terça-feira, 27 de março de 2012

SEM TAMANHO




“E eu vos digo que, entre os nascidos de mulheres, não há maior profeta do que João Batista; mas o menor no Reino de Deus é maior do que ele.” – Lucas 7.28

Eu sei que teve, e tem, muita gente boa afirmando que Jesus e João Batista não se entendiam muito bem. Dois grupos, duas escolas, e uma superou a outra. Como nada ficou escrito pelos próprios discípulos de João, o assunto fica suspenso e vai deslizando na imaginação.

Eu, que estou mais pelo lado da poética/literatura que da história e seus conflitos insolúveis, vou aqui estranhando a ideia de, no Reino de Deus, ter menor e maior e vou logo afirmando que, pra mim, foi apenas um modo de dizer que menor e maior são figuras do nosso tempo. Quem fez mais, ou fez menos, no Reino de Deus, tanto faz, são todos pequenos. Que injustiça! – diria você. Não, não é injustiça. É condição. E o ladrão que esteve ao lado de Jesus na cruz, também vai ser igual a mim? Vai. Igualzinho, mesmo tamanho, perdão e graça. Mesmo modo de ter sido amado por Deus. Uma mesma decisão e pedido que deu a ele o passo para a eternidade: - Lembra-te de mim quando entrares no teu Reino. Uma oração com menos de dez palavras. No Reino de Deus ele será pequeno. João Batista será pequeno. O profeta Isaías também será pequeno. Paulo, pequeno também. Pedro, outro pequeno, e você na trilha da mesma oração, uma súplica de entrega e confissão, mais um pequeno. Não é um pequeno mais, outro pequeno menos, um pequeno que é menos pequeno, ou um outro que é um pouquinho mais, um dedinho só, tiquinho assim mais que o outro. Nada disso. Pequenos e pequenos, porque lá só Deus é grande. Se você quer ser grande no Reino de Deus, esqueça! Lá só tem lugar pra gente que se reconheceu como carente de Deus, insuficiente até debaixo d´água para se livrar dos próprios pecados. Que precisou do perdão para ser o que é. Tudo o que você pensa, é ou possui, veio dEle, tanto as virtudes como o tempo e a própria vida.

Gente assim, como você e eu, sem tamanho, não temos o que exigir, só agradecer.

pr. Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 26 de março de 2012

QUANTO EU TIVER SETENTA E CINCO ANOS

(Escrevi este texto já faz alguns anos. Relê-lo é também relembrar desejos, renovar sonhos e pensar o ainda-não. De certo modo, ainda não me livrei nem dos ternos, nem das Atas, mas tenho convidido e cativado amigos. Então, se puder, sonhe comigo.)

“Ensina-nos a contar os nossos dias, de tal maneira que alcancemos corações sábios” – Salmo 90.12

Ainda não cheguei lá. Também não sou garoto. Tive aulas com o pastor Soren, que dava aulas de Teologia Sistemática. Pastor Soren só falava de suas memórias, e não respondia as questões que achávamos importantes. Certa vez um dos colegas, inconformado, perguntou: “Afinal, o ser humano é corpo-alma-espírito, ou é só corpo-alma?” Esta é a típica pergunta que só faz quem é aluno de teologia. Pastor Soren respondeu sorrindo: “Já foi o tempo em que eu me preocupei com isso!” Saímos aborrecidíssimos. Desde essa época, estou tentando aprender a sonhar com o que vale a pena.

