atravessá-la outras tantas vezes, e em cada uma a sensação será como se fosse a primeira; só que o Pai, como um amigo, sempre do mesmo jeito, com a mesma paciência, outra vez, e outra vez, abrirá a porta que parecia fechada, mas não está, não dirá nada, mesmo que seja outra vez à meia-noite, na esperança de que um dia a gente aprenda a cuidar da própria despensa. Só que Ele já sabe que jamais iremos conseguir.

É por conta disso que a parábola não tem fim.

Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 8 de maio de 2014

O MAL DIANTE DA GRAÇA




“E perguntou-lhe: Qual é o teu nome? E lhe respondeu, dizendo: Legião é o meu nome, porque somos muitos.” Marcos 5.9

O mal é assim mesmo: não é possível conhecê-lo pelo nome, só pela quantidade. Um pacote. Um monte. Qualquer coisa sem identidade, só massificação. Um igual ao outro como se fosse farinha, e quando vira plural, aparece como Legião,  um exército sem rosto, amontoado de gente em tempo de guerra, um por sobre o outro; e tem gente que ainda se preocupa em fazer conta de quantos espíritos possuía aquele que ficou conhecido como gadareno!

Devemos ao desinteresse de Jesus, o desconhecimento que temos do passado daquele infeliz. Desinteresse que deveria virar doutrina, aos aficionados pelas regras, e seria a doutrina do ocultamento, da não curiosidade, da ausência de importância às causas e motivos. Contudo, podemos imaginar que o tal, que se tornara um balaio do mal, tivera um passado comum, de gente comum, e que num dado momento foi abraçando e sendo abraçado pelo mal, numa espiral que terminou no banimento, exclusão da sociedade a qual pertencia, na trilha do anonimato, que nesse caso significava despessoalização - descaracterização do humano como humano; e o fundo do poço estava, para ele, nas cavernas. Escondido, irado, desequilibrado, furioso, transformado em coisa. Foi então que o quase ser humano, a legião que o tomara para si, e Jesus, finalmente se encontraram. A narrativa é  um sobrevoo de contraste entre o mal, profundamente mal, tão mal que não poderia ser pior a deparar-se face a face com a plenitude da graça, incompreensivelmente perfeita, onde não poderia haver melhor, já que graça é plural no singular e vem sempre no superlativo.

A única pergunta foi pelo nome, não pelo passado ou motivo do banimento, e a resposta não veio da pessoa, mas do mal que o possuía. Conversa curta. O mal ameaçado, se submetendo, se curvando a espera do veredito do que provisoriamente poderia ser chamado de própria vida (na falta de uma palavra melhor), para depois, incompreensivelmente, ser lançado aos porcos, o pacote, um monte, a massa disforme, daí foi a vez dos animais, como um monte, penca, se lançarem pelo precipício, como um suicídio imotivado de uma manada inteira. Não tem teologia que explique isso. Se explicar, haverá controvérsias, porque um animal possesso é o cúmulo da malignidade, por conta de ausência de motivo, porque porco não tem ética, nem caráter, nem pecado, nem vontade ou consciência, e ninguém no nosso atual espaço público de cidadania homologaria o feito. O porco já era um banido e imundo, o que tornava o mal um morador da imundície, se é que isso possa fazer sentido - o mal no interior da imundície, ninguém merece, nem o porco.

Então o mal foi pro mar, mas não morreu, porque todo mundo sabe que o mal não se afoga, nunca morre, vai e volta, e quando você pensa que ele se foi, ele entra e se apresenta num dia qualquer, na sala de estar da sua casa, na zona do conforto depois do stress do dia, então toma assento ao seu lado enquanto você come pipoca e vê televisão, e pergunta de maneira pausada, lenta, calma e irônica, com um sorriso próprio de deboche: - E você como vai? Pois é, o mal não morreu naquele dia. Mas, deixe o mal pra lá, com os seus porcos suicidas e esparramados no mar, pois o que importa é o ser humano, aquele ser humano, que recuperou a sua humanidade, conversou, ainda sem nome, e se apresentou à sociedade que o havia banido como aquele que dava até medo por ter sido libertado do mal, de uma vez, completamente, sem perguntas, expectativas, cobranças, recomendações, exortação, ou qualquer tipo de doutrinamento por parte do libertador: bastava devolver-lhe a vida, porque na graça a vida vem antes do que qualquer coisa.

