sábado, 22 de outubro de 2011

PÃO PRA TODO MUNDO

“E todos comeram e se saciaram; e levantaram, do que sobejou, sete cestos cheios de pedaços.” – Mateus 15.37

O narrador colocou a multiplicação dos pães e peixes, depois da narrativa da estada de Jesus nas regiões de Tiro e Sidon. Ele tinha ido pra lá pra acudir uma mulher aflita. Sozinha, sem saber o que fazer com a filha, lançou-se aos pés de Jesus, mesmo com todas as restrições e preconceitos que os judeus tinham para com aquele povo. Assim Jesus foi lá, curou a menina e depois voltou. Não foi fácil pra mulher, pois eram doze homens feitos guarda-costas a impedi-la: Despede-a, que vem gritando atrás de nós – disseram eles. Protetores proprietários de Jesus, quando deveriam ser aprendizes. Será que mudou? É claro que Jesus não lhes deu atenção, cuidou da mulher que voltou para casa feliz da vida.

Depois foi Jesus multiplicar os pães, rodeado de pessoas que o acompanhavam por três dias e estavam famintas: Pra todo mundo tem pão. Tem vida e pão também. Sem barreiras, divisas ou fronteiras. Jesus atravessou a linha do impedimento e foi seguido por seus guarda-costas que não sabiam direito o que era evangelizar ou socorrer o aflito. Já percebeu que Jesus nunca deu dinheiro pra ninguém? Também já verificou que todos quantos o procuraram sempre tiveram mais do que pediram? Bastava não ser egoísta como o jovem rico que esperava tudo e mais um pouco, mas não queria abrir mão de nada. Tem situação que não tem jeito, mas sete pães e alguns peixes pra uma multidão comer foi fácil. Dizer pra mulher que a filha estava curada também foi. Curar tanta gente de tanta coisa, pessoas miseráveis e sem rumo, também foi fácil. Tão fácil que o narrador escreve como coisa normal, e se você não tomar cuidado, passa por cima do texto e cai logo na multiplicação dos pães. Agora, o difícil foi os apóstolos aceitarem isso. Eles tinham olhado pra mulher e não viram uma pessoa. Viram as regras, o preconceito e as dificuldades, uma desvairada, descabelada e desequilibrada. Jesus teve outra visão. Pra Jesus a mulher era alguém que precisava ser amada e socorrida. Depois olharam e não enxergaram outra coisa senão apenas deserto. Jesus não viu o deserto. Viu pessoas sentadas em grupos: comendo, repetindo e sobrando. Quando Jesus recebeu os poucos pães e peixes, viu uma quantidade suficiente pra alimentar um batalhão, e o pão não estava no deserto como pensavam os apóstolos, estava ali, e só Jesus viu isso. A questão não era a paisagem, mas o modo de se ver o mundo, e cada um o vê conforme o que tem dentro. A banalização da miséria, tanto para os miseráveis que veem nela um modo de vida, quanto aos demais, tem gerado um efeito anestésico: as pessoas não são vistas, e ninguém consegue ver o outro, apenas a si mesmo como se olhasse num espelho. O miserável olha para quem não é e vê nele apenas o provedor, aquele que vai contribuir com os seus vícios, e na cabeça dele aquele tem obrigação de fazer isso. O que não é miserável olha de volta e vê tanta coisa no outro que não dá nem pra comentar.

De um modo ou de outro o ser humano não sabe quem é o outro. Pra Jesus tinha pão e vida pra todo mundo.  Talvez o nosso papel não seja o de querer multiplicar os pães: isso é coisa de Deus. Basta abrirmos o caminho para que os desvairados se encontrem com Jesus, ou organizar os grupos de famintos para que todos possam compartilhar do mesmo pão. Plantar esperança é isso.

pr. Natanael Gabriel da Silva

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

A ARTE DO TEXTO

“... e eis que eu estou convosco todos os dias, até à consumação dos séculos.” – Mateus 28.20b

Eu sei que você conhece este versículo. Mas ele é como uma obra de arte: quanto mais se olha, mais faz sentido. Não é um sentido de compreensão, mas de sentimento de pertencimento. Sei também que o texto de Mateus foi escrito em tempo de profunda guerra e injustiça contra os primeiros cristãos. “Tempos Difíceis”, como diria Charles Dickens. E Jesus declara isso para que a solidão fosse banida. Ele não prometia, necessariamente, a superação do sofrimento, porque sofrer faz parte da vida. Também não prometia intervir em toda e qualquer ocasião para libertar ou impedir que alguma coisa acontecesse; isso também não. Esse tipo de oração a construímos por egoísmo e nos demos com um conceito de “senhor serviçal”, isto é, Deus à nossa disposição. Achar que a promessa de Jesus foi uma procuração em branco pra se pedir e exigir o que quiser, é uma interpretação torta, própria do nosso tempo.

