“Ai de vós,
doutores da lei, porque retivestes a chave do conhecimento; vós mesmos não
entrastes e impedistes os que desejavam entrar.” – Lucas 11.52
Doutor aqui é o
intérprete de tudo o que é sagrado e é capaz de dizer, ensinar e determinar os
passos, pé por pé, de como se deve fazer para agradar o Santo. O doutor possui
a chave, porque detém autoritariamente o modo correto de interpretação,
estabelece parâmetros e exigências para descortinar a verdade, como se fosse um
espaço que só poderia ser compreendido e interpretado por ele. É isso que torna
o outro dependente, serviçal, escravo, impotente e vítima do discurso. O doutor
conhece os originais dos originais, esconde os trâmites e dúvidas das contradições
textuais. Nunca irá confessar que há muito se estuda os primeiros versos sobre
a Criação como poesia, mas não saberá nem o que isso significa e ocultará a
informação aos dominados, com medo de que possam perder a fé. Achará que a
poética é menor do que Lei e não saberá guiar a vida por princípios, apenas
pelo império da norma. Deste modo o doutor oculta os questionamentos e os tenta
superar com a explicação de que, afinal de contas, a fé não pode ser
compreendida e interpretada completamente. Nisso o doutor tem razão, mas só
chega nesse ponto quando não mais tem resposta, e acaba por se tonar este um
esconderijo hermenêutico, com uma porta de saída do outro lado da gruta que
ninguém conhece. Então, quando consegue a façanha, sai pra respirar pela porta
artificial, como se tivesse vencido a dúvida sem resposta, para manter o
domínio do que chamaria de essencial e necessário. Há um pouco que se deve conhecer
bem conhecido, reafirma o doutor, confirmado e compreendido a partir do
original, e este pouco é suficiente para levar ao cativeiro o cativo mediante
apenas uma conjunção adversativa: mas. Coisa
do tipo: Deus é amor, mas é também
justiça; e o “mas” fica na memória do condenado à privação da liberdade, numa
interpretação ruim e que coloca dimensões éticas opostas, como se o Perfeito
fosse capaz de um algo diminuído por outro; atributos contraditórios que bem
poderiam ser expressos no inverso, ou seja: Deus é justiça, mas é também amor – assim eu nunca ouvi,
pois este discurso é libertário demais para quem não consegue sobreviver sem a
justiça como instrumento de poder, mais humana que divina; imposta e interpretada
como sentença condenatória. Sabe por quem? Pelo doutor, é claro! Assim o doutor
mantém a autoridade e empurra a vítima do discurso para dentro da caverna, sem
dar-lhe o mapa de uma saída, que o próprio doutor não tem, mas isso jamais irá
confessar. Assim, o doutor que diz saber de tudo e autoridade letrada e
estudada no assunto, vai indicando os passos para o cativo e que sempre acabam
numa parede sem porta. Até pra voltar o aprendiz terá que depender do discurso
renovador do doutor. Ele irá chamar as barreiras, e os becos do labirinto, de
pecado, dirá das limitações do condenado, afirmará sua falta de fé, porque quem
não encontra a porta, só não acha porque não tem fé. E o doutor trocou a
pessoalidade da porta de João 10.9 pelo estudo sobre a porta, ou fez o salto do
Cristo para cristologia como diz Harnack. Fez isso porque uma porta pessoa não
permite o exercício do poder. Fez isso e se perdeu. Não haverá saída, porque o
doutor é o Doutor das letras e dos escritos, o Hermes a interpretar a linguagem
dos deuses, seja esta textual ou sobrenatural, e soma à autoridade da letra, o
domínio das forças do mal, e lá vai o doutor dos milagres curar os famigerados
e infelizes de todos os tipos de infortúnios.
Ficam os cativos escravizados pelo êxtase e momento quando o milagre,
distorcido de seu evento social e cultural, se der então como realizado. E tem
milagre todas as horas, é uma fábrica de milagres que tornaria o Ford e sua
linha de produção, coisa de criança. Assim como nas fábricas de automóveis, os
milagres dos doutores do sagrado não acontecem nas ruas, pelo caminho, no
encontro com os miseráveis, nada disso. São milagres de templos da
produtividade, suntuosos templos, cheios de assombro para que o milagre pareça
ser ainda mais milagroso, cantoria e voz profética dentro da fábrica e suas
máquinas em linha. Fica o milagre cativo feito produto como se o mundo não
fosse o lugar da manifestação do divino.
Mas, aos
doutores, tem um ai de vós pela criação da carga colocada sobre o outro, seja
de medo, dúvida, dependência ou exigência (Lucas 11.46). Tem um ai de vós pela
distorção da história e o uso ideológico do discurso (Lucas 11.47); tem sangue
e morte, porque o doutor das letras e do sagrado mata sim o seu próximo e não
raras vezes se apropria de seus bens. E se retroagir no tempo, sentenciava
Jesus, irá encontrar a presença do manipulador, cuja conduta se repete, desde quando
é possível de se falar de ter havido existência (Lucas 11.50,51).
Pois é, só sei
que o Evangelho da Graça e do Amor, o Evangelho Maltrapilho, como diria Brennan
Manning, continua escondido. Tão escondido que fica difícil saber o que de fato
significa.
Natanael Gabriel
da Silva