Quando eu tiver setenta e cinco anos, vou querer me arrepender de muitas coisas que fiz de um modo, e que deveria ter feito de outro. Não terei medo de me reavaliar. Não gosto do discurso de quem diz: “Se pudesse viver outra vez, faria tudo do mesmo modo”. Primeiro porque já vivi o bastante pra saber que isto é besteira, depois porque só a idade nos ensina o que é a vida, e mesmo assim a gente nunca aprende. Aos setenta e cinco anos, quero me arrepender do tempo tão curto do casamento, da vida que passou rápida demais, do que ainda não deu tempo de conversar, dos inesquecíveis castelos e do depois de conto. Vou me arrepender do tempo que deixei de brincar com os meus filhos, que logo se casaram, seguiram suas vidas e saíram para aprender a fazer as próprias perguntas importantes. Vou me lembrar das viagens, mas só por causa das pessoas que estiveram comigo. Não daquelas cheias de compromissos, Assembleias Convencionais e debates que sempre voltavam para o mesmo ponto de partida, as mesmas pessoas discutindo as mesmas coisas, pra se chegar às mesmas conclusões. Quanto tempo perdi ouvindo leituras de Atas! Documentos, verdadeiros livros com gráficos, mapas de crescimento, números, extratos bancários, estatutos, muitos estatutos, perspectivas e projetos que nunca foram concluídos, nem o serão, porque o futuro sempre vem navegando meio à deriva, num negócio incerto chamado vida.
Vou querer rir muito. Ah! Vou mesmo! Vou dar muita risada. Não dos outros, mas de mim. Rir do tempo quando eu não sabia fazer perguntas. Da época quando desejava saber se o ser humano é corpo-alma-espírito, e de quando pensava no milênio. Vou me lembrar mais das festas e das conversas livres depois dos cultos, que das reuniões. Abraçar mais, muito mais. Vou querer ficar impaciente, contando uma história da vida para cada coisa que acontece. Quero tirar do armário, não os objetos que ganhei e que já estão fora de época, mas sim as fotos, muitas fotos. Imagens da minha história. Gente rindo, família na praia, filhos pequenos, adolescentes, casados e já velhos. Quero ver fotos dos meus amigos, pessoas que conheci nas igrejas por onde passei; eram ovelhas quando eu pensava no milênio e se tornaram amigos quando aprendi a fazer as perguntas importantes. Vou jogar fora os ternos. Jogar os velhos sermões quando as perguntas eram outras. Vou querer ser acompanhado pelos livros. Continuar lendo dois ou três ao mesmo tempo, sem terminar nenhum. Vou aprender a dizer “não sei”, e isto não fará qualquer diferença. Vou continuar gostando da chuva e pensarei na vida enquanto os pingos nas poças vão trazendo as histórias da infância, pelo vidro, pela janela disputada por sete cabeças, narizes achatados no fascínio da imagem e as pequenas mãos tirando o embaço; uma única janela na rua M 1, lá na Vila Martins, que dava para uma estrada cheia de lama e pingos que pulavam. E a gente dizia: - “Olha o pai pulando!” Nunca soube direito o significado disso, mas aos setenta e cinco anos, não será uma pergunta importante. 

Será apenas o tempo de colher o que plantei, e tive a vida toda pra fazer isso.

terça-feira, 20 de março de 2012

O HORIZONTE PARA CIMA


 “Não ajunteis tesouros na terra, onde a traça e a ferrugem tudo consomem, e onde os ladrões minam e roubam; mas ajuntai tesouros no céu...” – Mateus 6.19,20a.

Trata-se da superação no horizonte. Se você vive cercado de casas e prédios, a sua visão só alcança alguns metros, pouco mais, um pouco menos, e assim, se não tomar cuidado, poderá perder a noção do horizonte, que fica mais longe e  está por detrás das coisas. Agora se você olhar para cima, contempla o que não tem fim. Longe de tudo e bem distante.  Daí o ser humano resolveu viajar para o alto e não encontrou lá nenhuma poesia, porque o alto é o que nos faz cair para cima e lá é tão distante da miséria humana, que só pode ser a morada de Deus.

Eu sei que Deus não mora no céu, mas isto está na minha cabeça, não no coração. Continuo elevando os meus olhos para os montes à espera do socorro. Sei que lá também está tudo o que é perfeito e completo. Assim, juntar tesouros e coisas aqui é aplicar a vida por inteiro com preocupações pequenas, o que também diminui o sentido do que é viver como humano. É ficar olhando para baixo, onde a vista só alcança a própria altura, ao invés de olhar para cima e ser esticado para crescer. Quando a gente olha para cima, vê que há muito espaço pra se guardar muita coisa lá, quando olha para baixo fica pequeno/a e sem saída, pois o chão está logo ali, debaixo das solas dos pés.

Olhar para o alto é colocar os valores lá, nas prateleiras altíssimas, onde só a visão e o imaginário alcançam. Só que lá não dá pra colocar coisas, só valores. As coisas ficam por aqui mesmo. Lá só pode ser depositado o que não pode ser apanhado com as mãos, como o amor, a gratidão, a confiança, a dependência e os sonhos, por exemplo. Tesouro da comunhão com Deus, acha que está no limite do chão? Claro que não, está para cima, longe de tudo e de todos e só você um dia alcançará, porque pertence só a você.

É, acho que vida hoje se resume no olhar para baixo, e é por isso que o ser humano não consegue ir além da própria altura. Possui muitas coisas, e quase nada de valores eternos.

pr. Natanael Gabriel da Silva

sexta-feira, 16 de março de 2012

TORNAR-SE HUMANO



“Darei a vocês um coração novo e porei um espírito novo em vocês, tirarei de vocês o coração de pedra e lhes darei um coração de carne.” Ezequiel 36.26

O coração de pedra é ensimesmado, só olha pra dentro. Não é modificado com o que contata e permanece sendo sempre o mesmo. Essa é uma das razões pelas quais a síndrome da Gabriela deve ser vista com precaução: Eu nasci assim, eu cresci assim, eu sou mesmo assim, vou ser sempre assim. Eu sei que Dorival Caymmi deu um sentido diferente à sua poesia, mas a petrificação e a mesmice levam ao fechamento da vida para o mundo, de tal modo que o outro nada tira, mas também nada acrescenta. Quem se aprisiona em seu próprio mundo, se defende dele, mas também irá olhá-lo sempre pelo buraco da fechadura: o que passa pela frente dá pra ver, o resto não existe.