Jesus prometeu companhia. Eu sei que um zilhão de pessoas irá achar que isto é pouco, mas é porque a nossa sociedade valoriza mais as coisas que as pessoas. Daí entramos na era da tecnologia e as pessoas sofrem, e morrem, de solidão. O nosso século começou com o discurso da morte de Deus, passou pelas Grandes Guerras, as pequenas e centenas de outras, e chegamos ao mal do século chamado de “depressão” e muita solidão. De certo modo a tecnologia nos aproximou, mas também nos afastou. As redes sociais facilitaram a comunicação, mas para quem não constrói a história juntos o diálogo fica na apresentação: - “Olá, há quanto tempo!” E o outro, ou outra, responde: - “É verdade, e daí como vai? Vou bem e você? Vou bem também”. Fim da conversa. Não tem mais assunto. Depois a pessoa fica postando: “Estou cansado/a vou dormir” ou “Meu dia foi lindo”, e volta a falar de si no público da rede pra se enganar dizendo ter amigos.

O estar convosco de Jesus é amizade. “Pessoas precisam de pessoas e pessoas precisam de Deus”, slogan de uma igreja que tenta afugentar a malignidade do nosso século, a solidão. Agora sim, pode-se pensar que Jesus prometia afastar um tipo de sofrimento: a solidão. O milagre prometido é este: estarei convosco e juntos vamos atravessar a vida. Esta é a arte do texto e que o faz não ter fim. Pode ficar olhando pra ele e lendo um trilhão de vezes, será sempre novo, e cada vez fará mais sentido se Jesus for de fato o seu melhor amigo.

Pr. Natanael Gabriel da Silva

domingo, 16 de outubro de 2011

O PAI, A CASA E AS CRIANÇAS

“Pai nosso, que está nos céus!” – Mateus 6.9b
 
A oração de Jesus, que se tornou conhecida como o Pai Nosso, pode ser compreendida como um convite para o Pai vir morar em nossa casa. Uma espécie de parábola contada em forma de oração, porque só a oração daria conta do assunto. O Reino é a casa do céu, outra é a construída pelo ser humano após deixar o jardim. Lá em cima ficou a casa, separada e distante. Deus longe, grande e observador quanto ao punir e corrigir. Nisso causava temor, e não há nenhum pedido no Antigo Testamento para o Senhor vir morar aqui. De certo modo parece que seria melhor continuar onde estava e ser agradado por meio de sacrifícios e cultos. Na melhor das hipóteses entrava na vida só pela memória, narrativas e mais narrativas sobre os antigos. Daí Jesus suplica, venha o teu Reino: a casa do céu na nossa casa; precisamos do Pai. 

E o Pai quando vem pra nossa casa, traz o quê? Traz o domínio da vontade (v.10). É como se Jesus estivesse confessando o estado de abandono de uma casa governada por crianças que não sabem se cuidar. Não, não havia sido o Pai que tinha ido embora. Os filhos é que construíram uma casa longe do Pai e depois bateu a saudade de quando Ele passeava pelo paraíso. Paraíso formado agora por crianças nuas e escondidas detrás das árvores. Crianças que não sabem o que fazer com a nudez e não têm ideia da tragédia do abandono. O Pai precisava vir morar com as crianças. Esqueceram, de propósito, o Pai do lado de fora. Só que o Pai traz a organização da vida, e também o pão que estava faltando (v. 11); sacia a fome de algo que as crianças não sabiam, e não sabem, o que era ou é. Crianças são assim mesmo: passam fome sem saber direito o que precisam comer. Só que o pão do Pai, é o pão do Pai. O pão do Pai é diferente, só Ele o tem. Nenhum pão é igual ao do Pai, colocado todas as manhãs à mesa, como o maná.  