Depois? Bem, depois o sem nome virou profeta, pregador e mensageiro, é claro! Foi partilhar o plural e o superlativo da graça como expressão de gratidão, porque graça se retribui com graça. Então sumiu e virou texto.

Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 6 de maio de 2014

A ERA DA INOCÊNCIA




“Jesus, porém, vendo isto, indignou-se, e disse-lhes: Deixai vir os meninos a mim, e não os impeçais; porque dos tais é o reino de Deus.” – Marcos 10.14

A inocência é uma contradição: quando se toma consciência dela, já não é mais inocência. É como a alienação. Estar alienado é a condição de quem desconhece o que seria a própria alienação, pois quando esta é colocada a descoberto, já não há mais alienação. É algo como um sonho, que Tillich chamou de “inocência sonhadora”, embora no pensamento dele este conceito tenha um significado bastante próprio, como se fosse uma pergunta da alma, uma busca da profundidade humana que, quando a gente pensa nela, a pergunta já aconteceu. Freud, na Interpretação dos Sonhos, tentava encontrar o sentido destes antes de que fossem articulados em suas possibilidades de interpretação, daí o relaxamento de quem precisa retirar do fundo, do que o inconsciente revelou durante a noite, e assim, falar sobre ele como um retirado diretamente. Só então o sonho se torna mediado pelas palavras.

Só que a cultura da época ainda não conhecia Schopenhauer, nem Nietzsche. Assim a profundidade da profundidade, o que estaria mais oculto, no incontaminado, onde até mesmo o pensamento não alcançaria, aquilo que estaria escondido por detrás de uma vida que ainda ninguém escreveu, que é apenas promessa, o indizível, o que não se pode alcançar, onde a razão não chega, as doutrinas não entram, os sistemas religiosos ainda não estão presentes, o preconceito ainda não se constituiu, no limite da “zona do horizonte”, onde não tem nada, o lugar do completo esvaziamento, e a pessoa é só pessoa, como um sendo apenas ser, e um ser apenas sendo, tudo isso mostrava que a criança era o mais próximo distante que se podia alcançar. Isto é, próximo, mas que ainda não era suficiente, e ao mesmo tempo se dava como possível porque as crianças existiam, conviviam no meio daquela geração perversa, da qual não sobrara nada. Jesus marcava, assim, o que poderia ser chamado de: a fronteira da espiritualidade.

É claro que os sistematizadores, dogmáticos e afins, exegetas e confessionalistas irão afirmar que a expressão “dos tais é o reino de Deus” se refere, de maneira reducionista, a um lugar futuro, um depois, uma promessa, e irão perder as virtudes da espiritualidade profunda, aquela da qual não se pode tirar preconceito, porque não tem; é, aquela uma que não é uma imposição e retalhamento da liberdade, isso mesmo, aquela que todo mundo sonha, ninguém consegue retornar ao seu princípio e assim a vida religiosa prossegue no discurso de que, afinal, todos somos pecadores, limitados, ninguém tem condição de ser desse modo, e deste modo vamos justificando a desumanidade, aceitando a política do poder, a corrupção que interessa, a inclusão ou a exclusão do pertencimento ao cristianismo deste ou daquele, ao esquecimento do reaprender a linguagem das brincadeiras que não levam a nada (e porque haveriam de levar?), terminam terminadas, e fica o cheio de suor depois do intervalo das aulas, um desajuste aqui, outro ali, mas quem se importa?

Você acha que as crianças entenderam o que Jesus falava? E precisavam entender? Sabiam lá o que significava uma bênção? Sabiam nos braços de quem estavam? É que criança aqui, como pessoa e vida, é a metáfora da pureza oculta, e reino de Deus é a plenitude da existência. Quando as duas coisas acontecem juntas, tem-se aquilo que pode ser chamado de “pertencimento”. Este é um fazer parte com fundamento e base de uma teologia da inocência, que não pode ser teologia, sob pena de esvaziar a inocência.
E fica nisso.

Natanael Gabriel da Silva