terça-feira, 21 de julho de 2015

PAZ SEJA CONVOSCO

“Quando chegou a tarde daquele dia, o primeiro dia da semana, estando os discípulos reunidos com as portas trancadas por medo dos judeus, Jesus chegou, colocou-se no meio deles e disse-lhes: Paz seja convosco” – João 20.19

Antes de qualquer coisa, disse Jesus: Paz seja convosco. Antes de dizer o ide e fazei discípulos, do sair pelo mundo e divulgar a notícia da chegada do novo tempo, antes da criação de qualquer enunciado que pudesse esclarecer e determinar o que seria o Evangelho, ou quem deveria ser o Espírito Santo, ou que seria a igreja, ou de qualquer outra proposta de inclusão e agregação de quem quer que fosse, por meio da ainda desconhecida predestinação, ou da exclusividade da eleição judaica; antes de qualquer coisa e antes de tudo, uma primeira palavra ao encontrar-se com a comunidade logo após a ressurreição, e o dito primeiro após o reencontro tem que ser tido como prioritário, é ou não é? Um dito em forma de benção, talvez uma instrução ou quem sabe o traçado do rumo, como busca, preocupação e alvo: Paz seja convosco.

Paz complicada, contraditória e até sem sentido, porque tinha havido morte, isolamento e o medo estava instaurado, todos fechados, reclusos, portas trancadas, conversando sobre o que não se sabe; judeus ameaçadores que tinham levado o Cristo à crucificação, o que não seriam capazes de fazer com os remanescentes? Escondidos e no esconderijo, sem abrir as trancas e a paz, que também tinha sofrido, entrou, atravessou por onde não havia porta, e foi entrando. Porque a paz é assim mesmo atravessa e busca os escondidos e os encontra onde estão, não dá para ocultar-se dela, simplesmente se faz presente, nem sequer seria possível imaginar que estaria do lado de fora, mas estava. Então a paz, que era e é pessoa, entrou, mostrou as mãos que inexplicavelmente não tinham sido curadas pela ressurreição,  o que é um absurdo, porque o corpo ressurreto, até onde eu sei, não poderia ter ferimento, mas isso não tem importância, ou tem, porque as mãos precisavam contradizer a morte com a paz, sendo dada a permanência apenas da segunda; e confirmaram as mãos a paz havida entre a morte e o medo. Entre os dois, não sobraria nenhum.

E pra não haver dúvidas repetiu de novo, como primeira e segunda palavra, o que havia de mais importante, o que mais se poderia espera, ou do que mais se necessitaria: Paz seja convosco (20.21). De novo. No meu imaginário, com a mesma musicalidade e entonação. Só então, depois da repetição, disse do enviar, mas foi depois do pastoreio da paz, não uma, mas duas vezes, seguidas e iguais, um déjà vu;  primeiro a presença atravessando o oculto, as mãos abertas mostrando as feridas não curadas, o anúncio da paz repetida e por fim o sopro do Espírito, que pelo que me consta, fica meio diferente, e nem poderia ter acontecido, porque doutrinariamente só seria no Pentecostes. Só que João é João, o evangelista da recriação que recupera os atos do que torna o humano, humano, e Gênesis que está no começo do Evangelho, também está no fim como um novo recomeço. Em Gênesis, o sopro é da vida. Em João, o sopro é do Espírito, que também é vida, mas na linguagem da paz, como se a paz tivesse sido semeada, dita, desejada antes, entre o sofrimento da morte havida e do medo que os impedia de sair para o mundo; então dá-lhe paz, pronunciada e soprada como fonte. Deixe os milagres do Pentecostes para Lucas, pois milagre em João é o sopro daquele que é o agente da paz, e a vida emerge num novo momento de recriação e reconstrução na semeadura do perdão (20.23).

Paz seja convosco, em primeiro e segundo lugar, apenas paz. Paz que invade o esconderijo, paz-pessoa, soprada no milagre da vida e da presença do divino que aponta para o futuro e para a missão, semear a paz, viver a paz e anunciar a paz. Só isso.


Natanael Gabriel da Silva

domingo, 19 de julho de 2015

O CRISTO NA TERRA

“Vós sois o corpo de Cristo e, individualmente, membros desse corpo.” – I Aos Coríntios 12.27

Refletir sobre a igreja como Corpo de Cristo não é novidade. Prega-se e ensina-se sobre isso, sempre na perspectiva de se colocar a igreja no céu. Só que pode ser outra coisa, o Cristo na terra, pois nada mais humano que o corpo, perdidamente humano e assumido como metáfora para falar de sincronismo, unidade, completude, dependência e amor. Coisas divinas e humanas. Corpo que sofre com a unidade perdida, dividido e sem rumo, não porque tenha que ser imposto autoritariamente uma direção, mas porque a vocação do corpo, que se dá a partir da terra e do mundo, é o amor. Deste modo fez-se a metáfora, corpo e chão, humanidade, sofrimento e vínculo do diferente que de tão diferente só o amor produz o encaixe. E foi assim que o escritor começou pelo corpo e terminou com o amor, porque o amor é o fim, o ponto final, o onde termina a caminhada, sustentação única, não tem correspondente, nem genérico feito fórmula a suprir comparativamente ou por aproximação o que lhe compete; o amor é único.

