“E, quanto ao vestuário, porque andais solícitos? Olhai os
lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que
nem esmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles.” –
Mateus 6.28
Que coisa boa o presente que recebi hoje pela manhã! Ganhei de
um amigo uma árvore inteira, um ipê amarelo, e acho que se Jesus estivesse
caminhando por aqui, neste veranico fora de tempo, América do Sul, o observaria
e diria: “Olhai os ipês amarelos...”
Talvez não dissesse isso. Os lírios são mais frágeis que os
ipês, parecem mais desprotegidos, nascem corajosos, às vezes solitários,
enfrentam a existência na simplicidade do apenas vida. Não sei se cuidado de
Deus e vida aqui significam a mesma coisa. Você pode achar que há uma atenção
divina, cautelosa, meticulosa e específica em relação a eles. Pode achar também
que são apenas expressões da simplicidade bela da vida, que brota e vai vivendo
como se viver fosse a sua única e exclusiva vocação. O texto não diz que os
lírios são divinamente alimentados, muito menos os ipês. Fala dos pássaros e,
por analogia, aproximamos as metáforas para alcançar a plenitude do que voa sem
destino, com aquele que ocupa a terra. Pode ser também o cuidado de Deus, tanto
ao que busca o que precisa, com ao que já tem o que necessita, como o lírio, e
seu trabalho consiste apenas em existir. Nesse caso o lírio superlativamente
existe, mais que o pássaro. O lírio é pura existência. Além disso o texto bíblico diz que
Salomão jamais conseguiria se vestir como o pequeno, frágil e solitário lírio.
Diz que a vestimenta deve vir de Deus, que o ser humano se preocupa em sobreviver
mais que o lírio, mas não consegue ser como ele é. O lírio apenas é.
É claro que lírios e ipês me jogaram a Belchior, é evidente.
Belchior menciona o rio que corre parado, e a dançarina de pedra que, em seus
movimentos, evolui. Ele, o poeta, se dá
completamente sentado, sem meta, sem nada, e faz um contrabando dos versos de Pessoa
(Álvares de Campos) e sua Tacaria, do não sou nada, nunca serei nada, não posso
não querer ser nada, à parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo, para
finalmente evocar: Vede: o pé do ypê (apenas MENTE) flora / R-E-V-O-L-U-C-I-O-N-A-R-I-A-M-E-T-E / a-penso
ao pé da serra.” O apenas MENTE é genial, ao escutar a canção, o que fica é um “apenasmente”,
como um acessório. Porém, na letra da poesia concreta de Belchior, você lê que
o ipê é um que engana a vida com a sua florada. Segue ainda a expressão “apenso”,
que na voz se dá num estando secundariamente colocado junto à serra, mas na
letra é registrado como a-penso, do pensar do poeta que julga a mentira declarada do ipê.
Um ipê revolucionário que insiste, apenasmente em existir, mas mente ao mostrar
vida numa existência tão fragilizada como a nossa.
De uma coisa sei: os lírios e os ipês são frágeis, como a vida é frágil;
que a vida simples é a melhor roupagem; que a beleza da vida é sua própria
aparição e isso não muda o estado da existência fragilizada do dia de amanhã,
mesmo que a ameaça seja o de ser lançado no fogo, como diz Jesus. O importante
é ser, estar, existir, florescer e embelezar a vida, apesar do tempo e sua
fatalidade.
Natanael Gabriel da Silva