segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O MILAGRE VISTO PELO LADO DE DENTRO

“Disse o Senhor a Moisés: Porque clamas a mim? Dize ao povo de Israel que marchem.” – Êxodo 14.15

Apenas para se ter uma idéia: a travessia do Mar Vermelho para o antigo Israel é semelhante à ressurreição de Jesus aos cristãos. Na travessia, o Mar era uma barreira que impedia o retorno, só dava pra ir em frente. É como o tempo, não dá pra voltar. 

O texto é rico em imagens da tragédia. Milagre de salvamento e morte, paredes de águas e a promessa de que haveria um outro lado. Lado da frente, não lado do lado, porque o futuro se abria no comando do cajado, tocando a água e a cortando como se fosse queijo, macia, consistente-mole e era só caminhar pra outra margem. Esta também era misteriosa, pouco ou nada se sabia dela, mas jornada é jornada, a gente começa e vai sem saber. A expressão “Porque clamas a mim?” pode parecer uma cobrança, inquietação e até mesmo dura repreensão, mas pode ser também uma presença, não precisa clamar que Eu estou aqui, onde sempre estive e estarei. Pode ser um “Vou com vocês, como sempre, e a travessia do Mar, de certo modo, será minha também. Moisés! Coloque o povo pra caminhar que eu vou junto!” Acho que foi isso. Oração diferente. Uma oração que não precisava de oração, um estar desde sempre e um vamos atravessar juntos como declaração de pastoreio e presença. 

O marchar era para o outro lado e também para o depois, caminhar por sobre e dentro do milagre. O mar abriu e o povo passou por dentro dele, todo mundo caminhando pelo meio do milagre. Milagre grande é assim, faz a gente ficar dentro dele, imerso, por dentro e para frente. Pra você e para mim que estamos acostumados com o milagre no coração,subjetivo, que já é imenso, não entendemos o milagre acontecendo pelos lados, nas muralhas de águas, por debaixo, nos pés secos e por cima, na brisa que sustenta o milagre e a gente passando por dentro dele como se fosse um túnel.  E vamos, que vamos, vocês comigo e Eu com vocês! 

Acho que não tem jeito da gente caminhar pro futuro sem andar no milagre como se fosse túnel. Quando o deserto chegar, e vai chegar, a gente vê o que Deus vai fazer, se vai mandar ou não chuva de pão ou de carne, se vai haver oásis ou coisa parecida. Tudo isso, separado ou somado, é o de menos. Deus cuida. Importa hoje botar o pé no túnel e marchar. Vai ter sempre um cajado abrindo caminho, vento misterioso aparecendo de uma hora para outra, e você caminhando dentro do milagre protegido/a e amado/a, sem entender e também sem esperar. Milagre repentino, inusitado, nunca antes havido, feito portal para o futuro e o novo tempo à espera, do outro lado. 

Feliz 2015.
Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

A REINVENÇÃO DO AMOR



“Para alumiar aos que estão assentados em trevas e sombra de morte; a fim de dirigir os nossos pés pelo caminho da paz.” – Lucas 1.79

É, eu sei que as regras e sistemas de fé não deram conta de explicar, mesmo que fosse um pouco, o amor do Cristo. Desde que o cristianismo se deu por instituição e precisou definir impropriamente a expressão de João de que Deus é amor, o conceito tomou o lugar da vida. O amor virou coisa e não foi mais possível encontrá-lo. Ficou meio perdido entre a aceitação de uma doutrina, talvez um pouco mais perto do encantamento das celebrações, quando não se sabe se o amor aparece em favor do adorado ou do adorador, pois na projeção do eu profundo em busca do êxtase, o fiel se solta na adoração e amor a si mesmo, sem se dar conta disso. É por esta razão que cultuar/celebrar tem uma natureza terapêutica. Deste modo a morte vicária do Cordeiro Pascal acaba por se perder, sempre e incansavelmente interpretada, quase no esgotamento da compreensão, a partir das tradições do sacrifício judaico. Assim se reduz, ou quase, a um ritual como o dos tempos antigos. O amor? Esquecido, é claro! Fica novamente à espera de ser reencontrado.

