sábado, 20 de agosto de 2011

A DOR PELO COLETIVO



"Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que te são enviados! quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste!"  (Mateus 23 : 37)

Decidi que naquele sábado, num pré dia dos pais, passaria a manhã cuidando de serviços domésticos. Tirei o pó, varri e fui passar roupas. Aos 54 anos já tenho autorização para passar camisetas e meias. Não sei, mas acho que não chegarei aos ternos. Curso longo este.

Aproveitei para curtir a música de Wim Mertens. O conheci por Marcelo Masagão, do premiadíssimo “Nós que aqui estamos por vós esperamos”. Como sempre acontece na relação da música com a imagem, fui contaminado pela interpretação de Masagão e só consigo ouvir Mertens, músico belga, que na rua poderia ser confundido com Paul MacCartney, pelo caminho das paixões, incertezas e na repetição musical que lembra uma sociedade tecnicista envolvida pelo automático, num clima de dor e sem sentido.

Wim Mertens, via Masagão, traz a dor pelo coletivo. Não é aquela dor que tem rosto e nome. A dor tem rosto quando você se depara com alguém que sofre, e é traumática por estar ali, quase vestida, quase limpa, quase pessoa. Mertens compôs sobre outra dor, a coletiva, a de todos, ignorada e pública. Não está nas casas, mas nas ruas, não numa cidade, mas em todas, não só do nosso tempo, mas de sempre. Dor de Auschwitz, que talvez você tenha se esquecido. Num dado momento a música de Mertens anuncia que algo que irá acontecer, é o sobressalto de um século de guerras; noutro,  vozes anunciam a dor. Mertens vai repetindo aquele piano pingado que cansa quem escuta, só repete, enjoa, irrita, no mesmo compasso das repetidas misérias e mortes coletivas que provocamos nas últimas décadas. Daí vem o violino, ora num quase descompasso, ora esticando a dor, e quem escuta sofre, lamenta, tem saudade do que deveria ter sido e não foi, e por fim acaba por morrer também um pouco com a humanidade que vive e sobrevive do desencontro. Aflora a dor, mas não por alguém, e sim por todos. Não é uma dor por causa “deles” que chamamos de “mundo”, como se fossem outros. É a dor de todos nós. Dor por existir.

Se você conseguir compreender um pouco dessa dor, estará também um pouco mais próximo/a da que Jesus sentiu ao dar-se pela humanidade. Dor coletiva, de todos, pessoas e situações, sem muralhas, paredes, preconceito ou gênero. Morte pelo coletivo, amor no plural, traduzido em qualquer língua, pra qualquer cultura e situação. O chorar de Jesus sobre Jerusalém foi pela memória sofrida, pela cidade símbolo de todo esforço de Deus e limite da tragédia humana. Houve algum povo em algum outro lugar que um dia tenha recebido tantas promessas? Conhece? Eu não conheço, mas o sangue dos profetas jorrou e correu solto pelas ruas e Jesus chorou por eles, chorou pelos que tiraram a vida deles e chorou pela vida que se perdera. Chorou pelo futuro, numa nota longa e esticada que vibrou e alcançou a profundidade da alma, um vocativo triste: “Jerusalém, Jerusalém...”, duas vezes doído, duplamente sofrido e chorado.

É difícil ouvir Mertens sem sofrer pelo mundo. É impossível ouvir Jesus e não chorar com ele, pela cidade e pela vida. Foi uma impagável manhã de sábado.

Pastor Natanael Gabriel da Silva

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