terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

O PARAÍSO RECONTADO



“E veio a palavra do Senhor a Jonas, filho de Amitai, dizendo: Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive e clama contra ela, porque a sua malícia subiu até mim.” Jonas 1.1,2

Eu sei que você vai achar que é um exagero. Bem, não serei o único a fazer isso. Já vi tanto exagero na religião que acabei me acostumando com isso. É que hoje, lendo o Livro de Jonas, fiquei de certo modo fascinado com a recriação do paraíso de Gênesis recontado, só que ao contrário. Um paraíso diferente daquele, mas uma memória presente, rearticulada como um parentesco literário, mas ao mesmo tempo único, uma espécie de recriação vivida, biografada, como se tivesse acontecido perto e pelo lado de dentro.

Tenho algumas razões para isso. Primeiro a questão do inegável mistério do texto: tanto Gênesis quanto Jonas são, definitivamente, inexplicáveis. Não são os únicos textos inexplicáveis das Escrituras, é claro. Só que ambos têm o mar, num é plácido, noutro uma tempestade  que aparece como se tivesse sido determinada por meio de um “haja”, dito e pronunciado sem som ou voz. Tem também a criação do nada, de um grande peixe que ninguém sabe direito o que era, nem para onde foi depois, mas simplesmente aparece e desaparece. É como o Éden, o lugar do eterno não-lugar, ninguém sabe onde, nem quando, e talvez nem o porquê. Tem ainda o tempo contado, cronometrado, três dias. É menos que sete, eu sei, mas se fosse igual, seria o mesmo. Não tem a árvore da ciência do bem e do mal, mas tem a aboboreira, lugar da meditação, do descanso e da maldade do profeta. A inexplicável grosseria, incompreensão, e ficar bravo por conta de uma aboboreira ninguém merece! Só que esta, em razão do tamanho e final de texto, é tão inexplicável quanto o peixe, mas pouca gente se lembra dela, porque o milagre grande, só é lembrado quando “o grande” se referir a algo grande, sem querer ser redundante. Depois tem o bicho que comeu a planta, esse sim é quase imperceptível. Não sei se Jonas aprendeu mais com o verme que com o peixe, mas acho que isso não faz diferença, faz?

E onde estaria o paraíso? Bem, paraíso, paraíso mesmo, do jeito que está em Gênesis, isso não tem. Tem o mal que está nas pessoas, não na árvore. Tem cheiro de morte também, porque Jonas esteve no fundo do mar, e queria que todos na cidade morressem. Agora, paraíso mesmo, só se este for a cidade, pois a narrativa não se dá no campo, é um relato da recriação por meio de uma visão urbana, uma cidade grande, já pronta, centro de um Império e organizada em seu sistema de poder. Este seria o relato de uma recriação quando já havia gente no mundo, e Jonas não estava sozinho, é claro. Não precisaria mencionar, mas tanto em Gênesis como em Jonas a desobediência é claríssima. Não tem serpente, mas tem peixe. Não tem árvore, mas tem a aboboreira. E bicho também.

O paraíso de Gênesis termina com a expulsão, o de Jonas, com a inclusão. No primeiro paraíso parece que o tal do pecado não tinha solução. É certo que alguém irá dizer que aquele foi “o pecado”, aquele que tornou a humanidade irreversivelmente pecadora. Não sei se isso não seria coisificar o mal como um existente ontológico, tipo Aristóteles. Só que isso é demais para o meu gosto. Contudo, com “o pecado”, ou sem ele, em Jonas há solução, e a cidade é visitada para ser transformada, ninguém é expulso, Nínive não vira de cabeça para baixo, nem Jonas fica de cabeça para cima. O texto termina, talvez não porque esteja incompleto, termina terminado, e ninguém fica sabendo do destino do bicho, de Jonas, do peixe e dos perdoados e incluídos no plano de Deus, mesmo não sendo judeus eleitos. Não se diz se formaram ou não comunidades religiosas, nem sobre a mudança de conduta ética. Ninguém, ao que parece, teria ficado impedido de entrar lá. E o paraíso não ficava num limite imaginário do céu, mas se dava como o lugar da vida e do perdão. Todo mundo é ameaçado de morte, os marinheiros, a cidade e Jonas, várias vezes, jogado na água ou por pedido próprio, mas ninguém morre. A única, tadinha, foi a aboboreira.

