terça-feira, 21 de agosto de 2012

PARA CONTAR OS DIAS


“Ensina-nos a contar os nossos dias, de tal maneira que alcancemos corações sábios.” - Salmo 90.12

A sabedoria está relacionada ao tempo. No Salmo 90, mais especificamente, a sabedoria é ser resgatado/a diante da visão da tragédia humana, como ponto de conscientização e limites. O autor era alguém que se dava como pó (v.3), um delírio (v.5), um nada, efêmero (v. 6) e profundamente vitimado pela história humana e ira de Deus (vv. 3, 5, 7, 9, 10 e 11). O pó indicava a insignificância do tamanho, e efêmero, a fragilidade do tempo e o delírio uma espécie de ausência, um adormecer e se dar como sonho.

De qualquer modo, memórias. Se contaminadas pelo autor por um presente inquietante e insuperável, não sei, talvez sim, mas sem dúvida, memórias. A ideia de consciência ainda era cedo e grega demais pra se conversar sobre ela, e as memórias tomavam o seu lugar, mas basicamente significavam a mesma coisa: saber quem sou e aprender com a minha própria história.

É aí que entra a sabedoria, o tempo e a vida. O tempo se desloca desde as origens e continuará como trilhos rumando para o desconhecido. A vida, bem a vida, é a vida, o deslocamento, e a sabedoria, a direção. Não dá pra parar, nem o tempo, nem a vida, mas é possível escolher a direção e ela irá depender do que você aprendeu enquanto vivia. É só uma questão de ser aluno de si mesmo. Deus pode até ensinar como fazer, mas você é que terá que fazer a contagem dos dias, ensinando pra si e aprendendo de si, quem foi, é ou poderá ser. Só a sabedoria é capaz de fazer isso.

Pr. Natanael Gabriel da Silva




segunda-feira, 13 de agosto de 2012

VAMOS FAZER FILHOS!

Não adianta os jovens e adolescentes ficarem entusiasmados. A conversa não é com vocês, sinto muito. Nem com os solteiros e separados. Daí um morador do meu condomínio disse: tô perdido – minha mulher inventou de ficar grávida! Claro que é uma conversa machista, de quem pensa que mulher se engravida sozinha. Apesar do mal humor – dele é claro, pois eu estava numa manhã de bem com a vida – dei os parabéns. Com um sorriso amarelo, ele disse que o outro filho já estava com onze anos. De fato, recomeçar tudo de novo, com direito a cólicas, fraldas, papinhas e perder a mulher por um tempo ocupada exclusivamente com a cria, desestimula qualquer um que vive no tempo da ditadura do conforto. A gente só aceita a quebra de ritmo, se for pra menos. Quebra de ritmo pra mais, não é quebra de ritmo, é o vislumbre da agonia.

Deixe o meu vizinho com o machismo dele, que eu vou aqui defendendo o meu cantinho, num estímulo contrário ao discurso de todo mundo: vamos fazer filhos, minha gente! Se você pensa que estou sendo bonzinho, pode tirar o cavalo da chuva. Estou sendo bastante egoísta, porque estou pensando que, sem filhos, não se comemora o dia dos pais (nem das mães). Antes o dia dos pais (e o das mães) era uma festa só. Teve uma vez em casa que resolvemos dar um caminhão de presentes para a minha mãe. Deixe-me explicar que caminhão aqui é apenas uma metáfora, um dizer de excesso, um montão. Pois é, todos pobres, pouca alimentação e pouquíssimo, ou como diria o Chaves, poucossissíssimo dinheiro. Enchemos a mesa com tudo aquilo que mais tarde abasteceria o mercado de um e noventa e nove. Naquele tempo, tais lojas não existiam. Colocamos tudo em cima da mesa da cozinha para que ela se assustasse com o nosso carinho pela manhã. Não sei se ela chegou a se levantar de madrugada e antecipadamente soube da surpresa. Se foi assim, fez muito bem o papel de quem ganha alguma coisa e não desanima quem deu – ficou pasma! Ponto pra nós.  Depois foi a vez da macarronada,  tubaína e guaraná Santana. Uma festa só: sete filhos em volta de uma mesa comemorando o dia de quem nos dera a vida.