O amor sofre, por causa do outro. O amor acredita, no outro. O amor espera e suporta, tudo o que vem do outro. E o humano é o outro para qual o amor se faz construção e vida. Supera tudo. De tão humano, está além da profecia e da espiritualidade que interpreta o mistério. Está além da fé e da esperança. É a dimensão humana que se prolonga à eternidade. Veio de Deus, eu sei, mas se fez humana, para dar sentido e sustentar a vida.

E foi assim que o escritor saiu do céu e foi pra terra, mencionou a linguagem dos anjos, que revelam os mistérios da profundidade e do inalcançável; saiu de lá e caiu no corpo, no encontro com o outro e falou do amor e foi logo traçando o perfil da paciência, da benignidade em forma de coisa, e esta coisa é o amor. Daí seguiu Paulo a discursar sobre o corpo e as categorias do humano decaído, doente e que precisa ser curado pelo amor, que é vida e mistério. E diz que o amor não pode ser invejoso, pois a inveja é doença da alma e do corpo, cujo sentido e resultado é o tornar-se singular e separado, nasce assim a individualidade oculta em virtudes tidas como havidas, mas que se perdem no esgotamento do que é pessoal. Vira nada. Deixa de ser corpo, pois o amor supera os próprios interesses, está sempre diante do outro; só faz sentido na presença e no pertencimento. Só o amor vincula e cria a unidade que não se rompe pelo desejo de espiritualidade individual e única. Então não há razão para a soberba, porque o humano-corpo, ou igreja-corpo, não sai do chão; estar soberbo e dar-se acima, mas o amor reduz, impõe um baixo no igual, nivelado, face a face com o outro. O amor não é indecente porque faz assumir o respeito ao que é diferente, por meio da proteção, afeto e ética, vividos tanto na comunidade, corpo-para-si, como na presença, corpo-para-o-outro. Se o amor nunca falha é porque é a solução do sagrado ao que não tem solução; deste modo é verdade, não por ser resposta absoluta, mas por abrir o caminho por onde a vida deve passar – é direção, estrada e espaço aberto para o depois; se preferir, uma trilha. Só assim funda o elo de aceitação do outro. Ora, então o amor não se irrita, não suspeita mal, pois sempre principia pela confiança e autenticidade, luta contra a injustiça e se espraia na verdade. Trata-se do amor dirigido e tornado ação no chão, que é da terra, sob a mentalidade do Cristo, sua ética comunitária e de pertencimento em favor do outro, chamado simplesmente de próximo.

O corpo é a metáfora viva do amor; humano, perdidamente humano, feito comunidade e presença.


Natanael Gabriel da Silva

domingo, 14 de junho de 2015

DO CAJADO PARA AS ASAS


Acho que pastor deveria ter asas, não cajado.
Claro que é quase um absurdo.
Afinal de contas, o cajado serve pra muitas coisas.
Talvez traga o símbolo do socorro, a retirar do abismo, pelo pescoço, a ovelha perdida.
Talvez sirva como defesa, contra as investidas dos lobos.
Talvez auxilie o pastor na caminhada.
Só que talvez tudo isso seja apenas uma parte do imaginário, pois o cajado também se aproxima do cetro e do poder, tem a memória de Moisés mandando na natureza, a tirar água de pedra e a abrir o mar, e ainda recupera a segurança do Salmo 23.

O cajado pode ser ainda um sem sentido, adotado para qualquer coisa e nenhuma, até mesmo como ferramenta de correção, tomando emprestada outra metáfora do Pai que corrige o filho.

Jesus nunca disse nada sobre cajados.
Quando falou do bom pastor, que era ele mesmo, o colocou como símbolo de total entrega e disposição para o enfrentamento do mal: o limite da vida.
Também disse que o pastor, agora o da parábola, era incansável no resgate; e uma ovelha, com nome, sobrenome e pronome, merecia o retorno e busca no final da tarde, talvez noite adentro. Jesus não menciona cajados, nem no resgate, nem na procura, nem na defesa, menos na correção, e nunca pensou nele como símbolo de reinado. O pastor se defende apenas com a vida, caminha pela noite levando-se a si mesmo, pessoa e coração, a encontrar quem se perdera. Parece até não ter cajado.

