domingo, 30 de dezembro de 2012

O MILAGRE VISTO PELO LADO DE DENTRO

“Disse o Senhor a Moisés: Porque clamas a mim? Dize ao povo de Israel que marchem.” – Êxodo 14.15
 
Apenas para se ter uma idéia: a travessia do Mar Vermelho para o antigo Israel é semelhante à ressurreição de Jesus aos cristãos. Na travessia, o Mar era uma barreira que impedia o retorno, só dava pra ir em frente. É como o tempo, não dá pra voltar. 

O texto é rico em imagens da tragédia. Milagre de salvamento e morte, paredes de águas e a promessa de que haveria um outro lado. Lado da frente, não lado do lado, porque o futuro se abria no comando do cajado, tocando a água e a cortando como se fosse queijo, macia, consistente-mole e era só caminhar pra outra margem. Esta também era misteriosa, pouco ou nada se sabia dela, mas jornada é jornada, a gente começa e vai sem saber. A expressão “Porque clamas a mim?” pode parecer uma cobrança, inquietação e até mesmo dura repreensão, mas pode ser também uma presença, não precisa clamar que Eu estou aqui, onde sempre estive e estarei. Pode ser um “Vou com vocês, como sempre, e a travessia do Mar, de certo modo, será minha também. Moisés! Coloque o povo pra caminhar que eu vou junto!” Acho que foi isso. Oração diferente. Uma oração que não precisava de oração, um estar desde sempre e um vamos atravessar juntos como declaração de pastoreio e presença. 

O marchar era para o outro lado e também para o depois, caminhar por sobre e dentro do milagre. O mar abriu e o povo passou por dentro dele, todo mundo caminhando pelo meio do milagre. Milagre grande é assim, faz a gente ficar dentro dele, imerso, por dentro e para frente. Pra você e para mim que estamos acostumados com o milagre no coração,subjetivo, que já é imenso, não entendemos o milagre acontecendo pelos lados, nas muralhas de águas, por debaixo, nos pés secos e por cima, na brisa que sustenta o milagre e a gente passando por dentro dele como se fosse um túnel.  E vamos, que vamos, vocês comigo e Eu com vocês! 

Acho que não tem jeito da gente caminhar pro futuro sem andar no milagre como se fosse túnel. Quando o deserto chegar, e vai chegar, a gente vê o que Deus vai fazer, se vai mandar ou não chuva de pão ou de carne, se vai haver oásis ou coisa parecida. Tudo isso, separado ou somado, é o de menos. Deus cuida. Importa hoje botar o pé no túnel e marchar. Vai ter sempre um cajado abrindo caminho, vento misterioso aparecendo de uma hora para outra, e você caminhando dentro do milagre protegido/a e amado/a, sem entender e também sem esperar. Milagre repentino, inusitado, nunca antes havido, feito portal para o futuro e o novo tempo à espera, do outro lado. 

Feliz 2013.
 
pr. Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

O MAL INSTITUCIONALIZADO



“E como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que dentre vós está sem pecado, seja o primeiro que atire pedra contra ela.” – João 8.7

Quando Jesus dialogava com uma pessoa, individualmente considerada, em situação de miséria e pecado, sempre a tratava com profunda dignidade e respeito. Por outro lado, quando se deparava com o pecado instituído e defendido pelo sistema religioso formal, tratava os interlocutores como hipócritas e demonstrava nítida repulsa, porque para ele, nada mais deprimente que uma comunidade que instaura, coletivamente, o mal.

O texto de João nos mostra isto. Os justiceiros, de pedras na mão, se apresentaram ali como religião constituída. Democraticamente haviam julgado a adúltera e, fundamentados no que havia de mais claro e nobre, sem qualquer sombra de dúvida, sentenciaram a infeliz à morte e se tornaram, em nome de Deus, defensores da moralidade e da pureza. Estavam ali adúlteros, roubadores, usurpadores e politiqueiros das coisas religiosas, porque não desejavam qualquer justiça a não ser agredir Jesus. Utilizavam assim o mecanismo da purificação com o objetivo de alcançar Jesus. Não só decidiram por impulso, mas insistiram, confirmaram o desejo e decisão. Quem sabe se naquele dia não seria o grande prêmio? Dois numa ação: Jesus, principal alvo e, de quebra, o apedrejamento de uma adúltera imoral em prol da santidade e pureza! Não tinha como dar errado, mas deu, porque o olhar para o mundo interior revela monstros e misérias escondidas, não assumidas, mas que corroem sem consumir.