Daí a importância do Natal. Recupero a sábia recomendação do autor de Eclesiastes: lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade. Isto porque a vida com Deus não é uma fotografia, um instante paralisado na experiência com o sagrado, mas um prolongamento no tempo; é um deslocando, uma jornada, uma condição de presença e peregrinação. Jesus reinventou o amor. Fez dele uma caminhada, o colocou diante da vida e suas contradições. Não é possível entender o sacrifício de Jesus sem o Sermão do Monte, nem ver nos milagres apenas expressões doutrinárias que expliquem uma determinada hermenêutica de fé. Jesus foi o amor caminhante. Amor que ensinou com amor como se deve amar. Depois foi mostrando como é que se recupera um cego pelo caminho, a forma de como se abraça uma criança e, na beleza do encantamento, diz a afirmação que ninguém no mundo consegue explicar: dá o Reino dos Céus aos pequeninos. Estes superam as confissões, não são oficiais de religião, não têm nada a oferecer para quem quer que seja, nem sabem o que seria Lei e doutrinas, histórias e sagas; e as comunidades de fé ficam tentando fixar a chamada idade da inocência para estabelecer o limite do perdão: perdem o conteúdo logo na saída - não é possível dar sentido ao que não tem sentido. Isto é o mesmo que esquecer o amor, ou nunca tê-lo na memória. Memória mesmo, não conceito, mas como história de vida, no inconceitual do que seja estar e ser.

Saiu Jesus amando. Foi entrando e andando pelas ruas a procura de pessoas para serem amadas. Eram os sem destinos, os alijados, excluídos e endemoninhados, marca maior da ausência de amor, como se os tais estivessem na fronteira do esquecimento. Gente que vivia em caverna, na completa falta de solução e cidadania. Adúlteros e cobradores de impostos corruptos, aos quais, na nossa visão, só caberia condenação e pena. Jesus os recupera. Você vai achar que foi por conta de seu poder divino em mudar a história e mostrar-se como perfeitamente Deus fazendo milagres, eu vou preferir como sendo a expressão do amor em movimento, afinal Deus é amor. Talvez eu esteja errado.

Contudo, ou sem tudo, o Natal é para mim a reinvenção do amor. É a história do filho de um carpinteiro e de uma mulher conhecida apenas como Maria. Nasceu na esquecida e pobre Palestina; nela numa vila, e na vila, numa estrebaria. Depois passou a vida se dando em amor, a ponto de escrevê-lo com outra tonalidade e arranjo. Tão exagerado que só foi possível referir-se a ele por meio de parábolas, pois estas são superação de sentido; ou por curas, que nada mais são que inexplicáveis transbordamento de vida. Até quando reescreveu a Lei, principiou pelo exagero da extrema felicidade dos chamados bem-aventurados.

E foi assim que o amor se tornou, ao mesmo tempo, superlativo e pessoa. Depois ressuscitou, para ser eterno.

Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

O AMOR - ÚNICA ESPERANÇA




“Em por se multiplicar a iniquidade, o amor de muitos esfriará” – Mateus 24.13

O mal odeia o amor. Seu alvo não é gerar a descrença, porque até mesmo a fé pode ser sua parceira e se dar por potencializada, a ponto de produzir a morte, seja em nome de uma verdade, seja em um movimento.

Claro está, no discurso de Jesus, que a fé não poderá alterar o rumo das coisas, nem impedir a fatalidade para onde a vida caminha. Vocês não irão precisar de fé para, milagrosamente, impedir o mal ou mudar o rumo da história. Vão precisar de amor, pois só ele é capaz de suportar o insuportável, cansa o sofrimento de tanto fazer sofrer, e se doa no limite do que possa ser doado, pois o seu dom maior não é receber ou mudar a ordem das coisas, mas apenas se dar. O mal não suporta a paciência do amor, sua esperança e insistência.

Daí a conversa entre Jesus e seus discípulos que começara com a pergunta sobre o quando do destino do espaço sagrado, consubstanciado no templo, ao redor do qual o simbólico religioso havia se dado, tanto judaico, como cristão: - Dize-nos quando serão estas coisas e que sinal haverá da tua vinda e do fim do mundo? – questionaram os discípulos a partir da afirmação de que do templo não ficaria pedra sobre pedra, como afirmara Jesus. Vai haver muita coisa, este respondeu, e começou pelas guerras, povos inteiros se digladiando num inexplicável ódio, que nenhuma motivação explica, e por conta disso e também em razão da desumanidade generalizada, onde se perderá a importância do outro e da vida, virão então fome e miséria, parceiras da destruição e da exclusão. Até a natureza mostrará o seu descontentamento com isso, e a instabilidade será cósmica. Nem vocês escaparão, dizia Jesus, serão simplesmente atormentados (e não há expressão mais radical do que esta como superlativo de injustiça e sofrimento), morrerão ou se tornarão excluídos, e nessa situação toda, não haverá resistência, desaparecerá a fraternidade e emergirá o conflito, com direito a falsos profetas, que serão porta-vozes dos falsos cristos; mas o pior de tudo é que o mal fará sucumbir o amor, e quando o amor se esconde, não há mais nada para ser feito, apenas o fim (Mateus 24.4-13).


