domingo, 30 de dezembro de 2012

O MILAGRE VISTO PELO LADO DE DENTRO

“Disse o Senhor a Moisés: Porque clamas a mim? Dize ao povo de Israel que marchem.” – Êxodo 14.15
 
Apenas para se ter uma idéia: a travessia do Mar Vermelho para o antigo Israel é semelhante à ressurreição de Jesus aos cristãos. Na travessia, o Mar era uma barreira que impedia o retorno, só dava pra ir em frente. É como o tempo, não dá pra voltar. 

O texto é rico em imagens da tragédia. Milagre de salvamento e morte, paredes de águas e a promessa de que haveria um outro lado. Lado da frente, não lado do lado, porque o futuro se abria no comando do cajado, tocando a água e a cortando como se fosse queijo, macia, consistente-mole e era só caminhar pra outra margem. Esta também era misteriosa, pouco ou nada se sabia dela, mas jornada é jornada, a gente começa e vai sem saber. A expressão “Porque clamas a mim?” pode parecer uma cobrança, inquietação e até mesmo dura repreensão, mas pode ser também uma presença, não precisa clamar que Eu estou aqui, onde sempre estive e estarei. Pode ser um “Vou com vocês, como sempre, e a travessia do Mar, de certo modo, será minha também. Moisés! Coloque o povo pra caminhar que eu vou junto!” Acho que foi isso. Oração diferente. Uma oração que não precisava de oração, um estar desde sempre e um vamos atravessar juntos como declaração de pastoreio e presença. 

O marchar era para o outro lado e também para o depois, caminhar por sobre e dentro do milagre. O mar abriu e o povo passou por dentro dele, todo mundo caminhando pelo meio do milagre. Milagre grande é assim, faz a gente ficar dentro dele, imerso, por dentro e para frente. Pra você e para mim que estamos acostumados com o milagre no coração,subjetivo, que já é imenso, não entendemos o milagre acontecendo pelos lados, nas muralhas de águas, por debaixo, nos pés secos e por cima, na brisa que sustenta o milagre e a gente passando por dentro dele como se fosse um túnel.  E vamos, que vamos, vocês comigo e Eu com vocês! 

Acho que não tem jeito da gente caminhar pro futuro sem andar no milagre como se fosse túnel. Quando o deserto chegar, e vai chegar, a gente vê o que Deus vai fazer, se vai mandar ou não chuva de pão ou de carne, se vai haver oásis ou coisa parecida. Tudo isso, separado ou somado, é o de menos. Deus cuida. Importa hoje botar o pé no túnel e marchar. Vai ter sempre um cajado abrindo caminho, vento misterioso aparecendo de uma hora para outra, e você caminhando dentro do milagre protegido/a e amado/a, sem entender e também sem esperar. Milagre repentino, inusitado, nunca antes havido, feito portal para o futuro e o novo tempo à espera, do outro lado. 

Feliz 2013.
 
pr. Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

O MAL INSTITUCIONALIZADO



“E como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que dentre vós está sem pecado, seja o primeiro que atire pedra contra ela.” – João 8.7

Quando Jesus dialogava com uma pessoa, individualmente considerada, em situação de miséria e pecado, sempre a tratava com profunda dignidade e respeito. Por outro lado, quando se deparava com o pecado instituído e defendido pelo sistema religioso formal, tratava os interlocutores como hipócritas e demonstrava nítida repulsa, porque para ele, nada mais deprimente que uma comunidade que instaura, coletivamente, o mal.

O texto de João nos mostra isto. Os justiceiros, de pedras na mão, se apresentaram ali como religião constituída. Democraticamente haviam julgado a adúltera e, fundamentados no que havia de mais claro e nobre, sem qualquer sombra de dúvida, sentenciaram a infeliz à morte e se tornaram, em nome de Deus, defensores da moralidade e da pureza. Estavam ali adúlteros, roubadores, usurpadores e politiqueiros das coisas religiosas, porque não desejavam qualquer justiça a não ser agredir Jesus. Utilizavam assim o mecanismo da purificação com o objetivo de alcançar Jesus. Não só decidiram por impulso, mas insistiram, confirmaram o desejo e decisão. Quem sabe se naquele dia não seria o grande prêmio? Dois numa ação: Jesus, principal alvo e, de quebra, o apedrejamento de uma adúltera imoral em prol da santidade e pureza! Não tinha como dar errado, mas deu, porque o olhar para o mundo interior revela monstros e misérias escondidas, não assumidas, mas que corroem sem consumir.

