sábado, 7 de junho de 2014

PASTOREADOR


(ao meu pastor, Laurencie Salles Coelho)

“Jesus disse-lhe: Apascenta as minhas ovelhas” João 21.17d

Eu sei que você não conhece esta expressão, mas estou tomando emprestada de Milton SCHWANTES, em sua referência a Amós, afirmando que ele não era profeta, mas profetizador, porque não estava vinculado a nada, não dependia de quem quer que fosse, não fazia parte de qualquer escola de profetas, e se opunha aos sacerdotes que tinham corrompido a religião, assim como militares e todo sistema ligado a Jeroboão II. Um reinado opressor, que expandiu o Estado, mas massacrou o povo, abriu as rotas comerciais e, por meio delas, o Reino do Norte seria então conquistado. SCHWANTES sintetiza: “A glória de Jeroboão foi o túmulo do povo.”

O pastoreador, seguindo o traçado de Amós e o exemplo de Jesus, é um inconformado com a corrupção e manipulação da religião: condena sacerdotes, escribas e fariseus, mas compreende o coração de uma sofrida mulher no poço de Sicar, é capaz de abraçar crianças pelo caminho, corrigir a agressão de quem ainda não havia entendido a linguagem do amor, como no caso de Pedro ferindo o soldado, e poetar sobre a religiosidade no recanto das planícies, multiplicando paz e solidariedade. O pastoreador não vê a carreira de pastorear como função, porque não tem carreira. O pastoreador, pastoreia, não faz política com a espiritualidade, e quando visita alguém na madrugada, não o faz para que este se torne um eterno devedor. Faz porque tem que ser feito, porque o seu coração é paixão, afeto e tem o dom do socorro. Não se conformaria, sem dúvida, com a disposição executiva e administrativa, que fez do atual modelo de pastor um gestor de negócios, pesquisador de planos estratégicos, e preocupado com técnicas de crescimento de Igreja. O pastoreador, só pastoreia. Não sabe lidar com negócios, o que em algumas comunidades poderia suscitar descrédito em sua liderança. Não saber fazer isso é virtude, que nem sempre os consumidores da fé compreendem. São estes os mesmos que consomem homilias, estudos, visitas, celebrações e calendário de atividades, tornando o que deveria pastorear, um vigilante da ética comunitária e o cumpridor de programas. O pastoreador não consegue lidar com isso. É um excluído do sistema, e quando alguma comunidade necessita de orientação e procura alguém que seja empreendedor, o pastoreador se exclui, pois se é uma coisa que ele não sabe, e nunca saberá, é planejar o pastoreamento declinando-o da vida, e o colocando nos números estatísticos de frequentadores e fiéis.

A linguagem do pastoreador é feita de amor e graça. Não se dá como porta-voz de um sistema, credo ou confissão, e sua mensagem tem origem e destino. Não é uma proclamação que fica no caminho, na vida, êxtase e projeção daquele que diz pastorear. O pastoreador assume que os ditos não são seus. O assim diz o Senhor em sua voz é vinculado ao destino do coração sofredor, aquele que precisa ser pastoreado. Sua preocupação é com a libertação de quem se encontra oprimido pela vida, ou por qualquer sistema, o que inclui a própria religião. Proclama esperança, sempre. Acredita na renovação da vida, no fim das injustiças, na conscientização das relações humanas pelo exercício da cidadania, no milagre da esperança em meio ao caos, e principalmente, no resgate do ser humano em qualquer situação que se encontre. É um sonhador. O pastoreador não desiste das pessoas, mas se afasta dos sistemas; diz não ao preconceito e à segregação, compreende que o papel da mulher na igreja não é o mesmo que na tribo. O pastoreador não é, está. Não tem título, apenas ministério. Não pertence a lugar ou grupo nenhum, é apenas um errante que dialoga com o humano.

A segurança e refúgio do pastoreador é a devoção; sua profundidade, a mística; sua ética, a redenção; o lugar do seu discurso, o Reino.

