sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

EXCLUSIVIDADE

" O Senhor é meu pastor e nada me faltará.” – Salmo 23.1

Já me desentendi com Davi por causa desse Salmo. Um dia meus alunos me perguntaram a razão. Respondi que o tom beligerante do texto não me agradava muito. Eu sei que os tempos eram outros, mas esse negócio de fazer o inimigo ficar olhando o rei se empanturrar de comida, me faz lembrar a recente ditadura militar no Brasil: gente sendo torturada e prisioneiras nuas limpando o chão do quartel, olhadas por um bando de marmanjos. Davi à mesa torturando famintos é um quadro pra lá de desumano, é ou não é?

Pois bem, pra quem ficou com a sensação fiat, “fui iludido agora à tarde”, qualquer cheiro de opressão ou prepotência dá nos meus ossos, coração e emoção, e nesta história até Davi acabou entrando. Sei também que Davi precisava deste vínculo direto com Deus, “meu pastor”, porque assim exercia o reinado, com direito de vida e morte sobre os súditos. Era a religião que o legitimava.

De qualquer modo, resolvi fazer as pazes com o Davi do Salmo 23. Ainda continuo meio desconfiado da desumanidade do texto, mas acho que tem hora que o Senhor tem que ser meu pastor mesmo, e só meu, por conta da minha necessidade profunda, pessoal e única de ser pastoreado.

Não tenho o direito de fazer isto, mas vou transformar Davi num texto existencial do século XXI e centrar em mim a dádiva de ser único. Tem hora que a gente precisa se sentir exclusivo de Deus. Humano demais, ou humano, demasiadamente humano, como diria Nietzsche. Não dá pra olhar o outro, pois não se enxerga mais ninguém. Dor funda que não cabe mais nada no pensamento, seja pessoa, seja coisa.  Cabe só a gente mesmo e o sofrimento. Sofrimento espaçoso esse e que aperta a gente num canto chorado;  eu e a minha incompreensível carência de pensar uma coisa só, o dia todo, toda hora, de tal modo que apenas um pastoreio exclusivo pode dar conta de me encontrar. Nessas horas a gente não quer dividir Deus com ninguém. Não quer escutar de ninguém, ou compartilhar, apenas solidão e profundidade, um navegar para dentro cheio de quedas d´água, cachoeiras e pedras donde não dá mais pra voltar. Sozinho não dá mesmo. Só o milagre pra me trazer de volta, e é aí que entra a exclusividade do pastor. Um pastor só para mim, um Senhor único que me compreende, escuta e observa; às vezes um olhar meio de canto, um sorriso de quem interpreta uma criança e o pastoreio cai redondo e agasalha como luva. O Senhor é meu, e só meu. Preciso dele como se fosse só meu, pra me resgatar, encorajar e me trazer de volta à vida. Ele chega ao fundo, e não dá nem pra entender como foi que me encontrou lá dentro de mim, até porque às vezes nem sei porque caí, e então começo a retornar pelas encostas e Ele vai achando as trilhas que eu sabia não existir. Vão surgindo caminhos com direito a descanso e pradarias verdes. Os vales se abrem, mas não sob a visão de quem antes esteve caindo. Na queda o vale é tenebroso e imenso. Ao subir, o vale fica todo verde, bonito que só.

Egocêntrico demais, eu sei. Só que Davi foi quem abriu a porta, não eu. Tomou Deus só pra si, encontrou-se num vale deitado em verdes pastos sem mais ninguém, chegou às águas tranquilas e sorveu dEle para refrigerar a alma. Depois saiu protegido pelo meio da morte. Não quer dizer que o Senhor só tinha Davi para cuidar. Quer dizer apenas que um dia, numa situação que não sabemos e por motivos que não entendemos, Davi precisava do Senhor só para ele. Exclusividade! E foi exatamente assim que aconteceu.

Pr. Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

TRÊS DIAS

“E esteve três dias sem ver, e não comeu nem bebeu.” – Atos 9.9

Três dias de angústia, na solidão e voltado apenas para de si mesmo, refletindo e tentando compreender o que acontecera. A experiência de Paulo foi tão marcante, que precisava também passar pelos próprios três dias, como Jonas. Este, depois de ter visto a morte, precisou ficar engolido e só, quieto, pensando, conversando consigo mesmo e com Deus. Pra Jonas, aparentemente, três dias inúteis. Mas se Jonas foi vomitado, Paulo fez o contrário e jogou fora sob o efeito de espasmos, a sujeira que estava dentro de si.

