quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

EU SOU O CARA


“Meu dedo mínimo é mais grosso que a cintura de meu pai.” – 1 Reis 12.10c 

Comigo é assim, ou vai ou racha! Pois é, rachou, e quem sofreu não foi ele, Roboão.
Vamos começar mais no começo e lembrar que Salomão tinha morrido. Jeroboão, outro candidato à tirania, refugiado no Egito, voltou porque a oportunidade se abrira. Reuniu um grupo que o apoiava e tentou pressionar o novo rei, fazendo uma proposta que ia, desde a redução de impostos como até, possivelmente, a diminuição da pompa e do ciclo de grandeza que Salomão em nome do empreendedorismo (mesmo que não conhecesse esta palavra) impusera num ritmo alucinante. Foram quarenta anos em quarenta anos, pra inveja mortal de qualquer Juscelino.
Reduzindo os impostos, Roboão, que era o candidato do sul a rei (?), ficaria esmagado. Se não fizesse isso, sofreria a perda do poder aos pobres, expropriados e abandonados do norte. Pediu então ajuda aos universitários. Os mais experientes, os que gostavam do trabalho negociado e que queriam ganhar tempo, desejavam controlar a situação com cautela, pra fazer algo agora pra reformular depois, perder um pouco, mas não perder muito, essa coisa que a gente conhece que às vezes recebe o nome de perdão e que funciona, estes orientaram Roboão a que cedesse e evitasse um conflito a qualquer custo. Daí Roboão resolveu consultar a escolinha dele, de gente como ele, que gostava de uma boa briga, que se dava bem no conflito, e os pré-escolares disseram a Roboão: - Faça isso não, mostre pra eles que você é o cara.
Bem, daí o cara, que desconhecia ser infantil, e que pouco se importava com as pessoas, o governo, a gestão, o diálogo e, principalmente, a pacificação, coisas nas quais o pai dele, Salomão, era pós-doutor, decidiu pela força e deu no que deu. Um reino pra um lado e outro pro outro, e nunca mais o Israel antigo voltou a ser um só.
Moral da história: canja de galinha e espírito pacificador não faz mal pra ninguém. Todo pacificador é tido como inoperante, porque não impõe o ritmo que as decisões de guerra exigem. É que ser pacificador é mover as peças a passos curtos, medidos, programados, passos demorados, que dependem de uma situação que deverá aparecer e da qual se aproveitará para ensinar que o caminho da paz faz muito sentido. O caminho da paz traz a alegria do pertencimento, do gostar de fazer parte, não tem triunfalismo (agora sim, agora vamos mostrar quem somos), nem projetos arrojados, porque a paz é simples, é a boa convivência, é a alegria, é o discurso do amor, da palavra branda, inteligente, apontando que o espírito da adversidade e da guerra não são o melhores caminhos, é o suportar o que não pode ser suportado para que a paz seja vivida e degustada, saboreada, tão natural que quase ninguém percebe, e quando alguém afirma meio perguntando, o que está acontecendo que tudo está tão bem, está leve, há mais acolhimento e companheirismo, ninguém, ou pouca gente, irá se lembrar de que tem alguém semeando a paz, que vai brotando, e quando você vê, virou árvore e as aves vêm se abrigar  sob sua copa.
A pacificação tem tudo aquilo que é o caminhar mais uma milha ou de dar o rosto, espelho da alma, para que alguém o/a agrida na sua mais profunda intimidade, e não fazer nada para que a paz se dê como limite. Não quer dizer que quem caminha uma segunda milha concorda com o caminhar, nem quem é agredido com a agressão, quer dizer apenas que é possível trilhar o caminho que ninguém deseja, e sofrer o dano moral que ninguém suporta, somente pra ensinar que é possível a interrupção da guerra e a celebração da paz. A paz sempre é possível, e todo pacificador sabe disso. Não é simples, nem automática, porque o mais primitivo e simples é a briga, infantil, imatura e intransigente. Promover a paz é tão difícil que um dia Jesus disse aos seus aprendizes: Bem-aventurados os pacificadores.
pr. Natanael Gabriel da Silva

sábado, 26 de janeiro de 2013

DEPOIS DA CEIA


“E, acabada a ceia...” – João 13.2

Paulo se preocupou com o antes. O examine-se, de I Coríntios 11.28, deixa isso bem claro. Depois de recomendar a recuperação da memória pessoal, retoma a memória no rito e o organiza, pelo menos em linhas gerais. A forma ainda era uma preocupação central na vida de Paulo, em face do cristianismo nascente. A perseguição era ainda puramente religiosa, quando da escrita do texto, e o que era ruim, ficaria pior, com a deflagração de uma guerra contra os cristãos pelo Império. Só que isso aconteceria depois e por hora era necessário firmar algumas estacas e diretrizes que tornavam o cristianismo um evento singular.

