quinta-feira, 16 de abril de 2015

A QUEDA

“Então, caindo em si, disse: Quantos trabalhadores de meu pai têm pão com fartura, e eu aqui morro de fome!” – Lucas 15.17

O cair em si é ótimo porque é o entrar no vazio da alma e despencar, como aquele que não vê o chão, e vai caindo sem saber direito o final da queda, e quando chega, o limite é o em si, a redescoberta, o reencontro com o que poderia ter sido, mas não foi, um recomeço sem recomeço, pois é um voltar não ao marco zero, será o zero visitado no retorno, e vai caindo, desde cima, sem ser redundante, senão o cima fica muito baixo, e vão passando as casas dos desvios, cai de novo e sempre, como se visse a vida, o filme, e se olhasse como se estivesse do lado de fora, mas não está, porque se vê caindo e cai com o que vê e fica a sensação de não saber direito se era ele mesmo, quase sem acreditar, mas eu fui capaz de fazer aquilo? não acredito! mas onde eu estava com a cabeça? e vai se vendo, se envergonhando, e onde estava com a cabeça, não sei, mas agora ela está caindo no em si, afundando para um começo que não será o começo de tudo porque não dá pra apagar o caminho, será o começo do possível; não vai dar pra apagar a memória, ou a consciência, como um esquecer completamente, até porque vai precisar dela pra saber que a queda é cruel, não dá pra cair de novo, mas não abusa que dá, e é muito doída, quase desumana, mas quando o desumano é algo que o humano faz contra si, não é desumano, é só retomada de uma nova etapa e a tentativa de reconstruir tudo, colocar novos alicerces, estabelecer novos parâmetros, ficar menor, porque quem cai fica pequeno, se esborracha no chão do em si, fica amassado feito botão e só não vai além porque ninguém consegue cair pra dentro e passar do em si; o em si negativo é loucura e desvario.

Caiu no em si o filho que fora embora, aborrecido com a miséria, nem sequer se deu conta dos males, pegou mesmo foi no limite da vida que não poderia ficar pior, e se lembrou da benevolência do pai que havia esquecido, desde quando achara que a vida poderia ser solo, desde o tempo quando sequer sabia o que era vida, lá no momento em que precisava descobrir que estava à beira do abismo do em si, que nem sabia direito o que era isso, e naquele tempo disse que queria ir embora, se cansara da mesma árvore, mesma relva, mesma vida sem sentido, porque pra ter sentido precisava ir para onde pudesse cair, e caiu no em si, tropeçou pra dentro, e redescobriu os trabalhadores da fazenda que não tinham nome nem rosto, eram só trabalhadores, porque desde aquele tempo não olhava pra ninguém, só para si, sem o em, nem o cair,  e teve que aprender a reescrever o sentido da vida juntando o cair, com o em, e com o si, cada um separado era uma coisa, agora juntos o derrubaram em queda livre, no vazio da alma, na escuridão de sentido que parece só haver para o fundo, e foi caindo até que botou o pé no si que estava no chão do chão, esmagou-se, porque caiu sobre a própria alma, a sufocou, a feriu, a machucou sem dó e piedade, e é claro, sem controle, pois se há uma coisa que não dá pra saber é onde fica o fundo do em si, cada um, um poço, e tem até aquele que fica caindo, só caindo no vazio do nada. A queda do filho de Lucas, porém, teve um limite, foi grande, mas teve fim; queda grande, e quanto mais se cai, mais doída é a dor que se tem ao cair sobre si mesmo.

Estou morrendo de fome, de pão, de mim mesmo e estou com saudade do meu pai disse ao cair. E foi assim que voltou para casa.


Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 9 de abril de 2015

O PROFETA E SEU CANTO TRISTE


Eu sei que você, lendo Isaías 40, o primeiro texto do chamado Segundo Isaías, vai lê-lo como promessa. E é.

Hoje eu li Isaías 40. 1 a 12 assim:

