sábado, 30 de novembro de 2013

O LUGAR DO REINO




“E, quando Jesus ia saindo do templo, aproximaram-se dele os seus discípulos para lhe mostrarem a estrutura do templo. Jesus, porém, lhes disse: Não vedes tudo isto? Em verdade vos digo que não ficará aqui pedra sobre pedra que não seja derribada” – Mateus 24.1,2
 
Depois de tudo o que já tinha sido feito, depois do Sermão do Monte, depois das muitas curas, da libertação dos cegos pelo caminho, dos discursos sobre a vida, sobre o Reino como uma árvore nascida de uma pequena semente e dos pássaros agasalhados em sua copa, plurais, de todas as espécies, depois de ter mostrado ao rico que para seguir a Jesus bastava ele, pessoa e coração, e não as coisas que tinha ou o que fazia, depois do milagre da multiplicação dos pães, o novo maná servido e sobejado a todos, depois de andar por sobre as águas, depois de dizer que o semeador saiu para semear, alhures, e as sementes foram caindo, sem estrutura, imposição ou sacerdotes, caindo como chuva em dia de verão, então, depois de tudo isso, o orgulho pelo templo é o retrocesso do retrocesso, a memória que não lhes pertencia e teria sido uma eterna desconstrutora, caso não tivesse tido um fim.

O fim, não era apenas de um templo ou prédio. Era o fim do sistema religioso, que em nome de Deus, segregava, perseguia e apedrejava. Fim de um sistema corrupto, como toda e qualquer organização que toma posse do sagrado e se dá como sua única interlocutora. Torna-se assim opressora por origem, destino e comando, orgulhosa de sua simetria doutrinária, organização e, infelizmente, também orgulhosa de seus bens e recursos, e porque não dizer, de sua multidão de seguidores. – Nada disso vai ficar de pé, disse Jesus, porque a vida cristã está nas pessoas, não nos sistemas, está nas ruas de quem sai do templo, olha para trás e confessa a falta de importância em tudo aquilo. Vale mais, muito mais, uma viúva à porta e suas duas moedinhas, ou um endemoninhado banido com sua legião de diabos, ou um paralítico trazido por sobre o teto, ou uma mulher impura que toca o santo e que além de continuar santo, santifica a impura, e não o inverso como determinava o sistema religioso segregador, ou ainda são mais importantes os malditos banidos de Betesda que no tanque sobreviviam a custa da miséria e da esperança, enquanto a religião no mesmíssimo momento se reunia em festa no templo. Jesus preferiu estar com aqueles, é claro, porque o Reino dos Céus é um tesouro que está no campo, não no templo, está nas ruas e Deus não se encontra, necessariamente, nos atos litúrgicos de adoração, ou nos oráculos proféticos regularmente determinados a acontecer, com dia e hora previamente agendados, mais conhecidos como sermões ou homilias. Nada disso. O Reino está na caminhada pelas ruas, por entre as pessoas, no andar pela vida, onde estão os campos, os lírios e os pardais que nos ensinam a viver.

Orgulho pelo templo e religião que se professa! Ninguém merece!

Natanael Gabriel da Silva

sábado, 16 de novembro de 2013

E QUEM PRECISA DE MILAGRE?



Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; não, não, porque o que passa disso é de procedência maligna. – Mateus 5.37

“Acredito, porque um filho não vai mentir pra mãe!” – foi a sentença, quase uma clarividência profética, que encerrou a nossa conversa matinal num sábado de sol. Minha mãe e eu conversávamos sobre filhos e o assunto migrou para o bem-estar que ela sentia quando, madrugadas adentro, ficava perguntando como estariam as suas sete crias e, ao mesmo tempo, descansava: - “Está tudo bem!”, os filhos diziam. Então eu continuei: - “Escuta isso, mas não acredita”, daí ela me deu a lição dos seus oitenta e seis anos vividos desde o tempo da revolução de 32 e sua fuga numa madrugada de São João da Boa Vista, do tempo da lavoura e do pai que morreu cedo, e eu já vivi mais do que ele, do tempo quando passava as madrugadas pensando o que colocaria à mesa pra saciar a boca dos sete, do tempo quando fazia roupas de saco de farinha e de açúcar e as tingia na cor que o uniforme escolar exigia, do quando só tinha um vestido que o lavava à noite enquanto os pequenos dormiam, do quando voltava da entrega do bordado a encontrar-se com os dois, os pequenos dos pequenos, já à porta da padaria à espera do pão que tinha sumido da mesa.