O texto iria ensinar, mais tarde, que o responsável pela santidade da Igreja não são os seus adeptos, mas o próprio Jesus. Foi ele quem morreu pela Igreja para que esta se apresentasse sem mácula nem ruga. Não são os participantes da comunidade institucionalizada que têm poder e capacidade, por banimento ou preconceito, de efetivar o que compete à espiritualidade profunda. Pecadores não podem banir pecadores. E a esquizofrenia do protestantismo histórico e tradicional reconhece que, banir uma pessoa do grupo religioso, não significa excluí-la do Reino de Deus. Com outras palavras, você pode fazer parte do Reino de Deus, porque lá a graça aceita tudo, mas não pode fazer parte desta comunidade específica, porque aqui somos exigentes e zelamos pela pureza. Continue no Reino. Vamos orar por você, mas não aqui. Somos impuros, mas você é extremamente impuro, muito impuro mesmo, e não pode caminhar conosco. Quando for menos impuro, retorne humilhado, talvez seja possível recebê-lo/a de volta.

Pureza? Seletiva, é claro; de quem se apresenta para jogar a pedra e esconde o adultério, pessoal ou de alguém protegido pela família, empurrado pra debaixo do tapete. A uma comunidade assim Jesus chamou-a de hipócrita. Isso porque a malignidade nessa forma de segregação está no fato de ser consciente, discutida, aprovada e executa com os requintes do abandono e da prepotência. É o mal apoiado, votado e registrado em Ata, como se Deus fosse leitor de texto e não de coração e intenções.

Jesus não desejou fazer parte de uma comunidade assim. Sigo sua orientação e decepção: eu também não. Se você perguntar a alguém: - Se tivesse que escolher, qual personagem gostaria de ser no episódio de João 8? A resposta, depois de meio segundo de reflexão, com certeza será: - A mulher adúltera, sem dúvida. Isso porque a hipocrisia é pior que o adultério, e a homologação do mal coletivo é mais asqueroso que qualquer pecado que tenha como sentença a morte. Se você pensou que gostaria de ser Jesus, não se preocupe, o querer ser Deus faz parte do imaginário popular.

Em João 8 quem iria morrer, viveu. Os que se achavam vivos, com decisão e Ata votada de sentença de morte, voltaram mortos para casa, carregando as vidas miseráveis.

Aquela mulher não era uma excluída. Era uma privilegiada. Não pelo que cometera, mas pelo perdão e liberação dados pessoalmente por Jesus. Só ela ouviu “o eu também não te condeno”, volte para casa, liberte-se da punição e redirecione a sua vida, porque graça é perdão ilimitado, oportunidade e inclusão.

pr. Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

OS PASTORES DE LUCAS



“Ora havia naquela mesma comarca pastores que estavam no campo, guardavam durante as vigílias da noite o seu rebanho.” – Lucas 2.8

(a propósito da meditação que proferi ontem à noite, Igreja Batista em Barão Geraldo, Campinas)

Não é preciso ser meticuloso para descobrir que apenas Lucas teve o cuidado de mencionar os pastores, o rebanho e a noite. Mateus vai pelo viés institucional, pelo caminho de Herodes, o rei, também dos magos que possivelmente faziam parte de alguma nobreza oriental, em razão dos presentes e até mesmo da viagem, e ainda dos príncipes dos sacerdotes e escribas, todos juntos, de uma só vez, num colóquio irônico que vale ser lido mais pela história que pelas virtudes, excluindo os magos, é claro. Marcos, preocupado com a maioridade e ministério de Jesus, sequer fez referência ao seu nascimento. João apresenta Jesus como “logos” e vida, cuja complexidade merece atenção específica, mas que também não é biográfico.

