“E veio a palavra do Senhor a Jonas, filho de Amitai,
dizendo: Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive e clama contra ela, porque a
sua malícia subiu até mim.” Jonas 1.1,2
Eu sei que você vai achar que é um exagero. Bem, não serei o
único a fazer isso. Já vi tanto exagero na religião que acabei me acostumando
com isso. É que hoje, lendo o Livro de Jonas, fiquei de certo modo fascinado
com a recriação do paraíso de Gênesis recontado, só que ao contrário. Um
paraíso diferente daquele, mas uma memória presente, rearticulada como um
parentesco literário, mas ao mesmo tempo único, uma espécie de recriação
vivida, biografada, como se tivesse acontecido perto e pelo lado de dentro.
Tenho algumas razões para isso. Primeiro a questão do
inegável mistério do texto: tanto Gênesis quanto Jonas são, definitivamente,
inexplicáveis. Não são os únicos textos inexplicáveis das Escrituras, é claro.
Só que ambos têm o mar, num é plácido, noutro uma tempestade que aparece como se
tivesse sido determinada por meio de um “haja”, dito e pronunciado sem som ou
voz. Tem também a criação do nada, de um grande peixe que ninguém sabe direito
o que era, nem para onde foi depois, mas simplesmente aparece e desaparece. É como
o Éden, o lugar do eterno não-lugar, ninguém sabe onde, nem quando, e talvez
nem o porquê. Tem ainda o tempo contado, cronometrado, três dias. É menos que
sete, eu sei, mas se fosse igual, seria o mesmo. Não tem a árvore da ciência do
bem e do mal, mas tem a aboboreira, lugar da meditação, do descanso e da
maldade do profeta. A inexplicável grosseria,
incompreensão, e ficar bravo por conta de uma aboboreira
ninguém merece! Só que esta, em razão do tamanho e final de texto, é tão
inexplicável quanto o peixe, mas pouca gente se lembra dela, porque o milagre
grande, só é lembrado quando “o grande” se referir a algo grande, sem querer
ser redundante. Depois tem o bicho que comeu a planta, esse sim é quase
imperceptível. Não sei se Jonas aprendeu mais com o verme que com o peixe, mas
acho que isso não faz diferença, faz?
E onde estaria o paraíso? Bem, paraíso, paraíso mesmo, do
jeito que está em Gênesis, isso não tem. Tem o mal que está nas pessoas, não na
árvore. Tem cheiro de morte também, porque Jonas esteve no fundo do mar, e
queria que todos na cidade morressem. Agora, paraíso mesmo, só se este for a cidade, pois a
narrativa não se dá no campo, é um relato da recriação por meio de uma visão
urbana, uma cidade grande, já pronta, centro de um Império e organizada em seu sistema de poder. Este seria o relato
de uma recriação quando já havia gente no mundo, e Jonas não estava sozinho,
é claro. Não precisaria mencionar, mas tanto em Gênesis como em Jonas a
desobediência é claríssima. Não tem serpente, mas tem peixe. Não tem árvore, mas
tem a aboboreira. E bicho também.
O paraíso de Gênesis termina com a expulsão, o de Jonas, com
a inclusão. No primeiro paraíso parece que o tal do pecado não tinha solução. É
certo que alguém irá dizer que aquele foi “o pecado”, aquele que tornou a
humanidade irreversivelmente pecadora. Não sei se isso não seria coisificar o
mal como um existente ontológico, tipo Aristóteles. Só que isso é demais para o meu gosto.
Contudo, com “o pecado”, ou sem ele, em Jonas há solução, e a cidade é visitada
para ser transformada, ninguém é expulso, Nínive não vira de cabeça para baixo,
nem Jonas fica de cabeça para cima. O texto termina, talvez não porque esteja
incompleto, termina terminado, e ninguém fica sabendo do destino do bicho, de
Jonas, do peixe e dos perdoados e incluídos no plano de Deus, mesmo não sendo
judeus eleitos. Não se diz se formaram ou não comunidades religiosas, nem sobre
a mudança de conduta ética. Ninguém, ao que parece, teria ficado impedido de
entrar lá. E o paraíso não ficava num limite imaginário do céu, mas se dava
como o lugar da vida e do perdão. Todo mundo é ameaçado de morte, os marinheiros, a cidade e Jonas, várias vezes, jogado na água ou por pedido próprio, mas ninguém morre. A única, tadinha, foi a aboboreira.
É, acho que exagerei mesmo. Desculpa aí. De qualquer modo, é
bom pensar que a piedade de Deus, sua misericórdia, longaminidade, benignidade, incompreensível perdão e a inclusão, juntos e separados, estão na cidade, onde
se vive e morre. É, o paraíso pode estar mais perto do que se pode imaginar.
Natanael Gabriel da Silva