O texto iria ensinar, mais tarde, que o responsável pela santidade da Igreja não são os seus adeptos, mas o próprio Jesus. Foi ele quem morreu pela Igreja para que esta se apresentasse sem mácula nem ruga. Não são os participantes da comunidade institucionalizada que têm poder e capacidade, por banimento ou preconceito, de efetivar o que compete à espiritualidade profunda. Pecadores não podem banir pecadores. E a esquizofrenia do protestantismo histórico e tradicional reconhece que, banir uma pessoa do grupo religioso, não significa excluí-la do Reino de Deus. Com outras palavras, você pode fazer parte do Reino de Deus, porque lá a graça aceita tudo, mas não pode fazer parte desta comunidade específica, porque aqui somos exigentes e zelamos pela pureza. Continue no Reino. Vamos orar por você, mas não aqui. Somos impuros, mas você é extremamente impuro, muito impuro mesmo, e não pode caminhar conosco. Quando for menos impuro, retorne humilhado, talvez seja possível recebê-lo/a de volta.

Pureza? Seletiva, é claro; de quem se apresenta para jogar a pedra e esconde o adultério, pessoal ou de alguém protegido pela família, empurrado pra debaixo do tapete. A uma comunidade assim Jesus chamou-a de hipócrita. Isso porque a malignidade nessa forma de segregação está no fato de ser consciente, discutida, aprovada e executa com os requintes do abandono e da prepotência. É o mal apoiado, votado e registrado em Ata, como se Deus fosse leitor de texto e não de coração e intenções.

Jesus não desejou fazer parte de uma comunidade assim. Sigo sua orientação e decepção: eu também não. Se você perguntar a alguém: - Se tivesse que escolher, qual personagem gostaria de ser no episódio de João 8? A resposta, depois de meio segundo de reflexão, com certeza será: - A mulher adúltera, sem dúvida. Isso porque a hipocrisia é pior que o adultério, e a homologação do mal coletivo é mais asqueroso que qualquer pecado que tenha como sentença a morte. Se você pensou que gostaria de ser Jesus, não se preocupe, o querer ser Deus faz parte do imaginário popular.

Em João 8 quem iria morrer, viveu. Os que se achavam vivos, com decisão e Ata votada de sentença de morte, voltaram mortos para casa, carregando as vidas miseráveis.

Aquela mulher não era uma excluída. Era uma privilegiada. Não pelo que cometera, mas pelo perdão e liberação dados pessoalmente por Jesus. Só ela ouviu “o eu também não te condeno”, volte para casa, liberte-se da punição e redirecione a sua vida, porque graça é perdão ilimitado, oportunidade e inclusão.

pr. Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

OS PASTORES DE LUCAS



“Ora havia naquela mesma comarca pastores que estavam no campo, guardavam durante as vigílias da noite o seu rebanho.” – Lucas 2.8

(a propósito da meditação que proferi ontem à noite, Igreja Batista em Barão Geraldo, Campinas)

Não é preciso ser meticuloso para descobrir que apenas Lucas teve o cuidado de mencionar os pastores, o rebanho e a noite. Mateus vai pelo viés institucional, pelo caminho de Herodes, o rei, também dos magos que possivelmente faziam parte de alguma nobreza oriental, em razão dos presentes e até mesmo da viagem, e ainda dos príncipes dos sacerdotes e escribas, todos juntos, de uma só vez, num colóquio irônico que vale ser lido mais pela história que pelas virtudes, excluindo os magos, é claro. Marcos, preocupado com a maioridade e ministério de Jesus, sequer fez referência ao seu nascimento. João apresenta Jesus como “logos” e vida, cuja complexidade merece atenção específica, mas que também não é biográfico.

Lucas preocupa-se com aqueles que não têm importância (veja "Espera e Esperança: Lucas 2:22-40", clademilsonpaulino.blogspot.com.br, 18 de dezembro de 2012), e isto inclui os pastores. Diferente de Mateus, sem manjedoura, mas com a estrela, que lembra mais a promessa feita a Abraão de Gênesis 15 do que o próprio nascimento de Jesus, Lucas se dá embevecido na celebração e simplicidade com os seus pastores, pessoas simples e cuidadoras, aos quais é dado o anúncio: “Porque nasceu hoje o nosso Salvador, o Cristo, o Senhor, na cidade de David”. E “cidade de Davi” fica mesmo pro final no texto original, porque era a informação menos importante, comparada ao Salvador, Cristo e Senhor. Tudo isso anunciado pelos anjos, não pelo sistema formal e político, porque a Igreja desde o início não está nas estruturas, mas nas pessoas, não está no comando, mas no povo, literalmente laós (...será para todo o povo”, Lucas 2.10), laicato, gente comum e que carecia de amor e da presença de Deus.