Lucas preocupa-se com aqueles que não têm importância (veja "Espera e Esperança: Lucas 2:22-40", clademilsonpaulino.blogspot.com.br, 18 de dezembro de 2012), e isto inclui os pastores. Diferente de Mateus, sem manjedoura, mas com a estrela, que lembra mais a promessa feita a Abraão de Gênesis 15 do que o próprio nascimento de Jesus, Lucas se dá embevecido na celebração e simplicidade com os seus pastores, pessoas simples e cuidadoras, aos quais é dado o anúncio: “Porque nasceu hoje o nosso Salvador, o Cristo, o Senhor, na cidade de David”. E “cidade de Davi” fica mesmo pro final no texto original, porque era a informação menos importante, comparada ao Salvador, Cristo e Senhor. Tudo isso anunciado pelos anjos, não pelo sistema formal e político, porque a Igreja desde o início não está nas estruturas, mas nas pessoas, não está no comando, mas no povo, literalmente laós (...será para todo o povo”, Lucas 2.10), laicato, gente comum e que carecia de amor e da presença de Deus.

Os pastores de Lucas apontam na direção do nascimento de uma comunidade que deveria marcar a existência humana pelo pastoreio, amor ao próximo, afetividade, respeito à dignidade humana e em favor do perdão e da inclusão. Lucas iria escrever sobre isso, o tempo todo e em todo o tempo. Uma comunidade de amor superlativo, portadora de um incansável compadecimento humano e se desse num mundo em frangalhos, como abrigo e agasalho de pródigos, quando estes retornam para casa, independente do que tenham feito ou abraçado, porque a pessoa será sempre mais importante que seu pecado, e o amor mais abrangente e perdoador, superando de sobra a punição ou exclusão.

Uma comunidade de pastoreio vai além das reuniões de adoração, calendário de atividades e estudos repetitivos de confirmação da fé e que flutuam tão somente no âmbito do discurso; é mais do que um sistema político da comunidade que deseja ser tida como se fosse forma e expressão do Reino. Não é. Se for segregadora, desumana e manipuladora, sequer saberá o sentido de ser Igreja, mesmo que tenha esta palavra como indicação no nome. Uma comunidade pastora não se satisfaz com descortinamento dos detalhes de interpretação textual, mas se dá na simplicidade e nos conflitos da vida, quase impossível de se compreender por aquele que não desenvolveu os instrumentos que facilitam o amor e o amor. Herodes e os freqüentadores do colóquio do poder jamais poderiam compreender o privilégio dado aos pastores na noite mediante a perfeita celebração dos anjos que abriram a cantata do exército celestial que, cercados pela glória do Senhor, fizeram o anúncio do nascimento de Jesus na manjedoura. Cercados mesmo, literalmente colocados num círculo, sem saída, envolvidos pela manifestação não esperada, que nunca tinham almejado, mas se tornaram partícipes da profecia pastoral da presença do menino pastor no mundo. E tinha que ter sido à noite, para que o silêncio realçasse o resplendor e a glorificação fosse purificada pela calmaria.

Lucas ensina desde o início que a motivação do nascimento de Jesus foi o pastoreio. Deste modo, uma comunidade cristã, ou uma Igreja-Pastora, é o socorro, a preocupação com os excluídos, o respeito à dignidade humana e a imensidão de um perdão sem limite. E isso é o Natal.

pr. Natanael Gabriel da Silva

domingo, 23 de dezembro de 2012

E O CEIFEIRO SAIU PARA CEIFAR

  
“E ele lhes disse: Um inimigo é quem fez isso. E os servos lhe disseram: Quereis pois que vamos arrancá-lo? Porém ele lhes disse: Não, para que ao colher o joio não arranqueis também o trigo com ele.” – Mateus 13.29,30 

Daí o ceifeiro saiu a ceifar. Afiou a ferramenta, muniu-se da própria justiça, porque quem ceifa se acha senhor e tutor do ceifado, tem sobre ele o poder de tirá-lo ou não, dar-lhe um dia a mais de vida, ou não, permitir que viva até o tempo determinado, ou não, porque o ceifeiro é dono dos valores, acha-se a si mesmo plenipotenciário a ponto de, ele mesmo, jamais ser ceifado. Dono da vida e morte, tem as chaves do Reino e é capaz de determinar, por observação e vocação, quem pertence ou não aos céus. 