O mapa de João é outro. Até os mais conservadores precisam situar a literatura joanina, e sua escola, pelo menos no final do primeiro século, ou depois. O Império já havia promovido horrendas atrocidades e a expectativa da cessação da luta armada e de morte contra a Igreja parecia uma impossibilidade, e só poderia ser sonhada por meio de uma hecatombe apocalíptica. Como é possível sobreviver sob o medo e a intransponível ameaça? Sonhar com um céu? Sim, mas também manter os laços profundos de comunhão e ajuda mútua, daí o discurso do amor, tão presente em João.

João não estava preocupado com o rito, nem com o que fora antes, mas com o depois. Sequer menciona detalhes do que seria a Ceia, por mais significativa que fosse esta para o cristianismo que se fez no entorno do evento da paixão, que o próprio João valoriza e dedica metade de seu Evangelho para o tema. A questão era o depois, e depois da ceia, meu amigo, o que vale mesmo é pegar a toalha, se ajoelhar aos pés do irmão, lavá-los e enxugá-los, em submissão e amor. Isso é que seria uma ceia, segundo João. Não a preocupação de como se come o pão ou se bebe o vinho, nem das palavras que se diz quando se faz isso, nem mesmo em relação à interioridade de quem participa do ato comunitário. A memória de Jesus está na atitude de humildade profunda, reconhecimento do outro como pessoa e celebração do amor como união, dependência e alvo da vida, e o Cristo recordado na memória emerge na ação sublime do outro ser considerado superior a si mesmo, e pedir perdão pelo que não fez, tornar-se servo sendo Mestre, e praticar o ato impossível e inesperado de um total despojamento da pessoalidade.

Isso não acontece antes, nem durante, mas depois, porque a vida não está no rito, mas no encontro com o outro, o que torna o Evangelho mais comprometido com o próximo do que gostaríamos, e mais dependente de vida do que de enunciados.

pr. Natanael Gabriel da Silva


quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

ASSIM NASCE UM SÁBIO


“E deu Deus a Salomão sabedoria, e muitíssimo entendimento, e largueza de coração, como a areia que está na praia do mar” – I Reis 4.29

Desculpe a informação mais técnica, quase como aquele que leva à mesa as panelas do fogão. Contudo, se você fizer a leitura do primeiro livro dos Reis do capítulo 1 ao 4, de uma só vez, entenderá a minha preocupação.

É que a oração, à noite, feita por Salomão (3.5-15) pode ser compreendida como uma manifestação voluntária e quase acidental, ou até mesmo como necessidade de um novo projeto de vida. Raramente se pensa que fora uma noite de crise e de reencontro com um novo sentido de ser e viver. Pode-se ler o texto imaginando que Salomão estava descansando, como uma criança, e num dado momento, por meio de um sonho, o Senhor conversou com ele. Pode-se, porém, pensar que Salomão sofria a dor profunda do desconforto e descompasso de vida, pois ninguém seria capaz de viver a vida toda sob a égide do medo e da morte. 

É daí que entra a diferença entre o Salomão dos eventos anteriores à noite escura da alma, como diria São João da Cruz, e o Salomão despertado no dia seguinte. Anteriormente, Salomão via o mal e a ameaça em tudo, e começou matando. Matou em nome de Deus. Viu a ameaça futura, e tentou prevenir o presente, porque todo o ditador e centralizador, que para o rei caberia mais a expressão “tirania”, mata no presente pra se proteger do futuro, lança a dúvida da catástrofe aos subordinados que o elevam à categoria de único, capacitado e responsável pra livrar a comunidade de um futuro que está colocado lá somente através do medo. Tipo Vargas que se deu como único capaz de enfrentar uma ameaça que não havia, mas que foi suficiente pra apresentar-se como o libertador de fibra que a sociedade precisava. Salomão aprendeu cedo que não se lidera assim. 

Daí entrou em pânico, e foi preciso uma noite escura da alma para que ele se desse como uma pessoa de bom senso, inteligência e que abrisse o coração para a vida e às pessoas. Deste modo, não foi por acaso que a primeira coisa que faz depois do sonho, é julgar prostitutas. Não julgar as prostitutas por serem prostitutas, mas estava lá presente a questão moral de duas mulheres que administravam uma casa de prostituição, e estava também presente a vida futura de uma desconhecida e inonimada criança. Foi o seu primeiro teste. Descobriu que é saboroso viver com bom senso, utilizar a inteligência pra salvar ao invés de condenar, e ter o coração escancarado pra passar tudo e abraçar tudo, um coração da largueza do mundo, imenso, alto e aberto pra preservar a vida. 

O que fez Salomão depois? Foi ser poeta (4.32) e visitou a natureza pra aprender o que é paz e vida (4.33). São os sintomas de um coração aberto: preservar a vida, cantar e escrever o exagero de sentido da existência na poética e celebrar a natureza. Depois disso, nasceu o sábio (4.34). 

pr. Natanael Gabriel da Silva