Meu povo precisa de consolação e conforto, pois é chegado o sofrimento no seu limite. Já sofremos demais, muito além do que poderia ser em razão dos nossos pecados, que também são muitos. É muito sofrimento vindo da mão do Senhor, o que torna o socorro quase um vazio de sentido, pois a fonte da provisão é de onde brota também a dor. Daí a voz clamando no deserto, o mesmo deserto da libertação e presença, abrindo o caminho para o nosso Deus poder vir, talvez para ver o quanto sofremos, talvez para mostrar o quanto nos rendemos e nos humilhamos ao convidar aquele que nos faz sofrer para ser o também o libertador; pois afinal é como se o sofrimento, no seu limite, fosse agora aceito e reverenciado. E tudo ficará planificado, os montes e colinas rebaixados, os vales nivelados, abertos para o Senhor passar, ou para abrir o horizonte para ser visto, por detrás dos montes, além do que pode ser alcançado, e ver na imensidão a glória do Senhor, desde longe, onde a terra e o céu se encontram, misturando assim o humano e o divino, o divino e o humano, quando sofrimento e esperança acabam por se juntar, tudo ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Assim nos submetemos, tanto ao sofrimento, quanto à esperança do livramento, tanto à incompreensão da dor que se dá como ter ido além, como a esperança que não sabemos como será; só sabemos que é esperança sem fim, como o horizonte. E vem o clamor, mas que clamor? O clamor da humilhação, da pequenez, da fragilidade e confissão: somos relva, estamos no chão do chão, somos como flores no deserto, fragilizados pela seca e que não suportamos mais o vento do sofrimento, e mesmo que venha, a esperança permanece para sempre, porque ela segue a trilha da promessa, que veio do deserto, desde a libertação, desde quando tudo teve início, com direito a maná e águas doces. Um deserto que não tinha nada, e teve tudo, essa é a trilha da promessa. Então voz do que clama pelo deserto, e voz que não sabe o que clamar, mensageiro de Sião, suba num monte bem alto, levanta e grite para todos ouvirem, não tenha medo, porque o sofrimento não pode banir a esperança, e diga às todos que também não tenham medo, apesar do medo. Aponte e indique: Aqui está o vosso Deus. Mostre o deserto planificado, aponte para o infinito que não pode ser compreendido, e apresente a presença do nosso Deus que nos trouxe pelo deserto trazendo consigo a esperança, mesmo sem saber direito como será, e, no meio do sofrimento dobrado, diga que Ele virá, ora se virá, de um modo de outro virá, e tem o braço forte, trará consigo a graça, o cuidado como quem pastoreia o seu rebanho e vai nos agasalhar, como quem nos pega no colo, e nos fartará das primícias da vida, como se nos desse o primeiro leite, e nos guiará com a mansidão do pastor que sabe ensinar e conduzir, como ninguém, a vida pelo caminho. Quem sustentou a vida pelo deserto, saberá sustentar a mesma vida no meio do sofrimento.

Talvez seja, o canto do profeta, triste; de quem não reprova o sofrimento de profundidade doída e dobrada, e reserva para si, não a esperança da cura e da dor que não pode ser apagada. É apenas humilhação, rendição e presença de um Deus, em quem, no horizonte, sofrimento e esperança se juntam. É só aplainar a vista que dá pra ver.


Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 8 de abril de 2015

GRAÇA MENOR


“Cuidado para que ninguém se abstenha da graça de Deus...” Hebreus 12.12ª

É uma expressão quase incompreensível, a depender do que significa graça, numa linguagem que passa por muito teolojoquês e que a própria cristandade não tem dado conta de explicar, e as igrejas vão se dividindo numa imensidão de comunidades, e o todo, fragmentado, se perde nas verdades e nos sobrenaturalismos, mas quem sabe um dia a pluralidade dos discursos consigam construir alguma totalidade, se é que esta já não seja a fragmentada.

Pois é, abster-se da graça é um problema porque impõe limite ao que parece não ter limite. Uma graça que não seja plena, não poderia ser considerada graça, na expressão correta da palavra. Ela já expressa aquela que abarca tudo, até a impossibilidade de ser limitada pela vontade, e os defensores do livre-arbítrio querem morrer com isso. Mas o protestantismo burguês que se vire com a ruptura entre o sagrado e o profano, e a metafísica católica, não mais feliz, com o drama da ausência de liberdade. Nos dois casos, a igreja nunca se fez povo.

Uma coisa é a graça e sua plenitude, como manto que recaiu na história e abraçou a vida, outra é o desfrutar da graça, e é aí que entra Hebreus. Trata-se do encurtamento da graça, passada pela peneira da raiz de amargura, como segue no texto, filtrada pela seriedade de vida, desejada na venda da herança genética, conhecida como primogenitura, por Esaú e que por não ver o futuro, se acabou em choro, derramou lágrimas, mas a história já havia sido escrita e foi como se ele, Esaú, tivesse tocado as trevas e a tempestade, e a linguagem de Hebreus segue misturada com outro evento, para que os críticos literários possam afirmar a ausência de algum texto, de alguma coisa qualquer, e a teologia assim migra para os detalhes da literalidade para então se esquecer da graça encurtada por Esaú e a dor de não ter nela se lambuzado por inteiro. A explicação estaria na vida e no futuro.