Que pena! A mesma vida, impulsionada por toda a tragédia que tem rondado o mundo e seu crescimento demográfico, está ameaçada de extinção, ou de diminuição. Ainda tem o avanço da medicina que tem sido extremamente importante para cuidar dos que têm dó de morrer, acrescentou mais dias aos que já têm vida. Estes, não querem ceder espaço e tempo para os que sequer podem expressar os seus desejos. Não se deve dividir nada com um outro, especialmente se a gente tem a opção de não permitir que nasça. Vivíamos numa miséria em casa, que dava dó. Sou o quinto filho, e nos tempos atuais não teria a menor chance. Passei fome, mas gostei de ter nascido, me fez muito bem.

Você vai achar que estou exagerando. Sou pastor, tenho autorização para ser exagerado; faz parte da minha natureza. Talvez você seja um daqueles que acredita que a vida tem que rodar com menos sofrimento, com menos fome no mundo, com mais emprego já que o crescimento demográfico é uma tragédia para a economia. Tá certo, dou a mão à palmatória. Só que o dia dos pais, no plural e na multiplicação, está ficando mais curto, no singular e na subtração. Está ficando triste. A igreja está ficando triste. Sumiram as crianças barulhentas que traziam carrinhos à pilha, com direito à sirene de polícia e de ambulância. Onde estão as crianças andando pelos corredores? Aquela sala cheia de cabecinhas, trancinhas, chiquinhas e cabelos cortados no modo americano? Sala cheirando a suor pela correria que marcava o início da escola dominical. Berçários lotados que pareciam produção da Ford: era um atrás do outro. Salas decoradas, brinquedos pelo chão, chupetas encontradas pelo caminho, e muito choro, aquele barulho que ainda cheira à vida, na liberação da angústia do existir, ecoando e penetrando como se fosse toque prolongado e agudo de uma corneta que fazia gemer as cartilagens dos adultos. Não tinha quem não se incomodasse. Hoje já não incomodam mais. Conseguimos impor o cheiro do nosso mofo ao perfume das fraldas, o nosso silêncio sepulcral aos gritos rápidos de alegria de quem corre sabendo que vai sendo perseguida pelo pai que, num dado momento, a fará voar para três, talvez quatro vezes mais a sua própria altura. É o vôo da liberdade, e da segurança. É impossível não mostrar a banguela e o dente solitário.

A vida está ficando chata, porque ser adulto é ser chato. A gente não voa, não caminha pelos corredores, nem sai correndo para o início das aulas. Não tem cheiro de suor - aaaggghhh, que coisa nojenta! Só que é a gente que decide que quem não nasceu, não vai nascer. E ficamos mais tempo do que deveríamos, ocupando um lugar que já não é mais nosso. Mas quem em sã consciência é capaz de concordar com isso? Viemos no bico da cegonha, mas não queremos chegar ao bico do corvo. Nem tudo o que tem bico, penas e voa, faz parte dos nossos sonhos. Esticar a vida e o conforto também é lutar pela sobrevivência. Ficamos espertos nisso.

Minha campanha é legítima: vamos fazer filhos! Distribuir vida, apesar de não ser nossa. Produzir esperança e recriar um paraíso, senão o bíblico, pelo menos um tipo para o qual não falte jardineiro. Quero que no futuro o dia dos pais não seja extinto por falta de candidato.

REVOLUCIONARIAMENTE


"[O Reino de Deus] É semelhante a um grão de mostarda que um homem plantou na sua horta; e cresceu e fez-se árvore; e as aves do céu aninharam-se nos seus ramos.” – Lucas 13.19

Hoje vi um ipê-amarelo. Amarelo ouro e bem carregado. Ipê corajoso, na poética de Belchior: “Vêde o pé do ypê apenasmente flora/Revolucionariamente/Apenso ao pé da serra”. Nascido solitário ao pé da serra e você o vê de longe, como se fosse único e só ele desejasse ser árvore. É um revolucionário porque insiste na vida, meio de lado, de canto, de banda, secundário, mas floresce e se dá numa estética profética. Tente fazer como ele pra ver se consegue! É o descontrole da vida, como a pergunta do Chico aos ditadores e o que fariam estes quando o galo desejasse cantar: caçariam a letra?