Três dias. Se alguém lhe dissesse que você iria passar uma experiência religiosa e que ficaria três dias em estado de morte, consumindo a culpa, questionando o futuro, sem chão, apagando tudo pra reescrever a vida, teria coragem de enfrentá-la? Creio que não, porque somos tão apadrinhados pelo prazer que uma experiência de fé precisa, necessariamente, fazer bem. Tem que dar prazer. É complicado pensar em Isaías 6 e  o profeta saindo do templo pesaroso e olhando pro chão, inquieto. Pensar que Abraão ofereceu o filho em sacrifício sorrindo! Que ele obedeceu, isso sim, mas se alegrou? “Oba! Hoje vou oferecer o meu filho em sacrifício, que jóia!” Claro que não. A cada passo, o trágico se aproximava, e Abraão obedeceu porque não era pós-moderno, nem precisava de uma religião que desse algum tipo de compensação: só a presença de Deus.

Paulo também não ficou sorrindo. Ficou pensando. Três dias para visitar a alma. Temporariamente cego para não ver nada, porque não precisava olhar pra fora, mas pra dentro. Depois virou tradição, e a gente ora e pra olhar pra dentro, fecha os olhos, mas isso já é cópia e ritual. Paulo não teve opção e ficou três dias convivendo com o silêncio de Deus. Depois de uma experiência incompreensível, com direito a voz e luz, tudo quieto. Será que não teve gente morrendo naqueles três dias sem receber a mensagem cristã? Claro que teve, mas era o tempo do recolhimento, do pensar o pensado e voltar a pensar outra vez, como aquela dor que retorna sem controle e que você quer esquecer, mas não consegue. Volta, entra, invade a cabeça, martela, judia e pergunta: E daí, o que você pretende fazer comigo? Aí quando você vai pegar o pensamento de jeito, acorda; desperta com o coração acelerado e o pensamento foi embora sem escutar a sua resposta. Não dá nem pra provar que era exagero dele. Nunca gostei desse pensamento meio acovardado que pega a gente no sono profundo, depois foge, e depois volta de novo, incomoda, fica rondando, e massacrando, e você só pensando nele. Ocupa a memória toda.

Três dias sem ver, comer ou beber. Estomago embrulhado, esmagado por uma experiência profunda com Deus. Sem prazer. Nada de alegria. Só pensando e se preparando para abrir os olhos, pois teria que ver a vida de forma diferente. Nem sair de casa podia. Uma experiência com Deus que deu a ele o que poderia ser uma depressão. Nos dias atuais tomaria remédio e empurraria não sei pra quando o conversar consigo mesmo. Assim como a dor só se cura doendo, o pensamento só é curado pensando, depois ele cansa e um dia desaparece como se nunca tivesse havido.

Lá estava Paulo à mercê de Deus, num sonho misturado com visão, ou numa visão misturada com sonho, e não sabia se era só sonho de quem queria que a situação fosse outra, ou só visão à espera de uma ação sobrenatural de Deus. Talvez os dois juntos. Um dia viu Ananias, e foi só o que viu.

Três dias vivendo de um sonho, enclausurado em si mesmo, tentando se compreender. Quem era? O que Deus queria? E agora? Espiritualidade sofrida, e que ninguém quer ou  entende: onde estaria hoje?

pr. Natanael Gabriel da Silva

A LINGUAGEM DE DEUS

“Ó Senhor, a nós pertence a confusão de rosto (...). Ao Senhor, nosso Deus, pertence a misericórdia e o perdão...” – Daniel 9, 8ª e 9ª

Confusão de rosto é olhar e não reconhecer. É não entender quem é quem, misturar identidades e tornar o conhecido um estranho. Um ausente, como se não conhecesse o passado, sem vínculos, compromisso ou amizade. Um outro que não diz nada, nem nunca contribuiu com nada ou fez diferença, isto porque os amigos também nos transformam. Quando temos amizade com alguém, o jeito dessa pessoa, seus sonhos, conselhos e valores, interferem no que somos, seja para uma coisa, seja para outra. Um rosto confuso é uma pessoa nula, impessoalidade, quase uma desumanidade E em alguns casos causa medo. Pra Daniel, a gente só sabe fazer isso.

De outro modo, e ao contrário, a misericórdia não mistura identidades e não faz da pessoa um estranho, nem ausente ou mudo. Tanto a misericórdia, como o perdão, desvelam o coração e tornam o ser humano como exposto à análise, partes separadas, aberto e lido, sem rodeios ou mistérios. Não há nulidade, nem impessoalidade, porque a misericórdia repousa sobre o indigno, já que nada pode esperar dele. Pra Daniel, Deus em relação ao ser humano, só sabe agir desse modo.