É, acho que exagerei mesmo. Desculpa aí. De qualquer modo, é bom pensar que a piedade de Deus, sua misericórdia, longaminidade, benignidade, incompreensível perdão e a inclusão, juntos e separados, estão na cidade, onde se vive e morre. É, o paraíso pode estar mais perto do que se pode imaginar.

Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

O CAMINHO DA PROSPERIDADE



“Mas há pouco tempo o meu povo se levantou como um inimigo; além da túnica, arrancais a capa dos que passam confiantes, como homens contrários à guerra.” Miquéias 2.8

A professora Paula Montero, titular do Departamento de Antropologia da USP, em seu artigo “Religião e esfera pública: a reinvenção do pluralismo religioso no Brasil” (Ronaldo CAVALCANTE e Rudolf von SINNER (orgs). Teologia Pública em Debate 1. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2011, pp. 145-156), afirma que a teologia da prosperidade, preconizada pelo discurso da Igreja Universal do Reino de Deus, oferece por um lado um discurso igualitário em busca da igualdade social, e pelo outro,diz textualmente,  “desqualifica o ‘pobre’ como sujeito e objeto da ação política.”

Miquéias não está, necessariamente, pensando na prosperidade, mas é voz contra a injustiça social e opressão, causadas pelo exercício indevido do poder. Poder em todas as esferas, diga-se de passagem. Adiante coloca: “Os seus chefes dão as sentenças por suborno, e os seus sacerdotes ensinam por interesse, e os seus profetas adivinham por dinheiro; e ainda se apoiam no Senhor, dizendo: O Senhor está no nosso meio, por isso nenhum mal nos sobrevirá.” (3.11) Poder político e religioso associados, em parceria, e como agentes da miséria. O poder político detém o controle pela força, e o religioso, controla o imaginário, pensamento e vontade. Um impõe a miséria, o outro ensina a acomodação. Um é estabelecido como o que tem comando e voz sobre a vida dos súditos, o outro mostra que tudo estava no discurso vago de que “era da vontade de Deus”.

É possível resultar alguma coisa boa disso? O próprio profeta responde, logo em seguida: “Portanto, Sião será lavrada como um campo, e Jerusalém se tornará um montão de ruínas, e o monte desta casa, como uma elevação coberta de mato.” (3.12) Não vai sobrar nada pra ninguém. E foi o que aconteceu. O discurso das comunidades da prosperidade colocam a miséria como pecado, o que é justo, mas dizem que este está presente na pessoa do excluído, o que não é verdade, e desloca o problema da ética pública e da cidadania, para o exorcismo, o que é uma calamidade.

Jesus ensinou um caminho, aparentemente simples, para o exercício da cidadania, e chamou este caminho apenas de amor, no seu sentido mais lato. Conhecemos o amor como o que aproxima as pessoas, cura sentimentos da alma e cria laços de pertencimento com o outro. Contudo, o seu sentido talvez seja mais amplo do que imaginamos. Tem a ver com o próximo, seu direito à vida, integridade e humanidade. Tem a ver com os inimigos que precisam ser amados e cria-se assim uma interrupção por meio da não violência, contra o conflito e em favor da paz. Tem a ver com o exercício do poder, e não basta este lavar as mãos diante da injustiça, é preciso um pouco mais. Mencionou que no Reino de Deus, não necessariamente na Igreja, não haveria famintos, e as ruas de acesso aos palácios e à urbanidade (como a via Ápia) seriam de ouro; por ela passariam pobres e ricos, poderosos e fragilizados, governantes e governados, reis e súditos, numa incompreensível condição de igualdade: todos os que um dia, com coragem, a ponto de nascerem outra vez, enfrentaram a própria miséria da desumanidade, na compreensão que o sofrimento do outro, também faz sofrer a si mesmo/a, e a morte do outro, a própria morte.

A ética da cidadania é o profundo amor à vida: da minha vida que está em mim, e da minha vida que está no outro. O amor é a única ponte.

Natanael Gabriel da Silva