“As misericórdias do Senhor são a causa de não
sermos consumidos; porque as suas misericórdias não têm fim.” – Lamentações
3.22
Tenho uma leitura afetiva deste texto, não apenas
compreensão, e sem analisá-lo na estrutura exegética, algo dele já ficou em mim
como memória de aproximação, logo no primeiro instante. Isto acontece antes que
eu pense nos seus termos, antes de refletir quem consome quem (andei lendo
muito o Pierce). Parece que as misericórdias nos livram de nos consumirmos, uns
contra os outros, mas isso ainda é secundário. Quando penso nisso, o texto já
fez o seu efeito e só posso conversar com ele porque uma virtude dele abriu as
portas da comunicação e me tornou como aquele que foi tocado
incondicionalmente. Nesse caso, concordo com Tillich.
O texto não é apenas texto e não serve tão somente
para a reflexão entre o certo e o errado. Eu sei que é difícil a nossa
compreensão a respeito disso e é também nessa mesma direção que o mundo cristão
tem dificuldade de compreender o mesmo afeto que os muçulmanos se dão diante de
suas Escrituras Sagradas, ou do judaísmo pela Torá. Os que fazem parte do
último são colocados pelos cristãos na condição darwinista de subordinação religiosa:
evoluímos deles e são, portanto, complementos culturais. Os primeiros são
oposição, nossos adversários. Assim apenas o cristão se dá, equivocadamente, o
direito de sorver as próprias Escrituras Sagradas com o sabor do sobrenatural,
da misericórdia e da benevolência. Outras religiões, não textuais, são místicas
demais para o nosso racionalismo, e ficam de fora por conta de ausência de
conteúdo que possa ser compreendido por meio de exegese e doutrina. Enfim,
somos os únicos e podemos fazer o que bem entendemos: racionalidade a gosto, e
fuga dela, também a gosto.
O texto vai além do texto, porque não é apenas
texto, se dá como aproximação afetiva e de suporte para valores e sonhos. É
significativo demais, porque representa demais. Não pode ser reduzido a um
código de regras e normas, do histórico politicamente correto ou da sustentação
da estrutura religiosa válida e única como porta de saída, ou entrada, à
existência humana. Ele é “o” texto para mim, o que não exclui os outros. Ele
fala, comove, faz ver, encoraja, orienta o sentido da vida, faz refletir,
chorar, sentir, amar, abre os horizontes da sensibilidade em favor do próximo,
faz desejar a justiça, lamentar o descaminho e a desumanidade, abre o túnel da
esperança e me ensina a ver os lírios dos campos como exemplo de realeza e
simplicidade.
O texto é belo, não por determinar o certo ou o
errado; é belo porque vai além dele e dialoga comigo na condição de pessoa, tem
som e melodia. E quando leio que as misericórdias do Senhor não têm fim, não
entendo direito o que significa, só sei que é mais do diz, embora também não
possa dizer o quanto.
Pastor Natanael Gabriel da Silva
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