O ceifeiro havia faltado à aula do amai-vos uns aos outros como eu vos amei. Ficara com preguiça, dormira até mais tarde, ou simplesmente pensava na vida, sem lenço e sem documento, num domingo de quase dezembro, imaginando a coca-cola ou o casamento e jamais iria se lembrar do vós sereis meus discípulos/amigos se vos amardes uns aos outros. Vagamente irá se lembrar, de tanto ser repetido, que há dois mandamentos supremos e significativos que superam qualquer religião, ritual ou moralidade: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. É que o ceifeiro, como todo e qualquer ceifeiro, utiliza duas pontas: para os amigos, amor; para os inimigos, a lei. Nisso se dá bem, porque tem as duas caras da sobrevivência, por um lado convive com toda a maleabilidade com os amigos e, quem o acusará de ser injusto? Aos amigos, perdão. Aos inimigos, justiça. Aos amigos, compreensão. Aos inimigos, separação por conta da pureza e da santidade. Daí o ceifeiro é um politiqueiro, perdoa quem quer, quando interessa, pune quem quer, quando isso lhe dá o prestígio de ser puro e lutar pela santidade do Reino e dos objetivos mais nobres do Evangelho. 

O ceifeiro é um beligerante. Sai a campo, a titulo de defender a sã doutrina, e se dá como um atirador de alvo certo. É um desumano em nome do amor, e um plantador de desavenças. Num dado momento acha que o que falta no mundo mesmo é o amor, porque ele mesmo não sabe onde este se encontra. Belchior, sobre a chegada de Cristovão Colombo à América, diz que ele: “Trazia em vão Cristo no nome, e em nome dele o canhão”. Cristovão, ao contrário, é vão Cristo; beligerante, atirador, portador do canhão que explode todo mundo pra limpar o caminho. É um ceifeiro que saiu para separar uns e outros e que estava cansado quando Jesus lavou os pés dos discípulos.

Uns saem pra semear: e eis que o semeador saiu pra semear. Oferecem a contribuição da vida e esparramam amor como quem joga sementes em todos os lugares, no caminho do vento, sem escolher coração ou solo. Outros assumem a autoridade do domínio da ceifa e saem cortando e arrancando o que encontram pela frente, protegem os amigos, e se dão no campo de batalha do lado errado. Por um lado, têm o poder, capacidade e coragem pra fazer isso. Por outro desconhecem o sentido da palavra amor em relação aos outros, mas também para si mesmos. O ceifeiro é um infeliz que não sabe que amor e Cristo têm o mesmo significado; ao perder-se um, perde-se o outro. E não há experiência subjetiva e mão levantada que resolva isso.

pr. Natanael Gabriel da Silva

sábado, 15 de dezembro de 2012

O "EU SOU" BASTA!


“Porém ele lhes disse: Sou eu, não temais” – João 6.20

 Pra João, o “Eu sou” basta.

Eu sei que o Evangelho de João pode ser considerado o livro dos sinais. Também sei dos longos discursos enigmáticos de Jesus, mas sei também da presença marcante deste neste Evangelho, não como aquele que atendeu os excluídos (Lucas), nem apenas como aquele que reformulou e reescreveu a lei e a história sagrada (Mateus), ou ainda como aquele que se apresentou como um servo obediente (Marcos), mas principalmente, e prioritariamente, em razão do “Eu sou”.

“Eu sou a luz do mundo”, está em João. “Eu sou o bom pastor”, também. “Eu sou a porta das ovelhas”, “eu sou o pão da vida”, “eu sou o pão vivo que desceu do céu”, “eu o sou, eu que falo contigo”, “se não crerdes que Eu Sou, morrereis nos vossos pecados”, “antes que Abraão existisse, Eu Sou”, “eu sou a ressurreição e a vida”, “vós me chamais o Mestre e o Senhor e dizeis bem; porque eu o sou”, “desde já vos digo, antes que aconteça, para que, quando acontecer, creiais que Eu Sou”, “eu sou o caminho, e a verdade, e a vida”, “eu sou a videira verdadeira”, tudo isso está no Evangelho de João. E quando Jesus recebeu uma identidade imposta, fora do eu sou, foi um desastre: “Os principais sacerdotes diziam a Pilatos: Não escrevas: Rei dos judeus, e sim que ele disse: Sou rei dos judeus”. Daí o “eu sou” foi ironizado, pervertido, transformado na anedota histórica do rei nu morrendo dependurado sob o desejo e ação de seus súditos. Anedota que não teve graça. Só que o “eu sou” continuou sendo, porque tem coisa que faz o ser humano rir, mas o “eu sou” sofrer.