Os pastores de Lucas apontam na direção do nascimento de uma comunidade que deveria marcar a existência humana pelo pastoreio, amor ao próximo, afetividade, respeito à dignidade humana e em favor do perdão e da inclusão. Lucas iria escrever sobre isso, o tempo todo e em todo o tempo. Uma comunidade de amor superlativo, portadora de um incansável compadecimento humano e se desse num mundo em frangalhos, como abrigo e agasalho de pródigos, quando estes retornam para casa, independente do que tenham feito ou abraçado, porque a pessoa será sempre mais importante que seu pecado, e o amor mais abrangente e perdoador, superando de sobra a punição ou exclusão.

Uma comunidade de pastoreio vai além das reuniões de adoração, calendário de atividades e estudos repetitivos de confirmação da fé e que flutuam tão somente no âmbito do discurso; é mais do que um sistema político da comunidade que deseja ser tida como se fosse forma e expressão do Reino. Não é. Se for segregadora, desumana e manipuladora, sequer saberá o sentido de ser Igreja, mesmo que tenha esta palavra como indicação no nome. Uma comunidade pastora não se satisfaz com descortinamento dos detalhes de interpretação textual, mas se dá na simplicidade e nos conflitos da vida, quase impossível de se compreender por aquele que não desenvolveu os instrumentos que facilitam o amor e o amor. Herodes e os freqüentadores do colóquio do poder jamais poderiam compreender o privilégio dado aos pastores na noite mediante a perfeita celebração dos anjos que abriram a cantata do exército celestial que, cercados pela glória do Senhor, fizeram o anúncio do nascimento de Jesus na manjedoura. Cercados mesmo, literalmente colocados num círculo, sem saída, envolvidos pela manifestação não esperada, que nunca tinham almejado, mas se tornaram partícipes da profecia pastoral da presença do menino pastor no mundo. E tinha que ter sido à noite, para que o silêncio realçasse o resplendor e a glorificação fosse purificada pela calmaria.

Lucas ensina desde o início que a motivação do nascimento de Jesus foi o pastoreio. Deste modo, uma comunidade cristã, ou uma Igreja-Pastora, é o socorro, a preocupação com os excluídos, o respeito à dignidade humana e a imensidão de um perdão sem limite. E isso é o Natal.

pr. Natanael Gabriel da Silva

domingo, 23 de dezembro de 2012

E O CEIFEIRO SAIU PARA CEIFAR

  
“E ele lhes disse: Um inimigo é quem fez isso. E os servos lhe disseram: Quereis pois que vamos arrancá-lo? Porém ele lhes disse: Não, para que ao colher o joio não arranqueis também o trigo com ele.” – Mateus 13.29,30 

Daí o ceifeiro saiu a ceifar. Afiou a ferramenta, muniu-se da própria justiça, porque quem ceifa se acha senhor e tutor do ceifado, tem sobre ele o poder de tirá-lo ou não, dar-lhe um dia a mais de vida, ou não, permitir que viva até o tempo determinado, ou não, porque o ceifeiro é dono dos valores, acha-se a si mesmo plenipotenciário a ponto de, ele mesmo, jamais ser ceifado. Dono da vida e morte, tem as chaves do Reino e é capaz de determinar, por observação e vocação, quem pertence ou não aos céus. 

O ceifeiro havia faltado à aula do amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Ficara com preguiça, dormira até mais tarde, ou simplesmente pensava na vida, sem lenço e sem documento, num domingo de quase dezembro, imaginando a coca-cola ou o casamento e jamais iria se lembrar do vós sereis meus discípulos/amigos se vos amardes uns aos outros. Vagamente irá se lembrar, de tanto ser repetido, que há dois mandamentos supremos e significativos que superam qualquer religião, ritual ou moralidade: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. É que o ceifeiro, como todo e qualquer ceifeiro, utiliza duas pontas: para os amigos, amor; para os inimigos, a lei. Nisso se dá bem, porque tem as duas caras da sobrevivência, por um lado convive com toda a maleabilidade com os amigos e, quem o acusará de ser injusto? Aos amigos, perdão. Aos inimigos, justiça. Aos amigos, compreensão. Aos inimigos, separação por conta da pureza e da santidade. Daí o ceifeiro é um politiqueiro, perdoa quem quer, quando interessa, pune quem quer, quando isso lhe dá o prestígio de ser puro e lutar pela santidade do Reino e dos objetivos mais nobres do Evangelho. 