O “pertencer” de Daniel não é o possuir como se fosse uma coisa. O ser humano é confusão de rosto. O Senhor é misericórdia e perdão. Assim como a gente nunca sabe o que faz, o Senhor só se aproxima, tanto de você, quanto de mim, com misericórdia e perdão, porque esta é a linguagem de Deus.

Pastor Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

SOB MEDIDA

"E, havendo dito isto pôs-se de joelhos, e orou com todos eles.” Atos 20.36

Oração que Lucas não menciona o conteúdo. Apenas que Paulo orou com eles.
As palavras anteriores de Paulo já tinham sido uma oração. Conversava com os outros e consigo, missão e consciência, o que havia feito e estava feliz por conta do que pretendera: anunciar os conselhos de Deus a todos que ali estavam (v. 27). Agora retomava outros conselhos: atenção, muita atenção (v. 28-30) e oração, muita oração (v. 31). Oração com lágrimas, não artificiais, mas profundas. Paulo sabia o que era sofrimento e quando pensava nos seus amigos, o caminho era o mesmo. Oração também de pessoa a pessoa, nome por nome, nada de atacado.
Depois Paulo fala de si. Nada fizera com qualquer outro objetivo ou finalidade, senão o de cumprir o que Deus havia colocado em suas mãos.
Finalmente ora, e eu fico meio sem graça com Lucas porque gostaria de saber o que Paulo disse. Se eu tivesse sido Lucas, talvez mencionasse menos do que Paulo tinha dito e colocaria pelo menos uma frase, um pensamento, um algo sobre a oração dele. Só que isso já e curiosidade que não tem sentido, porque foi a oração deles, para eles, num momento de intimidade e companheirismo que você e eu não fomos convidados a participar. Como eu empresto ao texto bíblico o meu universo cultural, fico pensando que foram palavras ao pé do ouvido, singular, pessoal, que talvez só fosse importante para os que ficaram. Oração não ritual, sem jargão, frases feitas e com efeitos, que fazem assumir a cena mais a pessoa que ora que o próprio Deus, e as palavras bonitas muito relevantes, mas sem conteúdo.
Oração quieta e só no abraço, feita sob medida e que não foi registrada para nunca mais ser repetida.
Pastor Natanael Gabriel da Silva

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

NAS PALMAS DAS MÃOS

E rasgai o vosso coração...”Joel 2.13a

Rasgar dói, eu sei. É aquela dor funda que acontece uma única vez e é de uma vez só. Separar as partes da profundidade humana, para costurá-las de novo, de outro modo e a partir de novos valores. Derramamento da alma, se preferir. Prostração é outra expressão irmã. Entregar-se, render-se como se preferisse a morte. E é. Mudança radical, isto é, vai até às raízes, entra por debaixo delas, no profundo que está escondido, e permite a construção de uma nova pessoa, e ao invés de enfiar de fora para dentro o novo, este brota de dentro refazendo tudo.

É uma aventura. Não dá pra saber antes como será você sendo uma nova pessoa. Não é como fazer um plano de viagem, ou orçamento para a aquisição de uma casa nova, avaliar os riscos, projetar as necessidades e tentar adivinhar como será o futuro. Não é isso, porque só existe uma sinalização: confiar na bondade de Deus. Porque rasgar o coração é também entregar para Ele o futuro, uma espécie de desistência de cuidar de si: Até aqui fiz assim e não deu certo, agora toma aqui o meu coração rasgado, em duas, três, quatro ou quinze partes, como aquele bilhete ou recado que no momento da fúria, nunca se rasga o suficiente. Daí o quebra-cabeça, tudo fora de lugar, um amontoado de partículas, cheio de pontas, faltando peças, e seu coração desmontado nas palmas das suas mãos, você pega com as duas, entrega pra Ele e diz: Veja o que consegue fazer com isso!

Daí Ele faz outro, do jeito dele e do modo como deveria ser. Um Deus que desperta a vida numa manhã tão linda, pode montar de novo o seu coração. Você rasga e Ele refaz.

Pastor Natanael Gabriel da Silva




sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

DEUS É LINDO!