Não vai ficar nada, nem o templo, que também será vítima do ódio, nem ninguém, porque a doença matará o doente para morrer com ele. E tudo começará (será futuro mesmo?) com a elevação do cristo, que não é o Cristo (24.4); e um cristo para não ser Cristo, só se for vazio de amor, pois não consigo entender a cruz por outro caminho. Nela, na cruz, o profundo humano se entregou à corrupção da degenerescência e o mal se fez superlativo, para que fosse identificado, vencido e superado pela perfeita e completa ressurreição. Só que o mal retorna no cristo que não é o Cristo, e não haverá fé suficiente para estabelecer o limite ou a compreensão entre um e outro, isto é, o verdadeiro e o falso se identificarão pela proximidade, e não haverá legitimidade no discurso religioso capaz de levantar a voz profética contra a malignidade emergente. Assim o mal se lançará, a provocar a decadência. A desumanidade irá aflorar, o amor se recolherá e se esconderá para, finalmente, se dar por ineficaz. 
 


Por quê? Porque o que chamamos de mundo, o que nos inclui, precisa de amor. O amor resiste ao mal porque é a dádiva que faz do humano, humano. Foi assim com a cruz.

Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 25 de novembro de 2014

ANTES DO MAL




Perece o justo, e não há quem se impressione com isso; e os homens piedosos são arrebatados sem que alguém considere nesse fato; pois o justo é levado antes que venha o mal, e entra na paz; descansam no seu leito os que andam em retidão. – Isaías 57.1,2

A fé é uma questão existencial. Explica-se pela vida, não por suas possibilidades ou contradições. Conforme Isaías, o mal deixa de ser mal, não porque é modificado, mas diante da situação de não ser possível vencê-lo, é esvaziado pela morte. O mal se perde na condição de não ter o que fazer e ofender. Perde a sua força e eficácia, torna-se inútil; assim a proteção do divino não é necessariamente a reversão do mal em bem, (o que naturalmente o crer da existência preferiria), mas o cuidado do justo, para que este tenha uma condição de pertença plena à felicidade. Morre o justo antes do mal para que o descanso seja absoluto e completo.

Daí a percepção de Isaías e o perguntar pelo sentido da morte do justo. Qualquer pessoa (do que faço parte) problematizaria afirmando que há uma incompatibilidade de justiça: ou o justo não era justo, ou a justiça de Deus não é justa. Faço isso todos os dias diante do mal que aflige a vida, por conta de coisas que sequer podem ser controladas, experimentadas: Não haveria outro modo? As coisas não deveriam ser diferentes? O peso da luta da vida não deveria arrefecer diante da trajetória interrompida pela tragédia? Pergunto isso porque não sou Isaías. Ele preserva tanto o justo, como a justiça do divino; eleva a possibilidade do crer superando a contradição: o perder a vida para que o descanso seja completo, uma ação que, certamente poderia não ter a aprovação do vitimado, mas que o coloca diante de um cuidado que o preserva do futuro.

Antes do mal, a despedida. Incompreensível despedida, inexplicável, inconcebível, inesgotável nos questionamentos sem possibilidade de respostas. Segue-se o exagero da fé, do crer no que não pode ser digno de crédito, de transitar pelas possibilidades sem qualquer grau de razoabilidade, pelo que não pode ser resolvido porque o fora antes, antecipado e confiado por depósito futuro. Exagero que só a metáfora da morte pode abarcar e ensinar o que deveria ser aprendido: o mal ainda está por vir, e perguntar pela morte não tem a ver com o destino do recolhido, mas sim com a vida que precisa ser reinventada. Ao perguntar pelo vitimado, o coloco diante do sagrado como se eu não fizesse parte de sua tragédia. Isto é, neste caso, a fé passa a ser uma questão substancial entre o justo e o Santo, e ao mesmo tempo me afasta da condição de agente preservador do mal, este como cultura e modo de vida.