O ceifeiro é um beligerante. Sai a campo, a titulo de defender a sã doutrina, e se dá como um atirador de alvo certo. É um desumano em nome do amor, e um plantador de desavenças. Num dado momento acha que o que falta no mundo mesmo é o amor, porque ele mesmo não sabe onde este se encontra. Belchior, sobre a chegada de Cristovão Colombo à América, diz que ele: “Trazia em vão Cristo no nome, e em nome dele o canhão”. Cristovão, ao contrário, é vão Cristo; beligerante, atirador, portador do canhão que explode todo mundo pra limpar o caminho. É um ceifeiro que saiu para separar uns e outros e que estava cansado quando Jesus lavou os pés dos discípulos.

Uns saem pra semear: e eis que o semeador saiu pra semear. Oferecem a contribuição da vida e esparramam amor como quem joga sementes em todos os lugares, no caminho do vento, sem escolher coração ou solo. Outros assumem a autoridade do domínio da ceifa e saem cortando e arrancando o que encontram pela frente, protegem os amigos, e se dão no campo de batalha do lado errado. Por um lado, têm o poder, capacidade e coragem pra fazer isso. Por outro desconhecem o sentido da palavra amor em relação aos outros, mas também para si mesmos. O ceifeiro é um infeliz que não sabe que amor e Cristo têm o mesmo significado; ao perder-se um, perde-se o outro. E não há experiência subjetiva e mão levantada que resolva isso.

pr. Natanael Gabriel da Silva

sábado, 15 de dezembro de 2012

O "EU SOU" BASTA!


“Porém ele lhes disse: Sou eu, não temais” – João 6.20

 Pra João, o “Eu sou” basta.

Eu sei que o Evangelho de João pode ser considerado o livro dos sinais. Também sei dos longos discursos enigmáticos de Jesus, mas sei também da presença marcante deste neste Evangelho, não como aquele que atendeu os excluídos (Lucas), nem apenas como aquele que reformulou e reescreveu a lei e a história sagrada (Mateus), ou ainda como aquele que se apresentou como um servo obediente (Marcos), mas principalmente, e prioritariamente, em razão do “Eu sou”.

“Eu sou a luz do mundo”, está em João. “Eu sou o bom pastor”, também. “Eu sou a porta das ovelhas”, “eu sou o pão da vida”, “eu sou o pão vivo que desceu do céu”, “eu o sou, eu que falo contigo”, “se não crerdes que Eu Sou, morrereis nos vossos pecados”, “antes que Abraão existisse, Eu Sou”, “eu sou a ressurreição e a vida”, “vós me chamais o Mestre e o Senhor e dizeis bem; porque eu o sou”, “desde já vos digo, antes que aconteça, para que, quando acontecer, creiais que Eu Sou”, “eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”, “eu sou a videira verdadeira”, tudo isso está no Evangelho de João. E quando Jesus recebeu uma identidade imposta, fora do eu sou, foi um desastre: “Os principais sacerdotes diziam a Pilatos: Não escrevas: Rei dos judeus, e sim que ele disse: Sou rei dos judeus”. Daí o “eu sou” foi ironizado, pervertido, transformado na anedota histórica do rei nu morrendo dependurado sob o desejo e ação de seus súditos. Anedota que não teve graça. Só que o “eu sou” continuou sendo, porque tem coisa que faz o ser humano rir, mas o “eu sou” sofrer.

O “eu sou” basta, porque só ele tem a capacidade se dar ao divino a condição do humano, e ao humano a profundidade para se encontrar com o sentido da vida. O “eu sou” é resposta e pergunta, conteúdo sem conteúdo porque não é possível de se saber o tamanho do “eu sou”, tem a divindade no seu mistério profundo, mas tem também a simplicidade de quem se entrega e nos ensina que a vida é possível sob o manto da humildade e do amor. O “eu sou” vem desde o Sinai, na história. Também vem do divino mais divino e se dá como o humano mais humano. Tem a dimensão da criação, mas tem também o caminhar com o que foi criado, no mesmo espaço, tempo e sofrimento.

O “eu sou” basta. Ele diz na madrugada do vento: "não temais".

Pr. Natanael Gabriel da Silva

 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O TEXTO E O AFETO


“As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos; porque as suas misericórdias não têm fim.” – Lamentações 3.22

Tenho uma leitura afetiva deste texto, não apenas compreensão, e sem analisá-lo na estrutura exegética, algo dele já ficou em mim como memória de aproximação, logo no primeiro instante. Isto acontece antes que eu pense nos seus termos, antes de refletir quem consome quem (andei lendo muito o Pierce). Parece que as misericórdias nos livram de nos consumirmos, uns contra os outros, mas isso ainda é secundário. Quando penso nisso, o texto já fez o seu efeito e só posso conversar com ele porque uma virtude dele abriu as portas da comunicação e me tornou como aquele que foi tocado incondicionalmente. Nesse caso, concordo com Tillich.

