sexta-feira, 12 de agosto de 2011

VIVER SEM PAI




“Porque, quando meu pai e minha mãe me desampararem, o Senhor me recolherá.” – Salmo 27.10

Acho que nunca tive pai. Lembro-me do carro velho e barulhento, um Ford 29, preto, banco inteiro, e da volta que demos nele numa estrada cheia pedrinhas e  eucaliptos. Estes eram enormes. A estrada dava voltas e sempre retornava para o começo e ficava no fim da minha rua. Meu pai dirigia, brincava e sorria. A família inteira dentro de um Ford 29. Nove pessoas.

Meu pai só viajava. Era vendedor. No começo vendia meias, depois perfumes, roupas íntimas e, por fim, enxoval. A época do enxoval foi a da Kombi 62. Nela, apinhados, comemoramos a copa de 70. Só que antes da Kombi, meu pai viajava de trem. Morávamos na periferia, perto da linha. Quando o trem passava, meu pai aparecia na janela, dava com a mão de uma semana e jogava os gibis enroladinhos, um para cada filho, daí a gente corria pra casa, subindo a avenida cheia de terra e poeira.

Minha mãe e meu pai nunca se deram direito com esse negócio de religião. Havia muita reclamação quando alguém ia nos visitar. Não importava a igreja, a minha mãe era contra. Lembro do dia em que fomos de bicicleta, só nós dois, para um culto no salão nobre dos Correios, perto da estação, onde ficavam as coisas mais importantes da cidade.  O pastor falava alguma coisa sobre o “quase” ser salvo. Explicou que “quase” significava “não” e exemplificou: “Se uma pessoa está no abismo e diz que quase uma águia o salvou, é porque a pessoa se perdeu. Quase quer dizer não!” Hoje eu não sei se ele disse isto mesmo, se foi águia ou não, pois seria um absurdo uma águia carregando uma pessoa, não é mesmo? Se ele contou outras histórias e depois misturei tudo, também não sei. Era o pastor Ignácio Nunes e não imaginava que o conheceria quinze anos depois e que me batizaria. O legal foi ter ido perto da estação, perto de tudo. Fomos de bicicleta, e um passeio de bicicleta com o pai não é coisa para se perder, não é?

Depois veio a história da Kombi e um dia ele foi embora. Pouca coisa ficou. Deixara uma Bíblia toda remendada com durex, principalmente os Salmos. Minha mãe dizia que, quando ele a estava lendo com a gente no colo, rasgávamos as folhas. Bíblia impressa na Inglaterra e Cristo com “Ch”. Li muito aquela Bíblia. Dormia com ela debaixo do travesseiro. Ela me lembrava do meu pai.

Pois bem, é por esta razão que eu não sei se tive ou não pai. Passamos muita fome. Lembro-me dos uniformes no avesso pra recuperar a cor. Minha mãe desmanchava tudo e costurava ao contrário. Lembro-me dos cadernos escritos a lápis, e toda a família na borracha, apagando, pra usá-los de novo. Pra completar, fazíamos cadernos de papel de pão, amarrado com linha. Lembro-me do meu irmão na porta da padaria esperando a minha mãe que fora entregar os bordados: pelo menos naquele dia teríamos pão. Tempos difíceis. Tempo de pouca poesia e de muitas lágrimas.

Ficou do meu pai a inestimável Bíblia, que um dia perdi. Ficou também o sermão numa noite no centro da cidade, perto da banca e perto do mundo. De um lado isso, de outro a desumanidade profunda do abandono. Então, quando alguém me pergunta o que significa viver sem pai, digo que não sei. Talvez a vida seja assim mesmo.

Pr. Natanael Gabriel da Silva

2 comentários:

  1. Poxa, pai...ficou bonito...de verdade =)
    Tenho orgulho em dizer: Tenho pai =)
    Beijão!
    (O blog está ótimo =)

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  2. Que texto fantástico! fazia tempo que não lia um artigo tão lindo, um resgate na sua memória que é válido pra qualquer um que lê! fantástico!

    as lágrimas chegaram na portinha aqui!

    abraço!

    Jonathas

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