Então o “Acredito, porque um filho não vai mentir pra sua mãe!” veio acompanhado, cheio de tudo o que poderia ser mais gratificante e realizador, o sentimento de que valeu a pena, e por conta do acredito, chegaram o descanso e o sono, na trilha do realizado, da vida que agora se esgota e que teve uma completude parcial em si mesma: não fez tudo o que precisava, mas fez tudo o que deveria ter sido feito.

Não foi um “acredito” como se esperasse um milagre, claro que não. Também não foi um “acredito” politicamente correto, educadamente pastoral. Isso também não. Por um lado foi um acredito pós-empenho, pós-esforço, pós-dedicação, um “acredito” no plural e no superlativo e que não tinha por natureza agradar quem quer que fosse, mas satisfez o próprio coração, que descansou agasalhado pela confiança. Um acredito que transfere ao outro a responsabilidade da ética, da autenticidade e da transparência, mesmo que se torne vítima dele.

Sai de casa naquela manhã de sábado com a memória da fé que está no passado, não da que reside no futuro. A fé por conta do que passou tem a cor da simplicidade e traz o merecido descanso e uma incompreensível paz. Trata-se da fé no que aconteceu, ou um acredito por conta de um princípio, fundamentado tão somente na ingenuidade. Não espera um milagre, nem é crítico em relação à resposta, mas é o suficiente pra fazer sorrir e descansar, mesmo que seja na madrugada.

E daí? Quem precisa de milagre?

Natanael Gabriel da Silva

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

O CONTRASTE



“Em verdade vos digo: Quem não receber o reino de Deus como uma criança de maneira nenhuma entrará nele.” – Marcos 10.15

Receber o reino como criança é não fazer o tipo de pergunta que os fariseus tinham acabado de fazer (Marcos 10.2ss). Qual tinha sido a pergunta? Sobre o divórcio. Na verdade sobre a extensão de uma doutrina, porque parece que o profissional da religião, o estudioso da fé, só sabe perguntar por estas coisas. Deseja saber como é isso, como é aquilo, como funciona este ou aquele, ou onde está a verdade verdadeira, e para que a redundância fique perfeita acrescenta: verdade verdadeira e absoluta.

Daí Jesus apanhou em seus braços as crianças que não perguntaram sobre o divórcio, não sabem o que é o céu, sequer compreendem direito quem é Deus, o que é a vida, o que se deve ou não fazer no sábado. As crianças não perguntaram pela Graça, o que esta significaria e se teria extensão; nada sobre predestinação, sete semanas de Daniel, quando e de modo iria acontecer o medo libertador do apocalipse, se Jesus estava mesmo na origem de tudo, também não perguntaram; se Deus é três pessoas que parecem quatro, mas é tido como se fosse uma, também não. Nada sobre se Jesus e o Cristo são de fato as mesmas pessoas. Nenhuma pergunta sobre milagres, nem mesmo sobre as sagas do Antigo Testamento. Nada. Também não houve qualquer cura, ninguém levantando e carregando a própria maca, nem algum endemoniado restaurado ou leproso curado. Nada. As crianças apenas se deixaram levar: primeiro por anônimos que não aparecem no texto, finalmente do chão para os braços de Jesus. E, ao que parece pelo texto, o mundo de Jesus ficou reduzido aos pequeninos que o rodeava, como que fascinado por elas.

Só isso, simples, muito simples, com plasticidade, afeto, resgate, muita vida e a promessa unilateral e inesperada, que não foi pedida ou exigida, fosse por merecimento ou condição: “porque das tais é o reino de Deus”.

Uns perguntam pelo divórcio, outros se deixam levar pelos braços de Jesus. Cada um faz o que pode.

Natanael Gabriel da Silva