O texto não é apenas texto e não serve tão somente para a reflexão entre o certo e o errado. Eu sei que é difícil a nossa compreensão a respeito disso e é também nessa mesma direção que o mundo cristão tem dificuldade de compreender o mesmo afeto que os muçulmanos se dão diante de suas Escrituras Sagradas, ou do judaísmo pela Torá. Os que fazem parte do último são colocados pelos cristãos na condição darwinista de subordinação religiosa: evoluímos deles e são, portanto, complementos culturais. Os primeiros são oposição, nossos adversários. Assim apenas o cristão se dá, equivocadamente, o direito de sorver as próprias Escrituras Sagradas com o sabor do sobrenatural, da misericórdia e da benevolência. Outras religiões, não textuais, são místicas demais para o nosso racionalismo, e ficam de fora por conta de ausência de conteúdo que possa ser compreendido por meio de exegese e doutrina. Enfim, somos os únicos e podemos fazer o que bem entendemos: racionalidade a gosto, e fuga dela, também a gosto.

O texto vai além do texto, porque não é apenas texto, se dá como aproximação afetiva e de suporte para valores e sonhos. É significativo demais, porque representa demais. Não pode ser reduzido a um código de regras e normas, do histórico politicamente correto ou da sustentação da estrutura religiosa válida e única como porta de saída, ou entrada, à existência humana. Ele é “o” texto para mim, o que não exclui os outros. Ele fala, comove, faz ver, encoraja, orienta o sentido da vida, faz refletir, chorar, sentir, amar, abre os horizontes da sensibilidade em favor do próximo, faz desejar a justiça, lamentar o descaminho e a desumanidade, abre o túnel da esperança e me ensina a ver os lírios dos campos como exemplo de realeza e simplicidade.

O texto é belo, não por determinar o certo ou o errado; é belo porque vai além dele e dialoga comigo na condição de pessoa, tem som e melodia. E quando leio que as misericórdias do Senhor não têm fim, não entendo direito o que significa, só sei que é mais do diz, embora também não possa dizer o quanto.

Pastor Natanael Gabriel da Silva
 

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

ENTRE A REDENÇÃO E A VINGANÇA


“E naquele tempo se levantará Miguel, o grande príncipe, que se levanta pelos filhos do teu povo, e haverá um tempo de angústia, qual nunca houve, desde que houve nação até àquele tempo; mas naquele tempo livrar-se-á o teu povo, todo aquele que se achar escrito no livro.” Daniel 12.1

A linguagem apocalíptica padece desse drama: você nunca consegue identificar se a promessa é de restauração ou se expectativa de vingança; um pouco de cada, os dois juntos e, em algum momento, um mais que o outro.

Tanto a figura enigmática de Miguel em Daniel, quanto as celestiais do Apocalipse, são discursos de forças que extrapolam a existência humana. Estão além  até mesmo das forças da natureza. A natureza, por si só, já é se impõe sem controle. Imagine algo além. É a cidade eterna, semelhante a Roma, mas muito mais nobre que esta. Se Roma tinha a Via Ápia, as ruas do céu serão de ouro; se em Roma havia o Senado, o céu será guardado por anciãos; se Roma tinha um Imperador, no céu nem se fala. Só que o céu, diferente de Roma, está além da conquista. Os soldados romanos jamais conquistariam o céu, que iria, literalmente, despencar sobre eles. Daí as bem-aventuranças mencionando que o Reino de Deus (ou dos céus) se conquista de outro modo. Nas bem-aventuranças não está presente, nem de longe, qualquer desejo de vingança ou de superação por meio do conflito e da beligerância. Situa-se no campo das promessas.

Agora, quando você se depara com o orgulho cristão que remete, com sabor de vitória, um ateu confesso à perdição eterna, isso não é promessa, mas vingança. Desumano, nojento, impróprio, coisa pequena demais, religiosidade tribal e primitiva. Uma verdadeira expressão de desrespeito e um anticristianismo. Não tem nada a ver com a linguagem apocalíptica, escrito em tempo de perseguição e morte, e que precisa ser lido como um sonho e resposta dos cristãos em razão do sofrimento.

Um viver pela Graça, Graça mesmo, no seu sentido maiúsculo, por outro lado, vê o céu como promessa de redenção, apenas redenção. Não como um lugar de justiça, na perspectiva da vingança, mas do recebimento do amor eterno e da vivência de uma plenitude na presença de Deus. É uma Graça que sofre, e só ela pode compreender o clamor de Jesus diante de Jerusalém: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir teus filhos como a galinha ajunta os do seu próprio ninho debaixo das asas, e vós não o quisestes!” (Lucas 13.34).