Também acho que, a árvore do Reino, como o ipê de Belchior, é também revolucionário. Também é corajoso, porque pra ser plural, tem que ser grande. Abriga, abarca, recebe e protege as inúmeras aves do céu. Aves no plural, na diversidade, no colorido que embeleza e todos empoleirados abrigados no deserto que chamamos de vida. Não é uma árvore qualquer. É única porque nasceu onde não deveria ter nascido, cresceu um tanto que não poderia ter crescido e abriga tantas aves que só cabem porque é Reino de Deus, noutro lugar não caberiam. Um samba de uma nota só, que me desculpe o Tom Jobim, só foi possível fazer um. Uma nota só, única cor, forma de se crer, ou uniformidade invariável, não é símbolo de coragem, mas de imposição, de ditadura, regime fechado de comando porque é fácil de identificar o que está no descompasso. Agora, seja o ipê ao pé da serra, sofrido e solitário, que apenas existe, num mundo árido, ou a árvore do Reino, brotada no mesmo deserto, o que não lhes falta é coragem. No ipê ao pé da serra, solidão. Na árvore do Reino, a coragem de ser plural numa religiosidade desbotada. Daí é bom saber que é possível não ser igual para receber abrigo e proteção.

pr. Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O ELO IRRESISTÍVEL


“Há muito que o Senhor me apareceu, dizendo: Com amor terno te amei; também com amável benignidade te atraí.” Jeremias 31.3

A resistência ao amor é incompreensível. No contexto narrado por Jeremias o amor era a única esperança. Promessa antiga. “Há muito...” dizia o profeta e ainda não era tempo dele ter a promessa nas mãos, mas isso não diminuía o amor, adjetivado pela gentileza e dissolvido na compaixão. No passado, considerava Jeremias, fui enlaçado por esse amor. Tornou-se irresistível, e se me perguntarem qual a razão da minha esperança, direi que é apenas o amor. É claro que o profeta conhecia a história, mas o que é a história quando os atores e personagens somos nós? Para que servirá o futuro, se os atores e personagens serão outros? Como se alegrar com a esperança que não fará parte da nossa história? É possível falar-se em esperança, quando outros a desfrutarão?

Só o amor faz isso. Eu sei que Jeremias se referia a um povo e a sua crença de que, de certo modo, ele mesmo viveria em outros como parte do futuro. Sei também que a sua palavra personificada não era só em relação a si, mas o amor coletivo, antigo, desde os tempos de Abraão e da quase lendária libertação do Egito. Mas não é interessante que, ao invés de mencionar a eleição em Abraão, Jeremias transita para o amor e ainda com ternura? Será que Jeremias fazia a transição da responsabilidade de Deus ter feito para si um povo, e ter que cuidar dele, para o amor como o elo irresistível?

É talvez, mas quem consegue explicar a profundidade do amor, sua natureza e esperança? Quem consegue justificar a razão de amar? Como pode alguém ser alcançado pelo amor e continuar indiferente? Seria possível um “amor instrumental”, sem ternura, por interesse ou medo? Um amor sem amor, que fala do amor e, ao mesmo tempo, dele se esconde? Seria possível um discurso de amor, apenas como discurso? Seria esse o amor que não gera esperança, mas medo, frustração e beligerância?

Não sei. Acho que só entendo como Jeremias: um dia um terno amor me alcançou. Amor foi gentil e afetuoso. Não sei o que ele significa. Só sei que me dá esperança, sem qualquer justificativa ou motivo. Acho que é por essa razão que é amor, senão seria outra coisa, não é mesmo?

pr Natanael Gabriel da Silva