Ora, assim não me dou como agente do mal e então fico a elaborar sobre o incompreensível, escondido e desconhecido; incompreensível justiça que não preserva o justo tirando-lhe a vida; incompreensível antecipação rigorosa da despedida e dor. Caminho pelos meandros da impossibilidade de resposta, sem qualquer objetividade ou fundamento que explique, ainda que precariamente, algum caminho. Deixo de ver o mal como aquele que também provoco, perco a sua dimensão cultural e social; fico tão somente indagando sobre a vítima e o Santo que o deveria ter preservado. Duvido de um e de outro, nunca de mim.

Isaías diz que o mal não está na despedida do justo. Está na desistência de se lutar contra a maldade coletivamente instalada. A resposta, à pergunta que não foi feita, deveria ser uma confissão: Há tanta injustiça operada por minhas mãos, tanta miséria, descaminho e falta de esperança, que aprove ao Senhor dar descanso a um justo que não poderia conviver com a minha maldade. Assim, o problema não é de Deus, nem do justo que se foi, mas meu e da sociedade que ajudei a construir sob o domínio da injustiça, opressão e transgressão; das quais sou causa e agente.

Aqui nasce o sentido de ser sal da terra e luz do mundo.

Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 4 de novembro de 2014

PARA ALÉM DO VÉU




“Nós não fazemos como Moisés, que cobria o rosto com um véu para que os israelitas não pudessem ver que o seu brilho estava desaparecendo.” 2 Coríntios 3.13

Vou tomar o texto como metáfora. Seria por demais interessante se, assumido literalmente, tivesse Paulo entendido que Moisés manipulara a religião. Uma religião manipuladora e que esconde o divino, não é apenas um desvio interpretativo, mas uma fatalidade, pois com isso o ser humano perde  a única possibilidade que tem para encontrar-se com o Sagrado.

Acho que a religião deveria ser eternamente grata às metáforas, pois estas podem ser tanto fuga, como superação de sentido. Serve dos dois modos: para dizer que o dito, não é o que foi dito, ou, para reafirmar que o sentido do dito é mais profundo que o próprio dito. Então, como conservador, vou tomar o texto como metáfora, salvar o texto e compreender que Moisés aqui significa a totalidade da religião pervertida; entender que, quem escondera o desaparecimento do primeiro brilho, fora a religião institucionalizada. Uma metáfora que, diga-se de passagem, fora pensada a partir do evento do Horebe, quando Moisés descera transfigurado do monte em razão do encontro com o divino. Brilho que durou pouco, e quando veio o Templo e sua religião formal, Paulo juntou os dois e somou o brilho de Moisés com o véu do Templo, o que acabou por resultar no ocultamento do mistério e da beleza do primeiro evento.

Daí concordo com Vattimo: a Igreja (não a que caminhava com Jesus, como a comunidade do Sermão do Monte, mas uma outra que não se sabe nem de onde veio) estragou o cristianismo. Então, se faço parte dela, eu estraguei o cristianismo. O transformei em atos de celebração e culto, e me esqueci da vida. Entrei pelas portas de um espaço dito como sagrado e disse que Deus estava ali, que o mundo estava do lado de fora, que Deus precisava de mim para que eu cantasse e falasse  o tempo todo, seguindo uma liturgia como sagrada, em sua sequência, disposição e construção; transformei a oração, que deveria ser vida e convivência com a pessoalidade de Deus, num produto de consumo. Fiz da igreja, que não era igreja, uma empresa para angariar fundos e enriquecer líderes e quando os pregadores midiáticos apareceram, achei que eu não era responsável por eles, o que não é verdade. Esqueci-me de Jesus. Então o véu foi engrossando, deu-se quase como impermeável e Jesus acabou mesmo do lado de fora; o Jesus pobre, da Palestina, que incluía prostitutas no Reino, conversava com gente da pior espécie, e, enquanto estavam os adoradores a desfrutar das festas nacionais, como num dia de páscoa, eu fui pro Templo e me esqueci do Jesus que fora visitar os miseráveis do poço, a curar doentes e cuidar de pobres que nunca, jamais, poderiam dar qualquer retorno. Depois criei igrejas, que não eram igrejas, aos montes. De todos os modos e nomes. Inventei assim, um cristianismo, que nunca foi cristianismo, virou um sistema de poder abstrato, que ninguém sabe onde está, e quem responde, não responde, porque depois deixa de estar lá e fica pra outro assumir, como se fosse um bem público.