Pr. Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

AS TREVAS COMO HABITAÇÃO DE DEUS


 
“Então, disse Salomão: O Senhor tem dito que habitaria nas trevas. E eu tenho edificado uma casa para morada e um lugar para a tua eterna habitação.” 2 Crônicas 6.1,2

Acho que naquele dia Salomão sentiu-se como aquele que estava salvando Deus da imensidão. Um Deus desabrigado, morador no indefinido, carente de aparição e adoração e que precisava encontrar um lugar pra reclinar a cabeça. Se Salomão fosse Deus, teria ficado feliz com a nova casa, cheia de beleza, grandiosidade, gente e rituais; roupas específicas para as solenidades e um lugar pra Salomão mostrar aos povos vizinhos a sua nova propaganda de guerra.

Não sei se Salomão conseguiu tirar Deus das trevas. As trevas são o enigma do que não pode ser visto. Não se pode falar, nas trevas, nem de espaço, porque o seu tamanho é o ocultamento e o ilimitado. Nelas é impossível ver o rosto e ter noção de quem nela se oculta. Mistério Absoluto, como diria Rahner. Não é um mistério que um dia estará disponível para análise e observação. É um Mistério sem solução, sem possibilidade de ser desvendado, compreendido em sua totalidade ou experimentado em toda inteireza. Apenas Mistério, absolutamente mistério, revelado, primeiramente, por um nome. Nome que não foi escrito na antiga cultura judaica; só por meio consoantes que ninguém sabe dizer qual é a pronúncia correta. Um inominável. Nome contrabandeado da cultura grega pelos escritos do Novo Testamento a partir da causa não causada de Aristóteles, do motor imóvel, que pode ser aportuguesado por theós, e daí começou o entrelaçamento da filosofia com a teologia, e também ninguém sabe onde começa uma e termina a outra.

Por tudo isso, e além disso, Salomão decidiu tirar Deus das trevas e fez um lugar que já não existe mais. Daí Deus voltou às trevas, e não há lugar mais próprio, imenso e desconhecido que as trevas do coração humano. Dizer que Deus é trevas e luz, ao mesmo tempo, significa que uma e outra são as mesmas coisas. Deus continua desconhecido no interior do desconhecimento humano sobre si mesmo, e isso é que O torna importante. Ele continua Mistério, no interior do nosso próprio mistério, para nos dar um sentido de vida. Diferente de Salomão quando Deus é salvo das trevas, no nosso coração, é Ele que nos salva do desconhecido. Não precisa ser visto, basta a presença dEle.

Pr. Natanael Gabriel da Silva

domingo, 18 de novembro de 2012

AO MEU AMIGO, COM CARINHO


Pastor Laurencie Salles Coelho,
boletim da Igreja Batista em Barão Geraldo, 18 de Novembro de 2012,
pelo transcurso do 30º. aniversário da minha ordenação pastoral.

 
“Mas em nada considero a vida preciosa para mim mesmo, contanto que eu complete minha carreira e ministério que recebi do Senhor Jesus, para dar testemunho do evangelho da graça de Deus”. (Atos 20.24) 

Como medir o significado de 30 anos de ministério pastoral?! Como expressar em poucas palavras a profundidade de tal vocação? Devo admitir: é praticamente impossível fazer isso e qualquer tentativa nessa direção corre sério risco de cometer tremendas injustiças e ainda de ser superficial. Mesmo sabendo de tudo isso, ousarei, com toda humildade, correr esse risco. 

Não é novidade pra ninguém que nos dias atuais o mundo é marcado por consumismo exacerbado, e até mesmo a igreja foi engolida por uma visão mercadológica, inclusive o ministério pastoral. É por isso que tantos confundem a figura do pastor com a de um empresário, e pretendem, em não poucos casos, analisar a atividade pastoral através de estatísticas e números. Além disso, a linguagem utilizada para pensar na missão do pastor é mais fundamentada na literatura de auto-ajuda, que trata de sucesso, fama, poder, do que nas Escrituras Sagradas que fala de amor e serviço. Nada mais tolo e longe da verdade! 

Como se pode perceber existe tantas vozes, tantas visões sobre ministério pastoral, tantas opiniões e tantos paradigmas que fica difícil discernir o que é verdadeiro. Por isso, estaremos focados no NT. Afinal, ele tem o poder de “desalienar” e firmar os pés no chão. 