E o Pai só volta perdoando (v. 12), porque não tem jeito dEle voltar se não perdoar a desavença. Esta é a dívida do ser humano em relação a Deus: ter construído uma casa, achando que poderia excluí-LO. Pensou que seria um palácio, mas ficou uma casa torta, remendada, tipo construção perene, sem planta, e a reforma começou antes do término: fazer do quarto, cozinha, do banheiro, sala, e o corredor acaba sem luminosidade, escuro, baixo e apertado, e daí aparece a necessidade de se fazer um puxadinho amarrado com arame. É, o Pai precisa mesmo voltar pra casa; o que construímos nem casa é mais. Assim Jesus o convida, e Pai em casa é conselho na certa (v. 13)! Dá os conselhos do tomar cuidado por onde se anda e assim Ele vai livrando as crianças do mal. Crianças não sabem fazer isso. Acabam se emporcalhando, não sabem o que é importante. Não veem a ameaça, se colocam no abismo e se desprotegem. Agora, quando o Pai está em casa, aí é diferente. Ele vai recomendado e livrando do mal só por mostrar o caminho, é por aqui, isso você faz desse modo e daí dá segurança porque basta viver. A gente, como criança, só tem o trabalho de ir vivendo e o Pai vai cuidando. Quando Ele mora com a gente tem pão todos os dias. O pão dEle tem sabor de Pai, que ninguém explica ou entende. Ele entra na casa e perdoa, com um coração que parece só saber fazer isso, o que não é verdade, porque o Pai é sabido e ninguém sabe mais do Ele. Sabe e cuida demais da conta. Então a casa fica limpa, cheirosa e arrumadinha.

Uma oração, parábola e convite, em nosso nome: - Pai, venha morar com a gente.
pr. Natanael Gabriel da Silva

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

DEUS NÃO SE ESQUECEU DE NÓS

“E não dizem no seu coração: Temamos agora ao Senhor nosso Deus, que dá a chuva, a temporã e a tardia, a seu tempo; e as semanas determinadas da sega nos conserva.”- Jeremias 5.24

Chuva, que pra mim continua sendo um dos mistérios de Deus. Um dia alguém decidiu estragar isso, dizendo da evaporação da água, e foi inventada toda uma tecnologia que  prevê a chuva com certa precisão, daí vieram os institutos, os profissionais da chuva, o noticiário que, vez por outra, é dada a notícia de que o fim de semana vai ser ruim. Ruim, só na cabeça de alguns.

Chuva pra mim é outra coisa, é sempre tempo bom. Parece um manto de Deus que repousa sobre a vida, como se descansasse sobre a natureza. É como se um dia Deus resolvesse fazer uma limpeza e lavar tudo. Vai ver que é por isso que em dia de chuva tudo fica brilhando como se tivesse sido lustrado. As plantas do cativeiro, guardadas sob os ranchos, ficam com saudade do tempo quando eram livres, só sob os cuidados de Deus. Isso pra mim é chuva, lugar da liberdade e ao mesmo tempo de aconchego. Aconchego não é prisão. Aconchego é proteção com liberdade, porque tem prisão que também protege, mas é exatamente a liberdade caçada, coisa que não acontece com a chuva. Você fica preso, ou presa, dentro de casa só pensando na vida. Os engarrafamentos fazem parte, porque quando a chuva foi inventada não existiam carros nem bueiros, então a culpa não é da chuva.

Hoje acordei com a chuva e fiquei feliz, e pensei: Deus, mais uma vez, lembrou-se de nós.

pr. Natanael Gabriel da Silva


quinta-feira, 13 de outubro de 2011

PARA ALÉM DA ARTIFICIALIDADE


“Adúlteros e adúlteras, não sabeis vós que a amizade do mundo é inimizade contra Deus? Portanto qualquer que quiser ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus.” Tiago 4.4

Tiago não conhecia a expressão “consumismo”, mas é ela que aparece aqui. No tempo de Tiago a questão não era apenas o supérfluo, mas a falta do essencial. Havia fome e a igreja suportava uma desigualdade difícil de ser compreendida. Só que ao invés de tratar o pobre como vítima, ou o rico como carrasco, pra Tiago o ser humano, em qualquer situação, quando reduz a vida a isso, é inimigo de Deus. Mais que inimigo e as expressões “adúlteros e adúlteras” são de profunda infidelidade. Quase imperdoável infidelidade, pois reduzir a vida a sonho de coisas é tirar dela a natureza de ser vida.