Se não tem cajado, tem asas. Daí o pastor colocou-se sobre Jerusalém, chorou e disse que estivera aguardando que aqueles matadores de profetas, desde os pais, o que mostra a sedimentação da cultura da perseguição e morte, os tais religiosos desumanos desde a origem, se recolhessem sob suas asas. Asas são proteção, como o cajado, e são abrigo. São proteção em favor do desprotegido, e não contra o mal que agride, pois o mal não pode ser resistido por ele mesmo; o mal tem que se cansar de fazer o mal na tentativa de alcançar quem se encontra sob a proteção das asas. As asas aquecem, não levam pra lugar nenhum, juntam o que deve ser juntado, e ninguém é capaz de dizer quantos cabem sob as asas do pastor que não tem cajado. Não tem cajado, mas chora. Diz chorando como quem mistura palavras engasgadas com as lágrimas, e lamenta o quando da morte dos anunciadores dos novos tempos de graça, um depois do outro, e depois do outro, o outro, e todos os que haviam sido enviados também foram silenciados, apedrejados, publicamente expostos, porque matar a voz é como fechar a fonte e depois não saber qual a razão de ter morrido de sede. Triste de quem morre, triste de quem mata, tristeza de Deus por oferecer abrigo a quem preferiu exterminar até os portadores que indicavam o lugar onde se recolher e agasalhar.

O pastor, sem cajado e com asas, viu o futuro de quem estava fora de seu abrigo, chorou pelos que estavam ali, pelos que viriam depois, viu a casa deserta, abandonada, seguida da dor da espera e da chegada de um dia, ponto futuro, chamado apenas de dia do Senhor. E um pastor com asas, não com cajado, é só abrigo, não é nobre, não exerce o poder, nem tem a pompa de rei. Até parece que sequer pode fazer algo além de abrigar e proteger, mesmo que seja na fragilidade de quem também não tem a resistência desejada. É quase um desprovido de milagre. Um comum. E só quem se coloca sob as asas sabe o que é estar perto-sob como se fosse um só com aquele que o abriga. Daí não dá pra explicar.

Embora a proteção do cajado ainda seja algo presente no meu imaginário, quase impossível de ser desfeito a ponto das asas parecerem loucura, se pudesse escolher, preferiria estas; ou talvez o símbolo do aprisco, que de certo modo quer dizer a mesma coisa.

Sim, faltou o texto.
Desta vez, segue abaixo:

Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes eu quis ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta seus filhotes debaixo das asas, e não quiseste! A vossa casa ficará abandonada. Pois desde agora vos digo que de modo algum me vereis, até que venham a dizer: Bendito o que vem em nome do Senhor.” – Mateus 23.37-39.

Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 9 de junho de 2015

EU AMO A IGREJA



“e manifestar qual seja a dispensação do mistério, desde os séculos, oculto em Deus, que criou todas as coisas, para que, pela igreja, a multiforme sabedoria de Deus se torne conhecido, agora, os principados e potestates nos lugares celestiais” – Aos Efésios 3.9 e 10


É provável que eu esteja meio fora de moda,
mas eu amo a Igreja.
Tenho motivos de sobra para criticá-la, pois
vivi e presenciei coisas surreais,
e também cheguei a pensar, e ainda penso,
que o desafio do Evangelho,
nem mesmo a igreja dá conta para si.
O Evangelho é um desafio para a própria Igreja.
Então, fico incomodado com o discurso consumista
que, em nome de igreja, que não é igreja,
pregadores procuram explorar a boa fé do simples, com promessas
vazias, cuja verdade está apenas na força do tom autoritário do
discurso.
Tem quem vende, tem quem compra.
Mesmo assim, eu amo a Igreja.
Aparecem ainda, e sempre, os segregadores e
defensores da moralidade e do gênero, que
excluem do pertencimento a Deus o ser humano amado por Ele,
como se desejassem ensinar ao Criador,
o que deve ser correto ou não.
Estes são os consagrados e defendem a ética do discurso,
mas aceitam a politicagem presente nas estruturas institucionais,
como se politicagem fosse sinônimo de esperteza, e a têm como virtude.
Aos infiéis da plebe, a lei.
Aos infiéis da politicagem, a admiração.
Aos cooptados por interesse e medo, fazem agora parte do time.
Bom proveito.
São os politiqueiros que se multiplicam como coelhos.
Vi tudo isso, mas eu amo a Igreja.
Estes lá estão, porque estão.
E estão exatamente por conta do tamanho
e coração do Reino que abriga
a todos, inclusive os oportunistas,
os carreiristas e até os apáticos consumidores
de celebração e culto.
Como diz Belchior, “Esperávamos os alquimistas...
E lá vem os arrivistas, consumistas,/mercadores”

Aqueles não são a Igreja,
nem quero me preocupar em saber se pertencem ou não a ela,
pois ela é a grande mãe plural e no superlativo
que só sabe o que é o amor,
mesmo quando o amor se volta contra ela.
Amo a igreja, sem entender porque há tanta pluralidade,
espaço aberto para o amor que nunca se basta ou chega ao fim,
porque não tem fim.
Então eu amo a igreja.

Também estou cansado de cantorias
e liturgias repetitivas sem criatividade
neste tempo quando nada mais basta.
As antigas orações, não bastam.
O estudo sereno do texto, suas contradições,
mistérios e ressignificação das
sagas, mitos e da vida, não bastam.
Também desejo o espanto por estar outra vez diante do sagrado,
como se nunca tivesse estado;
partilhar da oração que termina apenas com o poder falar,
nem precisa de resposta,
quando o apenas falar já é a resposta daquele que não precisaria ouvir,
o abraçar com afeto no encontrar o amigo,
parte do corpo, parte da vida.
Tudo isso está na Igreja,
por conta disso, eu amo a Igreja.