O “eu sou” basta, porque só ele tem a capacidade se dar ao divino a condição do humano, e ao humano a profundidade para se encontrar com o sentido da vida. O “eu sou” é resposta e pergunta, conteúdo sem conteúdo porque não é possível de se saber o tamanho do “eu sou”, tem a divindade no seu mistério profundo, mas tem também a simplicidade de quem se entrega e nos ensina que a vida é possível sob o manto da humildade e do amor. O “eu sou” vem desde o Sinai, na história. Também vem do divino mais divino e se dá como o humano mais humano. Tem a dimensão da criação, mas tem também o caminhar com o que foi criado, no mesmo espaço, tempo e sofrimento.

O “eu sou” basta. Ele diz na madrugada do vento: "não temais".

Pr. Natanael Gabriel da Silva

 

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O TEXTO E O AFETO


“As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos; porque as suas misericórdias não têm fim.” – Lamentações 3.22

Tenho uma leitura afetiva deste texto, não apenas compreensão, e sem analisá-lo na estrutura exegética, algo dele já ficou em mim como memória de aproximação, logo no primeiro instante. Isto acontece antes que eu pense nos seus termos, antes de refletir quem consome quem (andei lendo muito o Pierce). Parece que as misericórdias nos livram de nos consumirmos, uns contra os outros, mas isso ainda é secundário. Quando penso nisso, o texto já fez o seu efeito e só posso conversar com ele porque uma virtude dele abriu as portas da comunicação e me tornou como aquele que foi tocado incondicionalmente. Nesse caso, concordo com Tillich.

O texto não é apenas texto e não serve tão somente para a reflexão entre o certo e o errado. Eu sei que é difícil a nossa compreensão a respeito disso e é também nessa mesma direção que o mundo cristão tem dificuldade de compreender o mesmo afeto que os muçulmanos se dão diante de suas Escrituras Sagradas, ou do judaísmo pela Torá. Os que fazem parte do último são colocados pelos cristãos na condição darwinista de subordinação religiosa: evoluímos deles e são, portanto, complementos culturais. Os primeiros são oposição, nossos adversários. Assim apenas o cristão se dá, equivocadamente, o direito de sorver as próprias Escrituras Sagradas com o sabor do sobrenatural, da misericórdia e da benevolência. Outras religiões, não textuais, são místicas demais para o nosso racionalismo, e ficam de fora por conta de ausência de conteúdo que possa ser compreendido por meio de exegese e doutrina. Enfim, somos os únicos e podemos fazer o que bem entendemos: racionalidade a gosto, e fuga dela, também a gosto.

O texto vai além do texto, porque não é apenas texto, se dá como aproximação afetiva e de suporte para valores e sonhos. É significativo demais, porque representa demais. Não pode ser reduzido a um código de regras e normas, do histórico politicamente correto ou da sustentação da estrutura religiosa válida e única como porta de saída, ou entrada, à existência humana. Ele é “o” texto para mim, o que não exclui os outros. Ele fala, comove, faz ver, encoraja, orienta o sentido da vida, faz refletir, chorar, sentir, amar, abre os horizontes da sensibilidade em favor do próximo, faz desejar a justiça, lamentar o descaminho e a desumanidade, abre o túnel da esperança e me ensina a ver os lírios dos campos como exemplo de realeza e simplicidade.

O texto é belo, não por determinar o certo ou o errado; é belo porque vai além dele e dialoga comigo na condição de pessoa, tem som e melodia. E quando leio que as misericórdias do Senhor não têm fim, não entendo direito o que significa, só sei que é mais do diz, embora também não possa dizer o quanto.

Pastor Natanael Gabriel da Silva
 

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

ENTRE A REDENÇÃO E A VINGANÇA


“E naquele tempo se levantará Miguel, o grande príncipe, que se levanta pelos filhos do teu povo, e haverá um tempo de angústia, qual nunca houve, desde que houve nação até àquele tempo; mas naquele tempo livrar-se-á o teu povo, todo aquele que se achar escrito no livro.” Daniel 12.1

A linguagem apocalíptica padece desse drama: você nunca consegue identificar se a promessa é de restauração ou se expectativa de vingança; um pouco de cada, os dois juntos e, em algum momento, um mais que o outro.