Nessa linha não é possível ser amigo de Deus, porque Ele não é coisa. Ele é vida em toda plenitude, para quem o esforço do viver deve ser dirigido e orientado. E não é que o desvairado mundo em que vivemos nunca gerou igualdade social e muito menos aproximação do ser humano com o seu semelhante! Não é que destruímos a natureza com a artificialidade dos plásticos, que são símbolos da nossa própria artificialidade? Mais ou menos como Matrix: a artificialidade como realidade virtual, carregada como sendo vida mesmo, quando não é. Parece, tem cheiro, funciona e volume, mas não é vida porque é uma artificialidade de coisas que não existem, e não venha me dizer que algum dia você viu um pé de dinheiro. Claro que é artificial! Daí me aparece alguém dizendo que artificial é a árvore plantada no jardim do Éden, que nunca existiu! Ele, ela, e eu também, nos matamos em função de algo que não existe, mas fizemos existir, como trabalho, poder, padrão de vida e por aí se vai; e quando nos tornamos inimigos de Deus, achamos que deve ter alguma coisa errada em algum lugar porque não deveria ter acontecido isso. Nem entendemos direito o que isso significa.

Não deveria ter acontecido, mas aconteceu. A pergunta de hoje é sobre a razão da vida, porque lutamos e morremos e me parece que não tem sido na direção e busca da amizade com Deus.

Talvez hoje seja um bom dia pra redescobrirmos a vida, para além da artificialidade, não acha?

pr. Natanael Gabriel da Silva

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

CIMENTO COM CANETA

Passei muito tempo sem escutar um hino sacro cantado por um coral. Um dia o jejum foi quebrado e satisfiz a minha saudade. Lá estava um grupo de pessoas formado por donas de casa, pedreiros, funcionários públicos, gerentes, fotógrafos e não sei mais quem. Pessoas que durante a semana assentam tijolos, lidam com alunos, passam as longas tardes enfrentando a jornada de uma faxina, ou a burocracia de um sistema público emperrado e que esbarra na boa, ou má vontade, desse ou daquele. Daí no fim de semana se tornam cantores e cantoras. São pessoas que arrumam tempo, não sei onde e, por algumas horas esquecem a vida dura pra cantar. Tá certo que é uma musicalidade misturada com sabão, hora do almoço, crianças correndo pelo pátio, sistema político e suas contradições. Não é pura e vem na esteira do serviço bruto, mãos grossas, vida grossa, gente sofrida que enfrenta a vida e no fim de semana vira cantor e faz poesia. Bebe a letra e flutua ao som de um piano que pouca gente tem em casa. Como se trata de gente que trabalha em fábrica e não tem tempo de ficar cultivando sensibilidade, o canto não vem puro. Não é tão afinado. São vozes comuns, de pessoas que saltam por sobre a realidade e se tornam iguais. Isso é inclusão.

Você pode achar que estou fazendo um discurso de quem não sabe direito onde pisa. Isso porque a igreja sempre foi vista como a comunidade que, ao invés de incluir, exclui; é preconceituosa e pouco, ou quase nada, luta pela vida, e que está mais preocupada em se abastecer de pessoas como se fosse um grande depósito, e disputa com outras cada palmo de gente. Será que um dia seremos humildes, simples, conscientes dos próprios limites, ou continuaremos como semideuses do saber? Quando se caminha por determinados lugares, a sensação é a de passear na ilha de Páscoa: cheio de gigantes de pedra - ninguém sabe de onde vieram, nem pra que servem – aparentemente só assustam, e ficam lá como se o mundo os reverenciasse. 

Eu não fiquei assustado, fiquei impressionado. Mais que isso, fiquei comovido. Vozes roucas, pouco treinadas, ora desafinadas, ora uns entrando antes de outros, ou sequer entrando, estavam ali me fazendo cheirar o perfume da solidariedade. Havia ali colheres de pedreiro, carrinhos de entulhos, aventais, muitos aventais – de serviços gerais, domésticos, possivelmente de serralheiros, mecânicos e carpinteiros. Havia ali chaves de fenda, panelas, canetas e lápis, pessoas pensando na cinco da manhã da segunda, gente suada, agarrada e dependurada nos tetos, trânsito, conta corrente no vermelho, marido desempregado, crianças na creche, filas de consulta médica no sistema público, calçadas a serem varridas, tanques abarrotados de roupa da criançada que o fim de semana juntou, daí o momento da arte suspende tudo e a vida dá passagem ao sonho de poder fazer parte de um grupo que canta, se encontra e se encanta. Amigos, chefes, patrões, diretores, gerentes e seus subordinados, empregados, funcionários, condôminos e porteiros, todos juntos, iguais, desocupados das suas obrigações e da vida dura, superando o desafino e descompasso, tentando juntar cimento com caneta, avental com farda, tanque de roupa com livros, becas com macacões, ternos com bermudas, sapatos com chinelos, Audi com Fusca, cujo tempero é o doce sabor de pertencer e ser pertencido; um painel de diversidade e pluralidade. 

