quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

O TEXTO E O AFETO


“As misericórdias do Senhor são a causa de não sermos consumidos; porque as suas misericórdias não têm fim.” – Lamentações 3.22

Tenho uma leitura afetiva deste texto, não apenas compreensão, e sem analisá-lo na estrutura exegética, algo dele já ficou em mim como memória de aproximação, logo no primeiro instante. Isto acontece antes que eu pense nos seus termos, antes de refletir quem consome quem (andei lendo muito o Pierce). Parece que as misericórdias nos livram de nos consumirmos, uns contra os outros, mas isso ainda é secundário. Quando penso nisso, o texto já fez o seu efeito e só posso conversar com ele porque uma virtude dele abriu as portas da comunicação e me tornou como aquele que foi tocado incondicionalmente. Nesse caso, concordo com Tillich.

O texto não é apenas texto e não serve tão somente para a reflexão entre o certo e o errado. Eu sei que é difícil a nossa compreensão a respeito disso e é também nessa mesma direção que o mundo cristão tem dificuldade de compreender o mesmo afeto que os muçulmanos se dão diante de suas Escrituras Sagradas, ou do judaísmo pela Torá. Os que fazem parte do último são colocados pelos cristãos na condição darwinista de subordinação religiosa: evoluímos deles e são, portanto, complementos culturais. Os primeiros são oposição, nossos adversários. Assim apenas o cristão se dá, equivocadamente, o direito de sorver as próprias Escrituras Sagradas com o sabor do sobrenatural, da misericórdia e da benevolência. Outras religiões, não textuais, são místicas demais para o nosso racionalismo, e ficam de fora por conta de ausência de conteúdo que possa ser compreendido por meio de exegese e doutrina. Enfim, somos os únicos e podemos fazer o que bem entendemos: racionalidade a gosto, e fuga dela, também a gosto.

O texto vai além do texto, porque não é apenas texto, se dá como aproximação afetiva e de suporte para valores e sonhos. É significativo demais, porque representa demais. Não pode ser reduzido a um código de regras e normas, do histórico politicamente correto ou da sustentação da estrutura religiosa válida e única como porta de saída, ou entrada, à existência humana. Ele é “o” texto para mim, o que não exclui os outros. Ele fala, comove, faz ver, encoraja, orienta o sentido da vida, faz refletir, chorar, sentir, amar, abre os horizontes da sensibilidade em favor do próximo, faz desejar a justiça, lamentar o descaminho e a desumanidade, abre o túnel da esperança e me ensina a ver os lírios dos campos como exemplo de realeza e simplicidade.

O texto é belo, não por determinar o certo ou o errado; é belo porque vai além dele e dialoga comigo na condição de pessoa, tem som e melodia. E quando leio que as misericórdias do Senhor não têm fim, não entendo direito o que significa, só sei que é mais do diz, embora também não possa dizer o quanto.

Pastor Natanael Gabriel da Silva
 

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