Você conhece o Guinélio?
Não, acho que não.
Conhece o Clademilson?
Também acho que não.
Com certeza, nem o Alonso, que pelo que sei nem espanhol é.
Laurencie é outro, que até a pronúncia do nome gera controvérsias.
São tantos...
Sabe quem é o Mateus? Já conversou com ele? É o Mateus, aquele que dorme, vez por outra entre os moradores de rua só pra experimentar a vida e abandono.
Um dia encontrei-me com Josué, e fiz dele um grande amigo.
Amigos. Não são perfeitos, são apenas meus amigos.
Sabe onde estão? Estão na Igreja.
Foi lá que os encontrei, e é lá que os encontro.
Eles me ensinaram a imperfeição por meio da pureza,
na busca infinda da ingenuidade e simplicidade.
Jamais teria aprendido isso se não os tivesse encontrado, sabe onde?
Na Igreja, é claro, e eu já disse isso.

Com a Igreja muito cantei em celebrações e cultos,
algumas vezes porque fazia parte da liturgia,
noutras, bem noutras, se deu o encontro com o fascinoso,
inexplicáveis momentos de contrição e sentimento profundo de ser
agasalhado por quem eu nunca vi,
chamo-o de Senhor, porque acho
que não tem termo melhor,
agora, se foi um encontro com o sumamente Outro, ou se foi com
o outro que sou eu mesmo, e que desconheço, o que importa?
Se desconheço, desconheço.
Seja o Ser-em-Si de Tillich, Mistério Absoluto de Rahner, o Ser Débil de
Vattimo, ou o outro humano, pessoa e ser, da parábola do filho pródigo, que
acaba por ser eu mesmo, o que importa?
Importa que foi lá, na Igreja,
combatida igreja, entrincheirada por cardeais,
bispos, pastores, diáconos, apóstolos,
paipóstolos, palavra que só a pós-modernidade mesmo poderia ter inventado,
regentes de corais, pastores de novo,
politiqueiros presidenciáveis de setores
maiores e menores das sagradas instituições
e que acreditam que servir a Deus está numa função.
Não sei se não está, mas também isso não importa,
porque as estruturas também
não são a Igreja, e não raras vezes, ou quase sempre, são obstáculos
que espelham e formam o modo de ser do simples que se rende cooptado,
povo e gente que nem sabe direito o que aquilo significa.

Aí você vai me dizer, tá aí a ideologia de quem explora e cultiva a falsa consciência
daquele que deveria aprender a lutar pela liberdade e contra opressão.
Tiro o meu chapéu.
Você está certo.
Lamentavelmente certo. Religião serva do poder, que coisa horrível, subserviente.
Que coisa triste.
Não é a única vítima.
O poder é assim mesmo, domina as até os centros de conscientização,
e está nos palácios do saber que se dão como guetos de funcionários e doutores
que se protegem, num apadrinhamento que faria envergonhar Brasília;
o poder manipula a mídia e está também presente na igreja.
Precisamos denunciar toda e qualquer forma de manipulação e escravidão.
Tudo isso está na Igreja, porque lá cabem todos, infelizmente ou felizmente, e quem se atreve a arrancar o joio, e se o joio for eu mesmo? Se não sei, não sei.
Daí, por democracia e perdição, completa e absoluta,
do mal latente, do qual todos somos portadores, o que faz a Igreja?
Inclui todos.
Cabem todos, inclusive eu.
Nem sei direito o que isso significa,
só posso dizer, que eu amo a Igreja plural, ampla, aberta, feito árvore do
Reino onde todas as aves podem ser agasalhadas.
Sonho antigo este.

Amo a Igreja porque nela aprendi o que é a vida, quem é o outro,
qual o sentido da existência humana,
como perdoar, como ser perdoado, como ser amado,
como ter esperança, como recolher-se no silêncio, como acreditar numa única
via de estrada ainda oculta, que vai se abrindo passo a passo, se parar, fecha, e dar um passo assim não há quem não tenha medo, mas de passo em passo, fui caminhando e fazendo o caminho.
Na igreja aprendi o que é abraçar, ter amigos e traçar o plano, que pode
não ser nada, ou outra coisa, sonhar com filhos crescidos, e ter a sensação
de ter cumprido a missão, ou pelo menos uma, ou parte de uma.
Não estar perdido, apesar da perdição.
Não viver do desamor, apesar do mal.
Ter esperança, apesar do medo.
Caminhar, sem ter trilha.
Tudo isso veio da Igreja.
Lá, na Igreja, tem sempre alguém a me chamar pelo nome
e a me perguntar: Como está? Estava com saudade de você!
São meus amigos.
Sempre os reencontro.
Sabe onde? Acho que sabe.
Amo a Igreja.
Não sei a medida disso, nem se tem medida.
Só sei dizer que eu amo a Igreja.

Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 6 de maio de 2015

A JOVEM VIRGEM E A IDOSA ESTÉRIL



Ouvindo esta a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre; então, Isabel ficou possuída do Espírito Santo. E exclamou em alta voz: Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre!  E de onde me provém que me venha visitar a mãe do meu Senhor? – Lucas 1.41-43

É claro que é o poder da vida que as uniu, o que na história ficou conhecido como o encontro do precursor com o seu Senhor, ou se preferir, de João Batista com Jesus, antes do nascimento, antes do sopro da vida prometida. Promessa que Maria foi conferir, porque não era comum anjo aparecer do nada, desde que tinha havido o tal do silêncio profético, expressão que Maria não conhecia e ficaria reservado aos estudiosos da literatura teológica; conversar com um anjo, dizia, quase não fazia sentido, e como se não bastasse o milagre da aparição celestial veio dialogada a partir do nome próprio, Maria, anunciado em alto e bom som pelo visitante inesperado. Isso aumentava a responsabilidade da ouvinte e dava ao milagre uma impossibilidade exponencial. A conversa com o anjo teve lá os seus limites, havia sido sobre uma gravidez improvável, de um filho que nasceria numa missão singular, dado numa promessa que qualquer mãe de primeira viagem gostaria de ouvir, ainda mais sendo divina: ele será grande e filho do altíssimo!

Ora, Maria questionou como deveria ser. O tal, enigmático e misterioso anjo, disse apenas da outra, da idosa, parenta de Maria, que se por acaso quisesse conferir, poderia ir ver que a estéril já estava grávida; e qual a diferença entre engravidar sendo virgem ou sendo absolutamente estéril? - (o absolutamente ficou por minha conta) A questão não era a diferença, mas a possibilidade de fazer surgir a vida do nada, coisa da especialidade de Deus, que depois do haja luz, se tornou uma prática, e os patriarcas que o digam. Então Maria foi ver o que se passava com aquela que sabia ser estéril, um pouco não acreditando, um pouco pensando na possibilidade que de fato fosse, e saiu, porque a fé é esse caminho entre o não acreditar e acreditar, e quem diz que acredita, acredita mesmo, de maneira pura e completa, exagera, não é mesmo? Pessoas normais como Maria, você e eu, vamos acreditando, um pouco sim, um pouco não, mas damos o passo na direção do sim, e um pequeno passo deste modo será sempre um passo grande, por menor que pareça ser. Maria deu o passo favorável ao sim. Foi ver a gravidez improvável, e nem bem chegou e o milagre da boca do anjo, que parecia grande, ficou pequeno, ou no mínimo menor.  Que anjo que nada, o milagre da criança agora tomava conta da cena, criança em gestação, e foi justamente o feto que conheceu, identificou e mostrou que o prometido estava chegando.  Daí você vai me dizer que isso é impossível, e onde já se viu feto ter consciência de si e da existência, quando a gente sabe que nem mesmo o recém-nascido identifica e separa o eu do mundo, que história mais estranha, porque a criança, que nem criança ainda era, fez a legitimação da promessa e do impossível. Ora isso parece fábula, e você vai me dizer que é, assim não percebe que com isso dá um passo pra trás, e na fé, um passo dado para trás será sempre um passo grande, por menor que seja. Mas, foi só um passinho! Pois é, sinto muito, na fé um passinho pra traz é um passo enorme, imenso. O que Maria viu, e ouviu, foi apenas a vida, em Isabel, legitimando a vida nela, nada mais, porque só a vida dá legitimidade à vida; esqueça a impossibilidade do feto e do feito.

Era tudo, pois, milagre. O anjo havia sido milagre. O que ele dissera, muito milagre. Depois, uma criança, que nem ainda era criança, apenas feto, se antecipava na alegria. O que se conclui disto é que a alegria vem antes do raciocínio e da inteligência, antes da confirmação e da possibilidade ou plausibilidade do discurso. Isto é, se fosse um religioso a confirmar o dito, iria procurar nos livros, agora como era feto, encontrou-o na alegria, porque esta não precisa de palavras, nem de conceitos, basta a celebração. Era, na verdade a vida, apenas vida. Vida pura e no estado de feto. Vida prometida, brotada, produzida pelo sagrado e legitimada pela própria vida, mais que a palavra do anjo, mais que as promessas dos antigos textos, e Maria que só entendia de vida, compreendeu tudo; a vida tinha vindo a ela sem conceito, completa e num corpo não formado.

Foi assim que Maria cantou orando: “A minha alma engrandece ao Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu salvador.” Não poderia ser diferente: maternidade, vida, poesia e oração, são misturas da fé e do coração.

Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 4 de maio de 2015

É POR AÍ MESMO



“O doutor da lei respondeu: Aquele que teve misericórdia dele. Então Jesus lhe disse: Vai e faze o mesmo.” – Lucas 10.37

E tem gente que faz pergunta achando que não há resposta, e o doutor da lei (nomikos), um expert, que sabia o que perguntava e não perguntava para saber, foi logo questionando a devida providência para a conquista da vida eterna. Pergunta boa que todo teólogo sistemático responde numa piscada, só não esperava o encaminhamento, porque vale o que está escrito, mas também o que não está, e a pergunta voltou a ele com outro conteúdo, na área onde era especialista, o sabedor dos textos e do sagrado escrito, ao que o doutor correspondeu às expectativas, respondeu memorizado, como deve ser a todo doutor da lei, recitou o desafio que ele mesmo não compreendia direito, e saiu na ponta da língua, recitou sobre o amar a Deus de todo coração, de toda a alma, de todo entendimento, coisas enormes que ninguém conhece na completude, a começar do coração, ou da alma, o abismo interior da existência humana, mas tudo isso na raiz do amor a Deus, que certamente pensava ele seria ficar repetindo o escrito, estudando o que não sabia e não tinha condições de saber, ou pensava que por participar dos cerimoniais sagrados, seu amor já estaria carimbado. Se com ele era assim, deveria ser também com Jesus, separou a recitação dos mandamentos em duas etapas, como se fosse pregador protestante em dois pontos, que pela ordem, indicava a sequência prioritária: amar a Deus primeiro e ao próximo como a si mesmo, em segundo. Que bom que você sabe disso, e sabe como se deve saber, disse Jesus algo parecido. Então, quem é o meu próximo? – perguntou o doutor da lei sem esperar que houvesse resposta.

Ele estava certo, a resposta não viria, jamais. O que veio foi uma história de um que sofrera na mão de assaltantes e ficara quase à morte, jogado num caminho. Fez Jesus a narrativa do que poderia ser uma resposta e quando terminou o próprio doutor da lei compreendeu que o amor começa com a misericórdia, esta mostrada na vida do enigmático samaritano, um socorrista que tinha saído sabe-se lá de onde, e tinha que estar passando tanto na história como na vida do doutor da lei, exatamente naquele momento. Passou e ficou, porque o samaritano não precisava socorrer, mas assumiu o desconhecido, pagou a conta que não era dele, levou o necessitado para onde não precisaria ter levado, deu um tanto que não tinha obrigação e disse que pagaria o resto quando voltasse, porque a graça não tem uma única passagem, é tanto na ida como na volta, e o milagre cai muitas vezes num mesmo lugar, o tanto que for necessário disse, o que faltar, e o favor do samaritano encheu o presente e o futuro, fez o que pode na hora, mas achou que poderia fazer mais depois, prometeu voltar e derramar a abundância por sobre o que já havia incompreensível, inesperado e desnecessário, e foi outra coisa que ficou no gancho porque a graça atua onde tudo já foi saneado, o que parece findo e suficiente, necessário e urgente, mesmo tendo sido resolvido, recebe depois mais graça, até parece que repousa até onde a necessidade já passou, e eu creio nisso, ora se creio. Só a graça faz isso, parece que vai, mas fica, parece que fica, e fica, parece que já fez tudo, e fez, e depois do tudo vem o além do tudo, quando quem já está mais que atendido e feliz sequer a espera. Mais graça? É mais ainda, e depois dela vem outra, mas é a mesma, e quando para, isso ninguém sabe, acho que não para nunca. Ao doente, já atendido e abrigado, a graça, na generosidade do samaritano, o visitaria outra vez e completaria o que já se dava como perfeito. O doutor da lei ficou olhando, e Jesus disse, vá pelo caminho do samaritano, começa por aí, faça o que não precisa ser feito, mas faça o que não precisa fazendo muito, depois faça mais ainda, e como se não bastasse, passe na volta para sobejar o que ainda acredita ser pouco, daí  será possível a você compreender o tamanho do coração, seu coração, que nem você sabia que poderia ser tão grande. Vai nessa toada, visite a própria alma e na caminhada irá chegar na trilha de conhecer o que significa amar a Deus. Faça isso sem desejo de troca, apenas o entregar-se como quem apenas vai fazendo e ao fazer se torna pertencido e parte do mistério. Você vai entrar e nunca mais vai querer sair.

O doutor da lei nem perguntou qual o conceito que o samaritano tinha de Deus e se havia uma coisa que qualquer doutor da lei tinha como regra é que samaritano nenhum poderia conhecer o suficiente sobre Deus pra fazer tudo o que Jesus dissera. Ficou perdido, é claro: ele que sabia, não sabia, o samaritano que não sabia, sabia. Escutou o doutor da lei um vá pelo mesmo caminho e quem quer amar a Deus precisa começar na pisada da misericórdia. Silêncio. Terminou nisso.

Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 16 de abril de 2015

A QUEDA

“Então, caindo em si, disse: Quantos trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui morro de fome!” – Lucas 15.17

O cair em si é ótimo porque é o entrar no vazio da alma e despencar, como aquele que não vê o chão, e vai caindo sem saber direito o final da queda, e quando chega, o limite é o em si, a redescoberta, o reencontro com o que poderia ter sido, mas não foi, um recomeço sem recomeço, pois é um voltar não ao marco zero, será o zero visitado no retorno, e vai caindo, desde cima, sem ser redundante, senão o cima fica muito baixo, e vão passando as casas dos desvios, cai de novo e sempre, como se visse a vida, o filme, e se olhasse como se estivesse do lado de fora, mas não está, porque se vê caindo e cai com o que vê e fica a sensação de não saber direito se era ele mesmo, quase sem acreditar, mas eu fui capaz de fazer aquilo? não acredito! mas onde eu estava com a cabeça? e vai se vendo, se envergonhando, e onde estava com a cabeça, não sei, mas agora ela está caindo no em si, afundando para um começo que não será o começo de tudo porque não dá pra apagar o caminho, será o começo do possível; não vai dar pra apagar a memória, ou a consciência, como um esquecer completamente, até porque vai precisar dela pra saber que a queda é cruel, não dá pra cair de novo, mas não abusa que dá, e é muito doída, quase desumana, mas quando o desumano é algo que o humano faz contra si, não é desumano, é só retomada de uma nova etapa e a tentativa de reconstruir tudo, colocar novos alicerces, estabelecer novos parâmetros, ficar menor, porque quem cai fica pequeno, se esborracha no chão do em si, fica amassado feito botão e só não vai além porque ninguém consegue cair pra dentro e passar do em si; o em si negativo é loucura e desvario.

Caiu no em si o filho que fora embora, aborrecido com a miséria, nem sequer se deu conta dos males, pegou mesmo foi no limite da vida que não poderia ficar pior, e se lembrou da benevolência do pai que havia esquecido, desde quando achara que a vida poderia ser solo, desde o tempo quando sequer sabia o que era vida, lá no momento em que precisava descobrir que estava à beira do abismo do em si, que nem sabia direito o que era isso, e naquele tempo disse que queria ir embora, se cansara da mesma árvore, mesma relva, mesma vida sem sentido, porque pra ter sentido precisava ir para onde pudesse cair, e caiu no em si, tropeçou pra dentro, e redescobriu os trabalhadores da fazenda que não tinham nome nem rosto, eram só trabalhadores, porque desde aquele tempo não olhava pra ninguém, só para si, sem o em, nem o cair,  e teve que aprender a reescrever o sentido da vida juntando o cair, com o em, e com o si, cada um separado era uma coisa, agora juntos o derrubaram em queda livre, no vazio da alma, na escuridão de sentido que parece só haver para o fundo, e foi caindo até que botou o pé no si que estava no chão do chão, esmagou-se, porque caiu sobre a própria alma, a sufocou, a feriu, a machucou sem dó e piedade, e é claro, sem controle, pois se há uma coisa que não dá pra saber é onde fica o fundo do em si, cada um, um poço, e tem até aquele que fica caindo, só caindo no vazio do nada. A queda do filho de Lucas, porém, teve um limite, foi grande, mas teve fim; queda grande, e quanto mais se cai, mais doída é a dor que se tem ao cair sobre si mesmo.

Estou morrendo de fome, de pão, de mim mesmo e estou com saudade do meu pai disse ao cair. E foi assim que voltou para casa.


Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 9 de abril de 2015

O PROFETA E SEU CANTO TRISTE


Eu sei que você, lendo Isaías 40, o primeiro texto do chamado Segundo Isaías, vai lê-lo como promessa. E é.

Hoje eu li Isaías 40. 1 a 12 assim:

Meu povo precisa de consolação e conforto, pois é chegado o sofrimento no seu limite. Já sofremos demais, muito além do que poderia ser em razão dos nossos pecados, que também são muitos. É muito sofrimento vindo da mão do Senhor, o que torna o socorro quase um vazio de sentido, pois a fonte da provisão é de onde brota também a dor. Daí a voz clamando no deserto, o mesmo deserto da libertação e presença, abrindo o caminho para o nosso Deus poder vir, talvez para ver o quanto sofremos, talvez para mostrar o quanto nos rendemos e nos humilhamos ao convidar aquele que nos faz sofrer para ser o também o libertador; pois afinal é como se o sofrimento, no seu limite, fosse agora aceito e reverenciado. E tudo ficará planificado, os montes e colinas rebaixados, os vales nivelados, abertos para o Senhor passar, ou para abrir o horizonte para ser visto, por detrás dos montes, além do que pode ser alcançado, e ver na imensidão a glória do Senhor, desde longe, onde a terra e o céu se encontram, misturando assim o humano e o divino, o divino e o humano, quando sofrimento e esperança acabam por se juntar, tudo ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Assim nos submetemos, tanto ao sofrimento, quanto à esperança do livramento, tanto à incompreensão da dor que se dá como ter ido além, como a esperança que não sabemos como será; só sabemos que é esperança sem fim, como o horizonte. E vem o clamor, mas que clamor? O clamor da humilhação, da pequenez, da fragilidade e confissão: somos relva, estamos no chão do chão, somos como flores no deserto, fragilizados pela seca e que não suportamos mais o vento do sofrimento, e mesmo que venha, a esperança permanece para sempre, porque ela segue a trilha da promessa, que veio do deserto, desde a libertação, desde quando tudo teve início, com direito a maná e águas doces. Um deserto que não tinha nada, e teve tudo, essa é a trilha da promessa. Então voz do que clama pelo deserto, e voz que não sabe o que clamar, mensageiro de Sião, suba num monte bem alto, levanta e grite para todos ouvirem, não tenha medo, porque o sofrimento não pode banir a esperança, e diga às todos que também não tenham medo, apesar do medo. Aponte e indique: Aqui está o vosso Deus. Mostre o deserto planificado, aponte para o infinito que não pode ser compreendido, e apresente a presença do nosso Deus que nos trouxe pelo deserto trazendo consigo a esperança, mesmo sem saber direito como será, e, no meio do sofrimento dobrado, diga que Ele virá, ora se virá, de um modo de outro virá, e tem o braço forte, trará consigo a graça, o cuidado como quem pastoreia o seu rebanho e vai nos agasalhar, como quem nos pega no colo, e nos fartará das primícias da vida, como se nos desse o primeiro leite, e nos guiará com a mansidão do pastor que sabe ensinar e conduzir, como ninguém, a vida pelo caminho. Quem sustentou a vida pelo deserto, saberá sustentar a mesma vida no meio do sofrimento.