Você chama isso de desigualdade social? Pois é, a gente pensa diferente mesmo. Pra mim isso é inclusão. Por conta dessas coisas sou perdidamente apaixonado pela igreja.

pr. Natanael Gabriel da Silva

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O MILAGRE E O TEMPO


“No terceiro ano de Ciro, rei da Pérsia, foi revelada uma palavra a Daniel, cujo nome é Beltessazar; a palavra era verdadeira e envolvia grande conflito; ele entendeu a palavra e teve a inteligência da visão.” – Daniel 10.1

Posso estar errado, mas quando o texto é tão exato, “no terceiro ano”, acho que milagre era tão raro que ficava fácil determinar quando este teria acontecido. Pode ser outra coisa, eu sei, como um milagre especial, esperado e inesquecível o suficiente pra marcar época. Contudo, o registro do tempo não pode ser negado ou suprimido. O milagre poderia ter acontecido antes, mas não foi assim. Também não foi depois, e o tempo está lá pra dizer o quando e deste modo ativar a nossa imaginação.

Um milagre todos os dias, é isso aí. É isso aí que exigimos com a nossa espiritualidade centrada nos próprios problemas e lutas. Já imaginou se Deus ficasse três anos sem responder? Três anos sem fazer nada, ou dizer nada. Quieto. Como você se sentiria? Abandonado ou abandonada, não é mesmo? Pra gente ter a certeza de que o Senhor está lá olhando é preciso um milagre por dia, é ou não é? Não basta um milagre geral, como uma chuva, que a gente nem vê. Sol que brilha? Também não, é comum demais, porque o milagre tem que ser dirigido e direcionado só pra mim. Somos exigentes, não acha? Não creio que isso seja bom. Na verdade acho péssimo, porque não importa o silêncio e o não fazer nada, não importa sequer não nos escutar, só é preciso ter a certeza de que Ele está, que sempre esteve e sempre estará cuidando de você e de mim.

Sou como você. Gostaria de ser diferente e viver a vida sem a ansiedade do milagre. Eu desarrumo tudo e depois fico esperando que Ele venha colocar a casa em ordem, e tem que ser todos os dias, como no Éden, final de tarde, dia terminando, mas tem que vir, senão já entro em pânico. Isso não é certo, porque o Senhor nos observa e nos ampara, mesmo quando não pensamos nEle. Não precisamos de milagres, só da presença, e a presença não precisa ser demonstrada, porque se Ele disse que estaria com a gente todos os dias até a consumação dos séculos, não basta crer e descansar?

O “todos os dias”, inclui também o que nasceu hoje.

Pastor Natanael Gabriel da Silva

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

TOMAR A CRUZ

“E, chamando a multidão com os discípulos, disse-lhes: Se alguém quiser vir após mim, negue a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me.” Marcos 8.34

Não, tomar a cruz não significa carregar problemas. Nem para Jesus a cruz representou isso. Na verdade ela foi solução. O texto não está mencionando as dificuldades que você enfrenta na vida. Também não está se referindo a algum problema prolongado que você vai carregando até não poder mais. A cruz de Jesus, pra Jesus, não foi nada disso. Foi dura, desumana, ingrata até o último grau, mas ele caminhou rumo a ela e a teria abraçado, caso não tivesse que necessariamente estar de braços abertos para ser crucificado. Braços abertos e não poderia ser de outro modo, pois recebia a humanidade, desprovido de qualquer defesa. Então a cruz que você deveria carregar não se refere aos problemas que possue e sofrer não é sinônimo de ser cristão. Sofrer é apenas sofrer.

