“Quando chegou a tarde daquele dia, o primeiro dia da
semana, estando os discípulos reunidos com as portas trancadas por medo dos
judeus, Jesus chegou, colocou-se no meio deles e disse-lhes: Paz seja convosco”
– João 20.19
Antes de qualquer coisa, disse Jesus: Paz seja convosco.
Antes de dizer o ide e fazei discípulos, do sair pelo mundo e divulgar a
notícia da chegada do novo tempo, antes da criação de qualquer enunciado que
pudesse esclarecer e determinar o que seria o Evangelho, ou quem deveria ser o
Espírito Santo, ou que seria a igreja, ou de qualquer outra proposta de inclusão
e agregação de quem quer que fosse, por meio da ainda desconhecida
predestinação, ou da exclusividade da eleição judaica; antes de qualquer coisa
e antes de tudo, uma primeira palavra ao encontrar-se com a comunidade logo
após a ressurreição, e o dito primeiro após o reencontro tem que ser tido como
prioritário, é ou não é? Um dito em forma de benção, talvez uma instrução ou quem
sabe o traçado do rumo, como busca, preocupação e alvo: Paz seja convosco.
Paz complicada, contraditória e até sem sentido, porque
tinha havido morte, isolamento e o medo estava instaurado, todos fechados,
reclusos, portas trancadas, conversando sobre o que não se sabe; judeus
ameaçadores que tinham levado o Cristo à crucificação, o que não seriam capazes
de fazer com os remanescentes? Escondidos e no esconderijo, sem abrir as
trancas e a paz, que também tinha sofrido, entrou, atravessou por onde não havia
porta, e foi entrando. Porque a paz é assim mesmo atravessa e busca os
escondidos e os encontra onde estão, não dá para ocultar-se dela, simplesmente
se faz presente, nem sequer seria possível imaginar que estaria do lado de
fora, mas estava. Então a paz, que era e é pessoa, entrou, mostrou as mãos que inexplicavelmente
não tinham sido curadas pela ressurreição, o que é um absurdo, porque o corpo ressurreto,
até onde eu sei, não poderia ter ferimento, mas isso não tem importância, ou
tem, porque as mãos precisavam contradizer a morte com a paz, sendo dada a
permanência apenas da segunda; e confirmaram as mãos a paz havida entre a
morte e o medo. Entre os dois, não sobraria nenhum.
E pra não haver dúvidas repetiu de novo, como primeira e
segunda palavra, o que havia de mais importante, o que mais se poderia espera, ou do que
mais se necessitaria: Paz seja convosco (20.21). De novo. No meu imaginário, com a
mesma musicalidade e entonação. Só então, depois da repetição, disse do enviar,
mas foi depois do pastoreio da paz, não uma, mas duas vezes, seguidas e iguais, um déjà vu; primeiro a presença atravessando o oculto, as
mãos abertas mostrando as feridas não curadas, o anúncio da paz repetida e por
fim o sopro do Espírito, que pelo que me consta, fica meio diferente, e nem
poderia ter acontecido, porque doutrinariamente só seria no Pentecostes. Só que
João é João, o evangelista da recriação que recupera os atos do que torna o
humano, humano, e Gênesis que está no começo do Evangelho, também está no fim
como um novo recomeço. Em Gênesis, o sopro é da vida. Em João, o sopro é do
Espírito, que também é vida, mas na linguagem da paz, como se a paz tivesse
sido semeada, dita, desejada antes, entre o sofrimento da morte havida e do
medo que os impedia de sair para o mundo; então dá-lhe paz, pronunciada e soprada
como fonte. Deixe os milagres do Pentecostes para Lucas, pois milagre em João é
o sopro daquele que é o agente da paz, e a vida emerge num novo momento de
recriação e reconstrução na semeadura do perdão (20.23).
Paz seja convosco, em primeiro e segundo lugar, apenas paz.
Paz que invade o esconderijo, paz-pessoa, soprada no milagre da vida e da
presença do divino que aponta para o futuro e para a missão, semear a paz,
viver a paz e anunciar a paz. Só isso.
Natanael Gabriel da Silva