Eu sei que o texto parece simples demais. E é. Porque a graça, na sua beleza, perdão e inclusão, tem que ser sorvida até onde se consegue, para depois ir mais além, e é como o horizonte sempre chegando, e mais caminhada. Vida plena, diria Jesus. Leveza na jornada, apesar do nada, da ausência e injustiça. Aí você não entende se há ou não limites, e fica dando voltas na incompreensão da livre-vontade sem nunca saber onde começa e termina a graça, pra descobrir que terminar e começar são metáforas do que não tem nem início nem fim. E o que é ilimitado se encontra com o drama humano e o convida ao descanso, por mais alienador que isso possa parecer; ao refrigério da libertação profunda, por mais idealista que possa ser concebido; a uma vida de presença do sagrado e sua companhia, por mais improvável que possa se dar. E a amargura que faz sofrer, diria o autor aos Hebreus, sonha com o sofrimento e retribuição do mal ao outro, e a graça sofre porque o desejo de fazer sofrer é por si muito sofrimento, e a raiz de amargura vai abrindo e rasgando o coração e se firmando, ferindo, e daí você perde a conta de quem de fato sofre mais, se o outro, se o um. Sofre a graça que não se cansa de perdoar e ensinar o acolhimento; volta à esquecida retribuição do bem pelo mal, ao depositar nela, graça, o futuro mesmo que no presente faça mais sentido um prato de lentilhas. É que a falta de significado e compreensão fazem parte da exacerbação da graça, é seu conteúdo, seu mistério, imensidão e exagero.

Teologia nenhuma explica isso.


Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 2 de abril de 2015

RESSURREIÇÃO E RECRIAÇÃO

“É verdade, este era o Filho de Deus.” Mateus 27.54c

Ao debater com os fariseus, na saída do templo, Jesus olhou e apontou: Não ficará pedra sobre pedra. Não era pouca coisa. Lugar santo, mais que aquele, impossível. Tão santo que a cidade eterna, ao invés de ser Roma, seria Jerusalém. Na Cidade Santa, havia o Santo Templo, lugar único e exclusivo. Deus ali era concebido como o guardião, e  aquela religião, como toda religião que se esquece da vida e das pessoas, simbolizada pelo lugar exclusivo do sagrado, como posse da geografia e da cultura, monolítica como pedra, vaidosa, de opulência imbatível, milenar, organizada, e que tinha um discurso sobre Deus que parecia insuperável, seria conquistada pelos campos da mensagem dos lírios, dos pardais, de filhos que retornam para casa, dos cegos abandonados, prostitutas a serem apedrejadas, endemoninhados frequentadores de sinagogas, viúvas sem nome; seria invadida pelas metáforas de moedas perdidas, de árvores onde cabe todo mundo, de tesouro que pode estar em qualquer canto,  e muita palavra lançada no espaço do cotidiano, à beira mar, pelo caminho, pelo caminho de novo, no meio da tempestade, no monte à multidão, outra vez no monte e na solidão, e Deus do lado de fora do Templo.

Deus no Norte da Palestina? O que é que havia lá? Nada, diziam os de Jerusalém, Deus não poderia vir de lá, como se tivesse vindo das províncias, ou de Temã, como diria Habacuque; seria humano demais. Deus não poderia estar lá, não entre os gadarenos da vida, endemoninhados e tomados pelo mal; e como explicar Deus libertando gente e dando aos porcos o privilégio de hospedarem os demônios, e estes sendo despejados de sua morada porque lá não era o lugar deles? E foi porco caindo pelo precipício no incompreensível e inexplicável suicídio, só para dizer que o mal, nem nos desprezados porcos da religião judaica, merecia viver. Só que o Templo não entendia disso, entendia de requinte, roupas de sacerdotes, regras pra se fazer isso, regras pra se fazer aquilo, até aqui você entra, depois daqui não, e se quiser colocar moedas do lado de fora, na entrada, senhora viúva pode colocar, mas fica aí, não passa daqui, porque o Templo só entende de Templo, é o lugar do requinte, do fino do fino, gente polida, doutores, letrados, mestres e mais doutores, estudiosos das leis divinas, das quais o ser humano só faz parte como expectador e vítima, e Jesus olhou e disse: Isso tudo vai acabar, e não demora muito. Não demorou mesmo. Com a destruição, Deus foi libertado daquela religião, pra depois ser aprisionado de novo, mas pelo menos por aquele momento ganhou as fronteiras do mundo, para todas as etnias e culturas, coisa que a gente ainda não entendeu direito.

Então, naqueles dias, veio um novo caos, como o havido antes da narrativa do Gênesis. Diz o texto que “houve trevas” (Mateus 27.45) e isso ao meio dia. Trata-se do inverso do “haja luz”, o primeiro ato de criação que fez surgir do nada, o tudo. Antes não havia luz, não se podia nem saber o que seria luz, e tudo foi então feito do nada. Na crucificação um “haja luz” ao contrário: “haja trevas”, para depois tudo começar de novo. E os sepulcros se abriram, os corpos dos santos saíram; possivelmente os mesmos santos que tinham sido vitimados pela ignorância, só para mostrar que a vida agora brotava da terra, literalmente, mesma terra da criação de Adão, e a morte ficou confusa, o que estava morto não estava mais, o dia virou um breu, e um terremoto tomou conta das estruturas porque o novo caos estava instalado. O terremoto moveu o lugar, o espaço onde a vida é sustentada, e é como se fosse o ajuntamento das águas quando do surgimento dos mares, lá no início do início.

Morria e nascia a vida, reinventada e ressuscitada para ser eterna, no caminho do perdão, da esperança, solidariedade e fraternidade.


Natanael Gabriel da Silva