Natanael Gabriel da Silva

sexta-feira, 6 de junho de 2014

A FRASE QUE JESUS NUNCA DISSE

"E Jesus, movido de grande compaixão, estendeu a mão, e tocou-o, e disse-lhe: Quero, sê limpo!” – Marcos 1.41

É aqui vai o que Jesus nunca disse: Vamos orar. O vamos orar só é válido, se for um vamos imediato, ou se colocado como determinação e convicção, expresso por meio de um sentimento de preocupação e desejo de busca. Não é a esse vamos orar que me refiro. Trata-se daquele que é dito de maneira vaga e é colocado num futuro sem tempo  e já se dá como vazio logo na pronúncia.

Esse vamos orar tem cheiro de encerramento de diálogo com uma pitada de espiritualidade perdida. Já a ouvi no sarcasmo da ironia, no limite da discordância, quando os argumentos se tornam inconclusos, daí o que discorda olha e diz entre os lábios o que não acontecerá: Vamos orar, ou, vou orar por você. Não vai orar, é apenas uma sugestão de desvio, apontando que há um descaminho no modo de se compreender teologia e vida com Deus pelo interlocutor, e então o vamos orar sobre isso ou aquilo aparece como uma pérola de mal gosto, colocada como fim de frase, diálogo e bloqueio de qualquer argumentação, como se aquele que promete, cuidadoso fosse.

 Um dia, o responsável pelo setor de patrimônio, que havia negociado com toda a capacidade que lhe fora dada de articular argumentos, reduzir preço, parcelar o que já sofrera desconto, procurou o líder da igreja, numa manhã, sobre uma propriedade que certamente poderia dar um novo rumo à comunidade e esta dispunha de possibilidades para abraçar o desafio, e disse ao referido líder: É hoje, o preço é tanto, pegamos ou largamos. O pastor, que nunca concordara com a possibilidade de mudança, respondeu: Vamos orar. Não houve oração, é claro. Não houve nem intenção de oração, projeto de oração, esboço de oração, simplesmente nada, porque o vamos orar, não era vamos orar, e sim a colocação da questão num lugar qualquer, na zona do horizonte, onde ficou esquecido, guardado, perdido, e nunca houve resposta, porque nunca houve, de fato, pergunta.

Jesus disse o vou ali orar e foi, mas aquele vamos orar, não. Nunca disse porque não colocava no futuro a dor, nem a solidariedade. Era no ato, no já, no agora instantâneo, feito e confirmado pelo milagre, e quando disse pra Lázaro sair do túmulo não foi uma oração projetada no futuro, um depois que em alguns casos nunca chega, foi na verdade no contexto do profundo sentimento, presença de todos e a oração saiu com um eu sei Pai que sempre me ouves, e não ficou pra depois, nem pra daqui a pouco, mas no já. E estava feito. Ao leproso disse o eu quero, sê limpo! Disse e fez, na hora, quero agora, já, não quero pra depois, nem pra amanhã.

O vamos orar, esquecido depois de dito, anunciado como esperança que não se concretiza, promessa que nunca chega, não serve. Se ocorrer num daqueles vislumbres raros, surge sem o sentimento que movera o pedido, fosse de misericórdia, fosse de gratidão, e as palavras solenes, como quem conversa com respeito com o sagrado, se dão apenas como palavras que não têm interlocutor, vazias que são de humanidade e sofrimento solidário para com o que sofre. Porque oração é relacionamento com o humano, não é mágica que abre portas dos milagres, é ação humanizadora que muda mais quem ora do que o favorecido, que retorna aos ouvidos do piedoso, para que escute a si mesmo como se fosse um outro lhe dizendo da dor e do compadecimento. Você pode olhar as orações de Jesus e ver nelas os milagres. Tem muita gente que olha para as mesmas orações e vê nelas a profundidade do amor em movimento para o outro, o que faz dele ser mais humano do que a maioria dos estudiosos gostaria que fosse, e o coloca no chão diante da vida e da miséria, imediata e existencial.
 
O vamos orar irônico, nem merece frase de conclusão de texto.

Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 3 de junho de 2014

AS VIÚVAS




“Vós, mulheres, sujeitai-vos a vosso marido, como ao Senhor;” – Efésios 5.22

A questão da interpretação é, de fato, um enorme problema. Já está mais que assentado que o leitor é, na verdade, autor do que lê e dá sentido. O texto, de certo modo, é mudo, diz o que diz, e quem o interpreta coloca nele seu universo significativo, sua ideologia, teologia, emoções, história, memória, e por aí se vai.