 “O deserto e a terra ressequida se regozijarão; o ermo exultará e florescerá como a tulipa; romperá em flores, mostrará grande regozijo e cantará de alegria. A glória do Líbano lhe será dada, como também o resplendor do Carmelo e de Sarom; verão a glória do Senhor, o resplendor do nosso Deus.” – Isaías 35.1,2

Uma poesia profética, em forma de promessa e esperança. Trata-se da vida brotando do nada, como no Éden. A desesperança revertida, e onde havia areia o solo vai abrindo espaço para o verde que toma conta e vira terra bela. Nada de plantio, produção ou consumo. Apenas flores. Coisa pra ser contemplada, plural, diversificada e cheia de cores. Pra sentar e ver, curtir, pensar e adorar: Deus é lindo!
O deserto em flores é só um detalhe, porque quem faz isso, pode fazer qualquer coisa, e quem é imensamente belo traz a sua beleza como criação e cuidado. Um milagre generalizado, à vista, no caminho, nada subjetivo, pessoal ou íntimo e escondido. Coisa pública, declarada, criada e florescida: o deserto se arrebenta em vida!
Não é pra você adorar as flores, mas a grandiosidade do Senhor. Nem o deserto é pra ser adorado, muito menos a beleza, nem o impossível do ermo que brota feito chuva na caatinga ainda seca e de galhos retorcidos; afirma Euclides da Cunha : - “E o sertão é um paraíso...” Pra Isaías paraíso vira o deserto, não apenas o sertão, que já tem vida prometida. O deserto de Isaías, para além do sertão, é o nada. Não tem nem morte, porque não há vida pra morrer.
E o deserto brota. Sabe por quê? Porque Deus é lindo!
Pastor Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

A PERGUNTA DA ALMA

“Dize-nos se tu és o Cristo. Ele respondeu. Se eu disser, não crereis.” Lucas 22.67

Tem coisa que não adianta, nem fazer, nem falar, e Jesus também sabia disso. A pergunta tinha uma direção, mais que o conteúdo. Não havia interesse na verdade, porque em alguns momentos a verdade não interessa. Em alguns casos, atrapalha. Eles queriam a vida de Jesus. Estavam catando elementos pra justificar o que já antecipadamente desejavam, e qualquer coisa que afirmasse seria suficiente, como foi, para fazer o que pretendiam.

Uma pergunta nem sempre é pergunta. Pergunta-se com o coração, não com a cabeça e conceitos. O que vale mesmo não é o que afirmamos ou defendemos, mas o que sentimos e desejamos. Deus não escuta o que falamos. Deve doer muito quanto as duas coisas não são as mesmas. Foi isso que Paulo quis dizer em Romanos 10.9: “Se, com tua boca, confessares ao Senhor Jesus e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dos mortos, serás salvo”. Correspondência entre o que está no mais íntimo e no que é externado, mais conhecido como autenticidade, transparência e integridade. As expressões do corpo são a forma de sairmos do mundo interior e invadirmos o universo. Às vezes os lábios são apenas paredes sem porta, trancam mais que revelam.

Daí Jesus não respondeu, porque tem coisa que não é pra ser respondida mesmo, e a pergunta da alma, é a pergunta da alma, e é assim que se dialoga com Deus. Oração é isso.

Pastor Natanael Gabriel da Silva


terça-feira, 10 de janeiro de 2012

O SOFRIMENTO QUE SÓ FAZ SOFRER

 “Estas coisas vos tenho dito para que tenhais paz em mim. No mundo, passais por aflições; mas tende bom ânimo; eu venci o mundo.” João 16.33

O ensino de Jesus não era o de realçar o sofrimento, mas a santidade.

Sofrer, todos sofremos. O texto bíblico está repleto de narrativas sobre dores e desamparos. Gente como Jó, o profeta Elias, Habacuque, Abraão, e por aí se vai, sofreram. Só que uma coisa é Jó sofrer por causa de sua fidelidade a Deus, ou Elias, em razão de sua imaturidade, ou Habacuque que desejava ver o Senhor agindo, ou ainda Abraão por estar obedecendo ao se dobrar e oferecer o seu único filho em sacrifício. Outra coisa é o sofrimento de Jacó, que precisava encontrar-se com o passado, ou David que nem sabia que passado era esse.

Jesus falava do sofrimento ocasionado pela rejeição, como resultado de uma experiência profunda com Deus. Esse é o sofrimento que não faz sofrer, dói como qualquer dor, mas é vazio de culpa. Dói só a dor, não o coração. Fica na pele e não tem causa profunda. Não adianta procurar onde está a raiz, porque ela não está do lado de dentro. Não é um fenômeno de implosão pessoal, mas resistência. É uma espécie de sofrimento que gera paz, embora talvez isso não seja muito fácil de ser compreendido. Não impede a dor, mas é vazio. Não há o que se possa fazer com ele, ou contra ele. Só que também não tem a força da escravidão, e jamais terá a capacidade de submeter o sofrido, antes o fortalece. Foi assim a história dos grandes mártires: o sofrimento era só sofrimento.

Pastor Natanael Gabriel da Silva