Transformei a igreja num inventário de declarações. Não há de ver que eu me esqueci da polifonia do discurso religioso! Que ingenuidade! Como não sou Bach, as muitas vozes ficaram como melodias isoladas e foi aí que eu optei por juntar as ideias num único lugar, composto pela expressão democrática da coletividade, e surgiu então o que seria tecnicamente chamado de Declaração de Fé, como se a fé não fosse declarada por meio da vida. Fé conceitual: ninguém merece. Ficou Declaração de Fé mesmo, coisa que ninguém sabe o que é, nem para que serve, pois a polifonia hermenêutica não se curva à imposição forçada de controle das ideias, nem mesmo pelo coletivo, e foi assim que virou documento, só documento. É que eu precisava disso pra justificar o fato de achar que todas as demais expressões religiosas estavam erradas, que eu tinha uma identidade própria, histórica, e teve um momento que eu achei ter vindo e nascido de João Batista, o que me tornava anterior a Jesus, ou ainda,  mais cristão do que o próprio Cristo (?). Se for assim, tenho então a primazia em dizer o que é certo ou errado a todos os outros. Ora, se a hermenêutica é polifônica, achei que poderia cantar sozinho todas as vozes, e, se ninguém compreende o texto como eu, sinto muito, sou o único a estar certo, e se você desejar estar certo também, será melhor submeter-se a mim.

Daí vem a questão: afinal, o que fiz do Cristo e sua mensagem de Graça a restaurar a dignidade humana? Onde está o Cristo da profundidade da alma? O Cristo da esperança, do perdão e da misericórdia? O Cristo do silêncio, da solitude, da inclusão e da solidariedade?

Não sei se sei. Talvez para além do véu.

Natanael Gabriel da Silva

sábado, 18 de outubro de 2014

JESUS E OS VISITANTES




“Vendo Jesus as multidões, subiu ao monte, e como se assentasse, aproximaram-se os seus discípulos; e ele passou a ensiná-los, dizendo:” Mateus 5.1,2

É, você está certo: é a abertura do Sermão do Monte.

Daí um amigo meu passou seis meses, dominicalmente, frequentando a mesma comunidade. Com a polida educação, só reservada como formalidade política, era apresentado como visitante em todas as reuniões, fosse pela manhã, fosse à noite, encontros semanais, e por aí se vai. Um visitante é um excluído, e é aqui que começamos a conversar.

Talvez você tivesse que frequentar uma comunidade batista, não todas, para ter a doce experiência de se levantar ante os olhares de quem nunca o/a viu, dizer o nome, nem sempre compreendido por quem lhe pergunta, mencionar de onde veio, para onde vai, numa síndrome agariana, e também desértica, no ato solitário de falar de si mesmo, pra entender o drama do anonimato rompido. Disso, a mensagem comunicada pela educação parlamentar é a de que você, definitivamente, só está ali, sem pertencimento.

A boa notícia é que Jesus nunca apresentou os visitantes. Nunca disse que este ou aquele fazia parte do número impreciso e indefinido de discípulos. Até dos apóstolos já se falou muito, se não seriam apenas o imaginário das doze tribos sendo restaurado. Doze que viraram treze, depois catorze, cujas listagens são diferentes e haja esforço exegético pra dizer que tal nome significa este nome, e fazer da subtração, soma. Só que isso não é difícil, pois quando se quer, qualquer conta dá certo. Vale até juntar Daniel com Mateus e Apocalipse, para então se tentar fazer o traçado, ainda que mal feito e inexplicável, do chamado final dos tempos.

Então, dizia antes do devaneio, Jesus nunca apresentou os visitantes. E tem gente que vai reafirmar, por questão até numérica, que o Sermão do Monte não era para todos, e Jesus nunca conseguiria falar a uma multidão sem que o som se perdesse. É claro que vai se esquecer de que o texto é sobre religião, e quando se trata de religião meu amigo, minha amiga, não há traçado ou limite, nem (ou muito menos) no texto, porque é a redação do exagero, do superlativo, do indescritível, metáforas e sonhos. Então Jesus, olhou pra multidão, incluiu a todos e todas, e discursou sobre a felicidade suprema. Falou da humildade, lágrimas, mansidão, dos vitimados/as pela injustiça, fome, da misericórdia, exatamente a quem deveria ser alvo dela, da pureza profunda das intenções, lá onde a alma é regida e nasce a existência humana, de quem anseia pela paz, perseguição, e foi por este caminho, incluindo a todos e todas como pertencidos/as, como parte, ouvintes e cristianizados/as pelo discurso, não pelos rituais. Falou aos pertencidos e agregados pelo discurso, não mencionou salvação no sentido metafísico e eterno, porque não havia ainda o que falar sobre isso, e fez o traçado da sabedoria da vida como quem coloca com a mão uma única semente exatamente onde deveria ser plantada. A comunidade de Jesus era o mundo.