Tanto a figura enigmática de Miguel em Daniel, quanto as celestiais do Apocalipse, são discursos de forças que extrapolam a existência humana. Estão além  até mesmo das forças da natureza. A natureza, por si só, já é se impõe sem controle. Imagine algo além. É a cidade eterna, semelhante a Roma, mas muito mais nobre que esta. Se Roma tinha a Via Ápia, as ruas do céu serão de ouro; se em Roma havia o Senado, o céu será guardado por anciãos; se Roma tinha um Imperador, no céu nem se fala. Só que o céu, diferente de Roma, está além da conquista. Os soldados romanos jamais conquistariam o céu, que iria, literalmente, despencar sobre eles. Daí as bem-aventuranças mencionando que o Reino de Deus (ou dos céus) se conquista de outro modo. Nas bem-aventuranças não está presente, nem de longe, qualquer desejo de vingança ou de superação por meio do conflito e da beligerância. Situa-se no campo das promessas.

Agora, quando você se depara com o orgulho cristão que remete, com sabor de vitória, um ateu confesso à perdição eterna, isso não é promessa, mas vingança. Desumano, nojento, impróprio, coisa pequena demais, religiosidade tribal e primitiva. Uma verdadeira expressão de desrespeito e um anticristianismo. Não tem nada a ver com a linguagem apocalíptica, escrito em tempo de perseguição e morte, e que precisa ser lido como um sonho e resposta dos cristãos em razão do sofrimento.

Um viver pela Graça, Graça mesmo, no seu sentido maiúsculo, por outro lado, vê o céu como promessa de redenção, apenas redenção. Não como um lugar de justiça, na perspectiva da vingança, mas do recebimento do amor eterno e da vivência de uma plenitude na presença de Deus. É uma Graça que sofre, e só ela pode compreender o clamor de Jesus diante de Jerusalém: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir teus filhos como a galinha ajunta os do seu próprio ninho debaixo das asas, e vós não o quisestes!” (Lucas 13.34).

Pr. Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

AS TREVAS COMO HABITAÇÃO DE DEUS


 
“Então, disse Salomão: O Senhor tem dito que habitaria nas trevas. E eu tenho edificado uma casa para morada e um lugar para a tua eterna habitação.” 2 Crônicas 6.1,2

Acho que naquele dia Salomão sentiu-se como aquele que estava salvando Deus da imensidão. Um Deus desabrigado, morador no indefinido, carente de aparição e adoração e que precisava encontrar um lugar pra reclinar a cabeça. Se Salomão fosse Deus, teria ficado feliz com a nova casa, cheia de beleza, grandiosidade, gente e rituais; roupas específicas para as solenidades e um lugar pra Salomão mostrar aos povos vizinhos a sua nova propaganda de guerra.

Não sei se Salomão conseguiu tirar Deus das trevas. As trevas são o enigma do que não pode ser visto. Não se pode falar, nas trevas, nem de espaço, porque o seu tamanho é o ocultamento e o ilimitado. Nelas é impossível ver o rosto e ter noção de quem nela se oculta. Mistério Absoluto, como diria Rahner. Não é um mistério que um dia estará disponível para análise e observação. É um Mistério sem solução, sem possibilidade de ser desvendado, compreendido em sua totalidade ou experimentado em toda inteireza. Apenas Mistério, absolutamente mistério, revelado, primeiramente, por um nome. Nome que não foi escrito na antiga cultura judaica; só por meio consoantes que ninguém sabe dizer qual é a pronúncia correta. Um inominável. Nome contrabandeado da cultura grega pelos escritos do Novo Testamento a partir da causa não causada de Aristóteles, do motor imóvel, que pode ser aportuguesado por theós, e daí começou o entrelaçamento da filosofia com a teologia, e também ninguém sabe onde começa uma e termina a outra.

Por tudo isso, e além disso, Salomão decidiu tirar Deus das trevas e fez um lugar que já não existe mais. Daí Deus voltou às trevas, e não há lugar mais próprio, imenso e desconhecido que as trevas do coração humano. Dizer que Deus é trevas e luz, ao mesmo tempo, significa que uma e outra são as mesmas coisas. Deus continua desconhecido no interior do desconhecimento humano sobre si mesmo, e isso é que O torna importante. Ele continua Mistério, no interior do nosso próprio mistério, para nos dar um sentido de vida. Diferente de Salomão quando Deus é salvo das trevas, no nosso coração, é Ele que nos salva do desconhecido. Não precisa ser visto, basta a presença dEle.

Pr. Natanael Gabriel da Silva