Talvez seja, o canto do profeta, triste; de quem não reprova o sofrimento de profundidade doída e dobrada, e reserva para si, não a esperança da cura e da dor que não pode ser apagada. É apenas humilhação, rendição e presença de um Deus, em quem, no horizonte, sofrimento e esperança se juntam. É só aplainar a vista que dá pra ver.


Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 8 de abril de 2015

GRAÇA MENOR


“Cuidado para que ninguém se abstenha da graça de Deus...” Hebreus 12.12ª

É uma expressão quase incompreensível, a depender do que significa graça, numa linguagem que passa por muito teolojoquês e que a própria cristandade não tem dado conta de explicar, e as igrejas vão se dividindo numa imensidão de comunidades, e o todo, fragmentado, se perde nas verdades e nos sobrenaturalismos, mas quem sabe um dia a pluralidade dos discursos consigam construir alguma totalidade, se é que esta já não seja a fragmentada.

Pois é, abster-se da graça é um problema porque impõe limite ao que parece não ter limite. Uma graça que não seja plena, não poderia ser considerada graça, na expressão correta da palavra. Ela já expressa aquela que abarca tudo, até a impossibilidade de ser limitada pela vontade, e os defensores do livre-arbítrio querem morrer com isso. Mas o protestantismo burguês que se vire com a ruptura entre o sagrado e o profano, e a metafísica católica, não mais feliz, com o drama da ausência de liberdade. Nos dois casos, a igreja nunca se fez povo.

Uma coisa é a graça e sua plenitude, como manto que recaiu na história e abraçou a vida, outra é o desfrutar da graça, e é aí que entra Hebreus. Trata-se do encurtamento da graça, passada pela peneira da raiz de amargura, como segue no texto, filtrada pela seriedade de vida, desejada na venda da herança genética, conhecida como primogenitura, por Esaú e que por não ver o futuro, se acabou em choro, derramou lágrimas, mas a história já havia sido escrita e foi como se ele, Esaú, tivesse tocado as trevas e a tempestade, e a linguagem de Hebreus segue misturada com outro evento, para que os críticos literários possam afirmar a ausência de algum texto, de alguma coisa qualquer, e a teologia assim migra para os detalhes da literalidade para então se esquecer da graça encurtada por Esaú e a dor de não ter nela se lambuzado por inteiro. A explicação estaria na vida e no futuro.

Eu sei que o texto parece simples demais. E é. Porque a graça, na sua beleza, perdão e inclusão, tem que ser sorvida até onde se consegue, para depois ir mais além, e é como o horizonte sempre chegando, e mais caminhada. Vida plena, diria Jesus. Leveza na jornada, apesar do nada, da ausência e injustiça. Aí você não entende se há ou não limites, e fica dando voltas na incompreensão da livre-vontade sem nunca saber onde começa e termina a graça, pra descobrir que terminar e começar são metáforas do que não tem nem início nem fim. E o que é ilimitado se encontra com o drama humano e o convida ao descanso, por mais alienador que isso possa parecer; ao refrigério da libertação profunda, por mais idealista que possa ser concebido; a uma vida de presença do sagrado e sua companhia, por mais improvável que possa se dar. E a amargura que faz sofrer, diria o autor aos Hebreus, sonha com o sofrimento e retribuição do mal ao outro, e a graça sofre porque o desejo de fazer sofrer é por si muito sofrimento, e a raiz de amargura vai abrindo e rasgando o coração e se firmando, ferindo, e daí você perde a conta de quem de fato sofre mais, se o outro, se o um. Sofre a graça que não se cansa de perdoar e ensinar o acolhimento; volta à esquecida retribuição do bem pelo mal, ao depositar nela, graça, o futuro mesmo que no presente faça mais sentido um prato de lentilhas. É que a falta de significado e compreensão fazem parte da exacerbação da graça, é seu conteúdo, seu mistério, imensidão e exagero.

Teologia nenhuma explica isso.


Natanael Gabriel da Silva