Agora, o coração de carne, é um problema. Não tem a resistência do primeiro, é humano, tem prazo de validade e não consegue se defender das agressões e dos medos. Mas o que seria da vida se não fossem os medos? O que seria da vida se não fossem as dores? Seríamos o quê? “O quê” mesmo, porque é o coração de carne que nos transforma em “quem”. Ele dá identidade, porque a pedra massifica, torna todo mundo com a mesma cara macilenta e sem expressão. Pois é, quem tem o coração de carne, luta para ter mais resistência, e não consegue. Quem tem um coração de pedra, às vezes, nem sabe que possui um.

Ninguém sabia nada disso, até que Ezequiel deu a informação: tem outro tipo de coração, porque existe outra forma de se viver. É como se fosse necessária uma recriação, não um transplante. Não simplesmente trocar um pelo outro, mas mudar a resistência, fragilizar a vida petrificada e ser, apenas, humano. Parece que não, mas tornar-se humano, humano mesmo, é o caminho para se ouvir a voz de Deus. E só ele é capaz de fazer isto: humanizar a mesmice da tragédia humana num novo sentido para se viver.

pr. Natanael Gabriel da Silva


quinta-feira, 15 de março de 2012

A EXCEÇÃO


 
“Lembra-te, agora: qual é o inocente que jamais pereceu? E onde foram os sinceros destruídos?” – Jó 4.7

Esta pergunta foi de Elifaz a Jó. Você consegue explicar o sofrimento de uma pessoa inocente? Você acha que Deus permite o sofrimento de alguém nessa condição? Pois é, a resposta comportava um tremendo, enorme, gigantesco e absoluto: Não!

É daí que o livro de Jó tem coisas, do mesmo modo tremendas, enormes, gigantescas e absolutas a nos ensinar no tempo quando Deus se tornou produto de consumo. A resposta de Jó, nos ditames de uma literatura poética, foi categórica: - Conheço: Eu.

Sei que você vai entrar pela porta, também bíblica, de que nunca houve alguém justo, nem um sequer, que pudesse ou tivesse a pretensão de afirmar tal coisa. É uma boa resposta, mas Jó é o livro que nos ensina que no turbilhão do sofrimento, há Graça de Deus. Difícil para nós a compreensão disso, porque Graça de Deus sempre está associada à felicidade, ao que o Senhor nos dá, especialmente se tais coisas forem traduzidas em casas, carros e salários. Não compreendemos outra linguagem. Nunca iremos entender que o Senhor é Soberano em todas as coisas, que faz o que quer, do jeito que desejar, e andar com Ele já é o presente do presente do presente. Um presentão no superlativo, aumentativo e esticado. Você, e eu, não precisamos de outras coisas, muito menos achar que o Senhor é injusto só porque uns tem algo, outros não, e dimensionar a Graça de Deus por objetos ou sensações.

A pergunta de Elifaz estava errada. Não importa a inocência do ser humano. O que vale é só o pertencer a Ele. Só isso basta. Os problemas que você tem, e eu também, são apenas problemas, às vezes ocasionados pelo próprio sentido do viver.

pr. Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 13 de março de 2012

CRESCER PRA DIMINUIR


 
“Mas rejeita as fábulas profanas e de velhas e exercita-te a ti mesmo em piedade.”

Histórias e mais histórias. A vida e a religião estão cheias de histórias. Regras, muitas regras, um emaranhado de opiniões e sistemas cada vez mais complexos. Parece que, depois da porta de entrada, as religiões são pródigas em se organizar como labirintos. São infinitas repartições, às vezes de cubículos apertados.

Paulo mostra um caminho simples. Ele, Paulo, que não fora tão simples assim. Não mesmo, e se você fizer a leitura da carta aos Romanos poderá julgar por si, caso ainda não a tenha lido. Só que agora, quem escreve, não é mais o jovem Paulo. É Paulo, o velho, já vivido, sofrido e tendo percorrido os anos. Do que temos de escrito dele, só faltavam, possivelmente, duas cartas. Ao que parece, nunca mais escreveu um texto com cara de Tratado de Teologia. Depois de tudo, acima de tudo, e antes de tudo, uma recomendação simples: exercita-te na piedade.

Piedade aqui tem o sentido de vida integral, profundidade, devoção e santidade. Mais semelhante a Jesus, do que com Paulo mesmo quando jovem, porque há um momento quando a pessoa não se identifica mais consigo, vai caminhando na direção de Deus e ficando mais semelhante a Jesus. Paulo, não queria e nem recomendava, que alguém se tornasse como ele fora, mas como Jesus e sua profundidade espiritual. E foi preciso crescer, para diminuir. Só que isso não acontece naturalmente. É preciso dedicação espiritual e tempo: duas coisas raras neste mundo pós-moderno.

Exercita-te na piedade. Só isso.

pr. Natanael Gabriel da Silva