Em Atos 20, Paulo está indo em viagem para a cidade de Roma onde vai ser julgado por César e passa por Éfeso. Vive ali um momento de despedidas, lágrimas e saudades e também de orientações e direcionamentos para os anciãos da igreja. E nesse momento tão especial, todo marcado por emoções e sentimentos de comprometimento humano, Paulo explica com muita clareza o sentido da sua vida – servir a Jesus, testemunhando o evangelho da graça de Deus (ver verso 24). Essas palavras de Paulo caem como uma luva no sentido de guiar nossa compreensão da profundidade, da beleza e da complexa tarefa do ministério pastoral. 

Basicamente a missão do pastor é dar testemunho do evangelho da graça de Deus em tudo o que faz. E só pode testemunhar dessa graça quem a vive e a pratica constantemente. Testemunhar do evangelho não é só proclamá-lo através da pregação e da evangelização. De que adiantaria querer dar aos outros, algo que não se tem?! OU, de que adiantaria pregar uma coisa e viver outra? Aliás, falar de Jesus ou sobre Jesus é muito mais fácil, ainda mais nos dias de hoje que ser evangélico está na moda, difícil, contudo, é seguir seus passos, assumir os seus valores, imitar suas atitudes e viver sua graça. Testemunha-se do evangelho da graça por meio dos relacionamentos construídos em profundidade, das orações de intercessão, das conversas de aconselhamento, nas visitas aos hospitais, estando perto de gente sofredora, ajudando a resolver problemas familiares dos outros, pregando, cantando, enfim, servindo com alegria no coração de cooperar com Deus. Tudo isso impulsionado pela bondosa mão divina. Graça do começo ao fim. Graça para começar, andar correr, voar e graça para parar quando for o tempo adequado. 

Por isso proponho que os ministérios pastorais sejam avaliados não pela idolatria dos números, nem mesmo pela linguagem empresarial do sucesso, nem pelas lentes dos paradigmas da auto-ajuda. Mas tão somente pela capacidade de comunicar a graça de Deus, vivendo na simplicidade do Evangelho junto com um monte de gente que também carrega no seu coração o anseio por Deus. Quem teria condições de avaliar essas coisas?! Quem tem os instrumentos certos para medir a intensidade do amor?! Quem consegue contar as lágrimas de um ministro do Senhor?! Quem pode enumerar as noites mal dormidas por conta de preocupação e stress?! Quem pode registrar as palavras de benevolência ditas ao longo de 30 anos?! Quem pode contar os abraços de perdão de perdão e amizade?! Quem pode quantificar os aprendizados no contato intenso com a Palavra de Deus?! Só Jesus mesmo que é o Senhor dos ministérios para entender com propriedade o significado disso tudo e avaliar com justiça e misericórdia o trabalho pastoral, que é absolutamente denso, tenso e intenso. 

Não tenho nenhuma dúvida que a maior tarefa do pastor é comunicar a graça de Deus às pessoas. Só isso e tudo isso. Seja num seminário no Rio de Janeiro, numa universidade em São Paulo ou numa faculdade em Campinas. Seja numa igreja no vale do Ribeira, em Sorocaba ou em Barão Geraldo. Seja numa igreja grande, seja numa igreja pequena. Seja pra muitos, seja para poucos. Não importa o lugar, importa sim, a disposição do coração de servir a Deus e às pessoas graciosamente, custe o que custar. 

Louvamos a Deus por sua vida, amigo Natanael, por sua disponibilidade de comunicar, em tudo que faz, a graça de Deus. A Bíblia diz: “a quem honra, honra” (Rm 13.7), por isso não nos constrangemos por agradecer a Deus por sua história de vida e seus 30 anos de ministério.  Que Deus o abençoe hoje e sempre. Amém. 

Laurencie, seu aluno, irmão e amigo.

Transcrito por Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

A PRIMEIRA MENSAGEM




“Em qualquer casa em que entrardes; dizei primeiro: A paz esteja nesta casa.” Lucas 10.5

Coisa que o cristão ainda não aprendeu: é o portador da mensagem de paz. Só que virou outra coisa, e faz tempo. Não há pregador que não se veja como profeta, e atrás do profeta, a palavra de condenação e direção. Também não há pregador que não se coloque como sacerdote e assim se dá como intermediário. Por um lado, a palavra profética final, pelo outro, a ocupação de uma função onde só cabe um. Daí não há como escapar:  uma única e exclusiva recomendação, por apenas um que pode recomendá-la. Bem, o resultado é o pastoreio profético-sacerdotal, que não é pastoreio, mas apenas uma tentativa de atualização tribal.