Quer andar como Jesus andou? E é assim que começa o convite: Quer ser como eu? Primeiro não pense em você mesmo, porque enquanto pensar assim estará interessado na vida com Deus apenas quando esta lhe seja favorável. E quem não faz isso? Não estava certo Jesus? Claro que estava e até hoje tem gente procurando igrejas pra resolver este ou aquele problema e num determinado momento, na atual cadência, igrejas que oferecem serviços e curas saem à frente. Quer ser como eu? – perguntava Jesus. Esqueça de si. Esqueça não, vá mais longe. Diga não a si mesmo com convicção e poder de decisão. Depois tome a sua cruz, parecida com a minha e saia pelas ruas. Será sua, porque é a sua vida. Só você pode carregá-la. Tenho absoluta certeza que ninguém irá confundir você, porque a história conhecerá uma única pessoa que fez isso, que serei eu. Ninguém no mundo que tenha um mínino de conhecimento histórico, mesmo que não seja um ocidental, ao se encontrar com alguém pela rua carregando uma cruz irá identificá-lo/a comigo. Com outras palavras, me assuma de tal modo que, quando alguém olhar pra você, irá se lembrar invariável e imediatamente de mim. Quando você for confundido comigo, será como eu.

Pastor Natanael Gabriel da Silva

terça-feira, 4 de outubro de 2011

PLANTANDO ESPERANÇA

“Eu plantei, Apolo regou; mas Deus deu o crescimento.” – I Aos Coríntios 3.6

Crescimento, e desde o início a Igreja já se viu no conflito entre espiritualidade, valores e vaidades. Vaidades pessoais na pergunta do quem fez isso, ou do quem fez aquilo, num esquecimento de que a vida estava na semente, não no semeador, nem em quem cuidou. Planta feita, completa, totalmente pronta já preparada para a aparição, tudo ali no mistério de um grão quase sem importância. Mistério inexplicável de uma semente agora e árvore depois: isso só podia ser coisa de Deus. Paulo sabia disso desde a antiga narrativa da criação, do Éden, como jardim perfeito e visitado pelo Senhor no cair das tardes. É como se a criação acontecesse a cada manhã, um dia como um ciclo perfeito de morte e vida, num lindo jardim. A beleza da vida só poderia ter nascido lá.

Como não entendemos de plantas nem de árvores (eu pelo menos não, não nasci no campo, não sei cuidar de horta, nem tenho jardim), aplicamos o fast food dos shoppings e passamos por cima das duas primeiras etapas, plantar e cuidar, e vamos logo para os finalmentes. Esta palavra não existe, mas existe a conduta que não respeita o compasso da vida em relação à igreja, porque em tempo de consumo homologamos a era fordista: uma série de medidas, planejamento e execução pra produzir gente. Produzir não, modificar ou transformar. Lembro-me de quando estudava pedagogia e havia até gráfico para mostrar quem era o aluno que entrava na escola (matéria bruta), e qual era a pessoa que se esperava que de lá saísse (o sistema o transformaria num belo produto para ser usado), como se fosse fábrica de produção em série, todos iguais, da mesma cor (a seleção acontecia antes), mesma cabeça e sonhos. O sistema deveria funcionar como uma máquina. Deu certo? Claro que não deu, e não vai dar nunca, porque a vida não é essa coisa a ser transformada e prevista, e Igreja não é fábrica de transformação de gente (eu ia escrever “fábrica de crentes”, mas ficaria uma linguagem hermética demais), não há automatismos, e um botão apertado não resolve muita coisa. O que resolve é a palavra que vai derramando amor, isso resolve. Um pouquinho por dia, e uma vida não cresce só porque você resolveu arrancar o mato. Os fariseus eram pródigos em arrancar o que não servia, e na fúria iam arrancando tudo de uma vez, de tal modo que Jesus um dia contou uma parábola do joio e do trigo, dizendo que os discípulos não deveriam agir daquele modo. Não existem fábricas, só campos. Não há bancadas, mas canteiros. Tem também muito trabalho e dedicação, a vida toda pra toda a vida.

Pois é, a vida está no jardim. Criada e permitida a se multiplicar pelo mistério da mudança que faz uma semente virar árvore, uma árvore virar frutos, os frutos virarem sementes pra virarem árvores outra vez, num ciclo de criação e recriação que não tem fim. Paulo dizia que, com a igreja e o evangelho, é a mesmíssima coisa. Não é uma fábrica, é uma estufa. Demora que demora, e demora o tempo que a vida precisa para ser vida, planta-se um sorriso aqui, um abraço ali, uma atenção lá, e nada de veneno em tempo de ecologia. Não fiz nada, dizia Paulo, só joguei a semente. Apolo também não fez nada, só cuidou. Deus deu a água que Apolo precisou e deu também a vida que estava na semente. O jardim não é meu. Tudo vem dEle e é para Ele. Se fiz algo, foi só jogar a semente, nada mais. Apolo cuidou e a vida cresceu sob o amparo do Senhor.