O meu amigo? A exclusão, o excluiu.

Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O INÍCIO DA CIDADANIA



“O meu mandamento é este: Que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a sua vida pelos amigos.” – João 15.12,13

Daí o clericalismo tomou a recomendação, a transformou numa verdade eclesiástica e a circunscreveu numa doutrina. Deste modo o texto foi marcado pela fatalidade, e nunca mais foi possível compreender o seu tamanho. Ficou curto, doméstico demais, enclausurado na discussão de sua dimensão. Amar até quando? Até onde? Em que sentido? E em razão de quê?

Não, o texto não é doméstico. É aberto para o mundo, o que inclui todos. Também se trata de um mandamento que manda amar, como um absurdo, pois nenhum amor pode surgir por meio de qualquer ordem determinante. Só que mandamento aqui tem outro sentido. É sem lei, sem comando, determinação ou imposição; é mandamento como princípio natural de relação, um liame, fluxo aberto entre a videira e os ramos, seiva corrente e ininterrupta, essência de pertencimento e inclusão, virtude emanada e inconsciente e que vem pelas veias da vida.  Daí o mandamento, que não é mandamento, se torna consciente e voluntário, porque não suprime a decisão; se dá como vocação e provocação de tudo o que pode ser mais importante e objeto principal do ser pessoa, o simplesmente amar, sempre amar, até onde o mundo alcança, na direção do outro, que simplesmente pode ser chamado de amigo, isto é, tornado amigo por opção, e ainda, amar em razão de ser este o único caminho para a fraternidade e cidadania. Não é a comunidade, reduzida à igreja, se amando, como se os doze indicassem estrutura eclesiástica. Os doze são expressão de um novo tempo para o mundo. Mundo esse dado neles como potência e ato, ou, ato e potência. Assim é inaugurado o que poderia ser chamado de tempo de amar. Todo o amor que a vivência fraterna precisaria, do qual a igreja nunca se aproximou, nem para si, porque se tornou em gueto de discurso de amor, que depois foi reduzido em encontros de celebração, antes passando pela diminuição da sistematização, na busca do sentido do que seria este amor, e como toda sistematização parcial, concluiu que este amor, primeiramente, não pode ser amplo demais pra incluir todo o mundo, e tem que começar exclusivamente pela comunidade de fé. Agora, como a comunidade de fé nunca conseguiu a vivência plena deste amor, morreu então o amor entre as paredes dos templos, metamorfoseado em discurso de salvação e espera do céu, maquiado no ensino e pregação, promessa, sonho, conceito, até ser violentamente reduzido a uma área de conhecimento, na qual basta identificar que há o amor ágape, o fraterno, o erótico, que cada um significa uma coisa, como se tudo não fizesse parte do humano, e vamos conhecer a trilogia do amor, métodos de apresentação, formas, mas principalmente os limites: o amor vai até aqui. E a exegese se esbaldou, e se você não sabe grego, não pode saber nada sobre o amor, sinto muito. Então o amor adoeceu no limite do conceituado e do entendimento, deixou de ser sabedoria e se transformou em coisa; virou lei e deixou de ser virtude.

Então o mandamento, que vos ameis uns aos outros, é uma mensagem para o mundo, e o lavrador é o Pai. O ramo ligado à fonte do amor dá frutos de amor, muitos frutos, em pencas, pendem os galhos a ponto de fazê-los alcançar o chão. E se você me perguntar onde está a acefalia do mundo, que decepa ao vivo inocentes em nome da justiça, como um teatro da desumanidade sem limite, sob o discurso da legitimidade da violência do sagrado, eu diria que o mundo, hoje e sempre, é um deserto do amai-vos uns aos outros. E é aqui que começa o que podemos chamar de cidadania: a vida dada na vida do próximo.

Natanael Gabriel da Silva