Nada disso. A primeira mensagem do pastoreio é a paz. A comunidade cristã só se coloca pastoreando o mundo, quando é capaz de dialogar, disseminar e permear o humano com a paz. Paz que se constrói, porque a expressão, “a paz esteja nesta casa”, é um convite para que o outro seja incluído no pastoreio da paz. Não é uma paz que se dá unilateralmente, como uma imposição, ou você aceita a minha paz ou vamos entrar em conflito; claro que não é isso, mas é o que mais se faz. É uma construção com o outro humano que se propõe a conviver pela paz, para juntos, construírem uma nova paz, que se amplia no processo de inclusão. Uma espécie de contágio: a fileira da paz vai crescendo, porque os incluídos se tornam agentes da paz. Nem quando a paz é rejeitada, esmaece. Não existe paz pela metade, nem mesmo quando o pacificador anuncia o "a paz esteja nesta casa" e esta é desprezada. O pacificador a recolhe, a abraça e sai à procura dos que almejam e desejam viver em paz, pois a paz não consegue vencer aquele que não a prefere, pois pra vencer, se tornaria em princípio de guerra, o que é uma negação de si mesma. A confiança da paz é que sempre haverá alguém com o desejo de recebê-la para trilhar um novo sentido de vida. E ela está certa. 

A primeira mensagem, a mais importante, e a que faz mais sentido no pastoreamento do humano: “A paz esteja nesta casa”. 

pr. Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

BEM-AVENTURADOS OS PACIFICADORES


“Bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus.” – Mateus 5.9

Talvez a paz seja um sonho agudo do cristianismo. Quem for pobre de espírito, herdará o reino do céu (Mateus 5.3), que é ótimo. Quem chorar receberá o pastoreio do Senhor (Mateus 5.4), que já não é uma promessa de “lugar” (Reino), mas de profundidade da alma, e isto é inigualável. Quem for humilde, herdará a terra (Mateus 5.5), coisa que, pelo esforço e sonho, todo o judeu sabia o que significava peregrinar em busca da Terra Santa, e herdar a terra é um enorme presente. Quem tiver fome e sede de justiça, será saciado/a (Mateus 5.6), e nunca mais ter fome e sede até parece um sonho, especialmente quando a miséria se torna o problema da existência. Quem for misericordioso, encontrará a misericórdia para si (Mateus 5.7), que é o retorno de quem se compadeceu a miséria do outro. Quem for limpo de coração, vai ver a Deus (Mateus 5.8), uma experiência única, como se fosse possível ser um Isaías do capítulo 6. Agora, só o pacificador, se torna filho de Deus.

Tornar-se filho de Deus é ter a natureza de Deus, como se fosse um código de filiação que passa de pai para filho, na condição de marca ou traço. Não é algo que se possa ter o controle, não é um lugar que se herda, ou um Reino onde se habita. Também não é ver a Deus, ou ter os dramas da vida equacionados por Ele. Tudo isso é indizível, não tem tamanho, não pode ser medido, nem mesmo pensado. Contudo, ter a natureza de Deus, como se fosse uma marca biológica que se faz presente e influencia as gerações seguintes da própria vida, esta condição, é dada apenas ao pacificador, porque Deus, é  Deus de paz.

Não tome, portanto, como exemplo de fé e determinação, a luta história de Israel e sua conquista da terra, quanto tanta gente morreu, incluindo mulheres e crianças, e basta ler os primeiros capítulos do livro de Josué para conhecer, ou revisitar, a história. Aquela foi uma religião que não deu certo. Nada de beligerância, nem conflito, nem guerra. Paz, somente paz. Nada de utilizar o discurso profético como recurso de discórdia e imposição da própria vontade. Não. Nem tomar como regra o inconformismo de Jesus no Templo diante dos cambistas. Nada disso. Tome a cruz, e siga Jesus. Tome o deixo-vos a paz a minha paz vos dou. Ou o vós sereis os meus discipulos, e todos verão isso, se vos amardes uns aos outros. Ainda a crucificação, quando Jesus, sem qualquer sentimento de vingança, disse ao Pai: Pai perdoa-lhes porque eles não sabem o que fazem. O cristianismo é, antes de tudo vivência de paz, fraternidade, inclusão, sem qualquer sombra de desumanidade ou preconceito.

É difícil? Claro que é difícil! Ser pacificador é muito difícil. É mais fácil agredir, se impor, defender o espaço, e dar-se como vencedor naquilo que julgou ter sido uma batalha. Isso é tão fácil que não há necessidade nem de esforço, basta o ímpeto e o agir espontâneo. Agora, se você conseguir ser um pacificador, e isto significa o esforço para ser diferente e conter a desumanidade que o ser humano possui no coração, terá o rosto de Deus (Gênesis 33.10) e será a própria herança do Senhor, um filho.

Pr. Natanael Gabriel da Silva