É claro que vou assumir aqui o conceito de Ricoeur,
compreendendo a metáfora como aquela que é portadora de um excesso de sentido.
Literalmente seria “transportar para outro lugar”, o que pode não ajudar muito.
A ideia clássica de que a metáfora é uma forma diferente, como figura de linguagem
e que substitui outra palavra, simplifica demais o seu sentido. A metáfora, como linguagem
própria, se refere a algo que só pode ser expresso por meio dela. Com outras
palavras, ou utiliza-se a metáfora, ou a possível compreensão, no ponto de
partida, já se tornou mais pobre. Isto porque a metáfora não se submete à
avaliação de exatidão do certo ou do errado a que os conceitos estão sujeitos.
A amplitude e profundidade de uma metáfora a faz superar tal crivo para que o
seu significado e valor como discurso de superação se dê como compreendido sem
ser possível esgotar o seu sentido. Deste modo, a metáfora é um discurso aberto
e o aproveitamento pelo leitor vai depender mais do nível de profundidade capaz
de nela imergir, do que a subsunção à legitimidade. Uma metáfora não é certa,
nem errada, é apenas uma metáfora em diálogo com o interpretante.
Ensaiar um significado a uma metáfora é reduzir o seu
sentido, e tal hermenêutica será flutuante a depender do universo e significado
simbólico do interlocutor, ou do leitor, que dará a ela o possível significado
e se tornará assim autor da leitura da metáfora, que ficará viva para
significar outra coisa, para outra pessoa, em outra ocasião.
Daí, a metáfora precisa ser compreendida mais por meio da
dúvida que das afirmações. No salmo 127, por exemplo, o que seriam “casa”, “cidade”,
“trabalho árduo” e “genealogia” para o salmista? Talvez fossem símbolos da
proteção e do abrigo. Talvez casa fosse aqui o limite do que está mais próximo
e íntimo, onde se forma o início do início de uma geração, com a família
crescendo em volta, como uma grande vila, cujo atomismo familiar que a nossa geração
da madame Frigidaire construiu, diria Belchior, não compreende e a caça agora vai para a geladeira
como forma de consolidar o isolamento e a provisão egoísta para o futuro, ao invés
do compartilhamento e irmandade da tribo que fazia festa quando todos se
alimentavam da coragem de um que trouxera para casa o resultado de seu trabalho e que era divido e saboreado por todos. Talvez a cidade seja o lugar coletivo desde
espaço sonhado como justo, igualitário, murado, e o cenário aqui é urbano,
feito fortaleza intransponível onde a vida se desenrola e se desenvolve por
meio da identificação cultural, donde se é, onde se quer ficar, onde é o lugar
da memória e das gerações. Destruir ou perder a cidade, não é apenas perder um
lugar, mas o sentido do que se é, das sagas da conquista dos antigos que ali
chegaram, cultivaram, sofreram e formaram a coletividade, parceira, cúmplice e
solidária, face a face no horizontal, e os filhos dos filhos e dos filhos na
vertical ascendente, para um distante cujas histórias são contadas misturadas
com mitos e eventos narrados pelos mais velhos nas festas coletivas, e o que
menos irá importar será a verdade, mas o imaginário heroico que já nos fez ser o que somos.
Da casa, para a cidade e os patriarcas das sagas, talvez o
salmista queira problematizar o enfrentamento do futuro, do valente que
precisa da aljava cheia de flechas para a defesa da vida, da história, da
memória e do lugar sagrado onde está a família, o clã, talvez a tribo, e na cidade o centro do poder do império e o templo. E o
valente vai enchendo a casa de filhos, que são as flechas, seu instrumento de
defesa, para que estes filhos gerem outros filhos e irão resguardar o lugar da
vida contra qualquer inimigo, porque a memória, as tradições, a história, as
sagas ficarão perpetuadas por meio da defesa imposta nos portões, mesmo que até
os portões, não sejam portões, mas apenas portais que abrem o tempo para a
existência contínua.
Talvez, mas só talvez, seja a vida celebrada pelo salmista,
seu espaço existencial, fragilidade e dependência de que Santo esteja, para
além da metáfora e de seu excesso de sentido, preservando a história e dele
cuidando como se tudo a Ele pertencesse; e ao ser humano, construtor da casa,
da cidade, do trabalho e pai das gerações futuras, ficasse apenas reservada a
devoção, a submissão e a obediência.
Apenas talvez.
Natanael Gabriel da Silva