Daí um fundamentalista um dia me disse, Natanael você sabia que a palavra que diz sobre a submissão da mulher ao marido, no original, é submissão mesmo, no sentido radical da palavra, ao que respondi, sim eu sei, e ele disse, então você entende que a mulher deve ser totalmente submissa ao marido, e eu disse, claro que sim, puxa Natanael pensei que a sua teologia não fosse assim tão literalista, e eu disse, pois é, também entendo que o texto deve ser interpretado no seu sentido mais original possível, que a literalidade deve ser cumprida a qualquer custo, pois o sentido do texto está acima de qualquer vontade ou decisão, ele olhou pra mim e disse, olha você me surpreendeu. Então eu fiz uma outra pergunta a ele: E o que você faz com a sequência do texto? É que o mesmo texto que diz que a mulher, literalmente, deve ser submissa ao marido também diz que o marido deve amá-la como Cristo amou a igreja e se entregou por ela. Então morrer aqui é também literal? Ou será que não?

Pois é, a literalidade é uma questão de opção, oportunidade e principalmente, poder. É por conta disso que todo literalista é moralista, para os outros; exige o cumprimento de atitudes e comportamentos, para os outros; e é capaz de fazer as cobranças, mesmo que desumanas, para os outros; porque a literalidade é uma opção hermenêutica variável, ora é, ora não é, depende do interesse e da ocasião. Então Jesuina e eu estávamos lavando louças, porque não há melhor lugar pra produzir teologia que diante da pia, e ela disse, Bem, você viu que o texto de Efésios é dirigido como um desafio às mulheres, como um alvo de entrega da vontade, e não tem nada a ver com os homens, pois não diz, vós homens submetei-vos vossas mulheres à servidão? Você não acha que os homens deveriam passar batido neste texto e pensar mais com o que vem depois? Pois é, é que a hermenêutica literalista, não somente deixa de ser literalista quanto à palavra quando tem interesse, mas distorce o sentido do texto que diz preservar, coloca no texto o que o texto não diz. O literalista faz até o que parece impossível: a hermenêutica da ausência. Isto é, quando interessa, afirma que se nunca foi assim na história, é porque não é bíblico, como se a ausência de alguma coisa pudesse ter significado objetivo e claro. Fazer exegese do que não está, contraria os manuais de interpretação de qualquer fundamentalista; mas, quem se preocupa com a incoerência quando se tem o poder de dizer o sentido, não é verdade?

É que o aparente sentido literal é mais fácil de ser determinado. O difícil é se apropriar da libertação da palavra nas metáforas, e o apontamento do excesso de sentido nos símbolos. É próprio do literalismo reduzir o sentido à etimologia. Como diz Tillich, um pano que se refere a um país, não é mais um pano, aponta para algo que está além dele, cujo sentido não pode ser determinado, se transforma no que pode ser chamado de bandeira, será um pedaço de tecido que passará a ser reverenciado, e se torna aberto de sentido. Nessa abertura de sentido entram paixão e sentimentos de profundidade do que se busca e deseja, e o que era se dá agora para além da compreensão. O pano se transforma em coletividade, história, memórias, lutas e libertação. Os símbolos religiosos são do mesmo modo. As narrativas sobre conversão são metáforas de morte, uma antecipação do bem supremo socrático-platônico, conquistado enquanto há vida; antecipado, mas ocorrido como evento final e transformador, porque a morte aponta para a vida, renascimento, o novo momento existencial quando então emerge a esperança, e tenho certeza de que Bultmann e Moltmann concordariam com isso.

Bem, de qualquer modo, talvez você tenha preferência pela literalidade absoluta, o que não tem qualquer problema. Eu prefiro ver o texto de Efésios como metáfora, desafio de entrega e despojamento da pessoalidade, colocados no tecido da literatura como um desejo de nascimento de um ser simbólico radical, que une o que aparentemente não pode ser unido, faz de dois um, e se dá a partir do abandono de um à outra, da outra ao um, por conta da paixão e identificação. Algo próximo do que diz Chico Buarque: “se na bagunça de teu coração, meu sangue errou de veia e se perdeu.”


Natanael Gabriel da Silva