“E não ensinará alguém mais a seu
próximo, nem alguém, a seu irmão, dizendo: Conhecei ao SENHOR; porque todos me
conhecerão, desde o menor deles até ao maior, diz o SENHOR; porque perdoarei a
sua maldade e nunca mais me lembrarei dos seus pecados.” Jeremias 31.34
Liberal sim e por uma razão muito simples: Jeremias
propunha um despertar do sagrado que fosse além dos conceitos. Estes, esgotados
como determinação de conduta por meio dos ritos e da Lei, mostraram-se
insuficientes e ineficientes. Liberdade, anunciava o profeta, de tal modo que
permitisse uma radical libertação.
Radical e no plural. E foram muitas as liberdades
anunciadas e esperadas. A primeira, clara no texto, seria a libertação do
sofrimento causado pelo que, genericamente, o profeta chama de maldade e
pecado. A segunda, a libertação do ensino, do conteúdo, do que é passado e
fornecido como correto, e que vem no enigmático “e não ensinará alguém mais a
seu próximo”. Trata-se do conhecer sem o aprender, porque este já supõe o
domínio do conhecido por parte de alguém que ensina. A terceira libertação, em
decorrência da anterior, seria a insubmissão ao modelo imposto pelos
dominadores da religião. Ou seja, na segunda, está a libertação do conteúdo, ou
do que é/deveria ser, e na terceira está a libertação do poder que ensina e
estabelece a verdade. E quem foi que disse que o poder tem a voz da
verdade? Jeremias olhou toda aquela religião organizada, bem assentada nos
princípios, sistematizada, e fez uma pergunta fundamentada na vivência, algo
como um não tem nada além disso? Além, ou aquém, estava a profundidade que move
a existência.
Na trilha dos estudiosos da profundidade da alma, Jeremias
já suspeitava, ou afirmava, que o ser humano não se limita ao que conhece, e
que tem uma forma de “conhecimento” antes do conhecimento, e a ética não
depende apenas do saber o conteúdo, mas tem a sua percepção para além do que
pode ser aprendido e ensinado. O ensinado vem depois, e quando aparece, já está
pensado e interpretado. E o pensado e interpretado, no tempo de Jeremias, tinha
seu acabamento na insuficiência dos ritos e da Lei. Tinha que exceder a justiça
dos escribas e fariseus, diria Jesus muito tempo depois. E o exceder é a
libertação da clausura da hermenêutica de cabresto. Libertando-se dos
conceitos, liberta-se também dos que têm o domínio da interpretação.
Então Jeremias por intuição (já que não era filósofo), e se
opondo aos frangalhos da religião oficial que o perseguia (já que era profeta),
declarou os limites da lei quanto ao ensino, colocou a esperança como
integrante e pertencente aos desejos sublimes da interioridade humana, e ainda
descartou os mestres, senhores do comando, os mandantes das determinações, das
regras e dos ritos, afirmando que aqueles já não seriam mais proprietários do
sagrado. E conclui com uma socialização do imaginário religioso, pois
pertencerá a todos, indistintamente todos, dos pequenos aos grandes, e colocou
assim na ordem crescente, porque a ordem dos fatores aqui, altera o produto.
Começa com os considerados sem importância, e estes irão ensinar os mais
velhos, desde baixo (para não ser ideológico), e desde o interior da alma (para
haver pureza). A purificação fará a pureza, e será o pertencimento antes da
doutrina, ou do dogma. É o presente da limpeza, como dádiva e que vem do
profundo da alma. A purificação, assim, vem antes do purificado saber o que
seria purificação, vai limpando a causa o banindo a maldade e o pecado.
O profeta, desacreditando em templos, rituais e homilias,
procurou encontrar o impulso para a espiritualidade desde dentro, desde o
profundo. Liberdade dada e tida como um emergir, sem ensino, sem rituais, sem o
domínio da Lei, sem sacerdotes, e até sem intérpretes; liberdade no sentido
mais amplo possível. Só essa liberdade gera libertação. Jesus a chamaria de
Graça, algo que até hoje a cristandade ainda tenta compreender o que significa,
e por falta de compreensão procura colocar nela determinados limites, e quando
o faz, a Graça deixa de ser Graça.
Um profeta liberal, e quem não é?
Natanael Gabriel da Silva