segunda-feira, 26 de março de 2012

QUANTO EU TIVER SETENTA E CINCO ANOS

(Escrevi este texto já faz alguns anos. Relê-lo é também relembrar desejos, renovar sonhos e pensar o ainda-não. De certo modo, ainda não me livrei nem dos ternos, nem das Atas, mas tenho convidido e cativado amigos. Então, se puder, sonhe comigo.)

“Ensina-nos a contar os nossos dias, de tal maneira que alcancemos corações sábios” – Salmo 90.12

Ainda não cheguei lá. Também não sou garoto. Tive aulas com o pastor Soren, que dava aulas de Teologia Sistemática. Pastor Soren só falava de suas memórias, e não respondia as questões que achávamos importantes. Certa vez um dos colegas, inconformado, perguntou: “Afinal, o ser humano é corpo-alma-espírito, ou é só corpo-alma?” Esta é a típica pergunta que só faz quem é aluno de teologia. Pastor Soren respondeu sorrindo: “Já foi o tempo em que eu me preocupei com isso!” Saímos aborrecidíssimos. Desde essa época, estou tentando aprender a sonhar com o que vale a pena.

Quando eu tiver setenta e cinco anos, vou querer me arrepender de muitas coisas que fiz de um modo, e que deveria ter feito de outro. Não terei medo de me reavaliar. Não gosto do discurso de quem diz: “Se pudesse viver outra vez, faria tudo do mesmo modo”. Primeiro porque já vivi o bastante pra saber que isto é besteira, depois porque só a idade nos ensina o que é a vida, e mesmo assim a gente nunca aprende. Aos setenta e cinco anos, quero me arrepender do tempo tão curto do casamento, da vida que passou rápida demais, do que ainda não deu tempo de conversar, dos inesquecíveis castelos e do depois de conto. Vou me arrepender do tempo que deixei de brincar com os meus filhos, que logo se casaram, seguiram suas vidas e saíram para aprender a fazer as próprias perguntas importantes. Vou me lembrar das viagens, mas só por causa das pessoas que estiveram comigo. Não daquelas cheias de compromissos, Assembleias Convencionais e debates que sempre voltavam para o mesmo ponto de partida, as mesmas pessoas discutindo as mesmas coisas, pra se chegar às mesmas conclusões. Quanto tempo perdi ouvindo leituras de Atas! Documentos, verdadeiros livros com gráficos, mapas de crescimento, números, extratos bancários, estatutos, muitos estatutos, perspectivas e projetos que nunca foram concluídos, nem o serão, porque o futuro sempre vem navegando meio à deriva, num negócio incerto chamado vida.
Vou querer rir muito. Ah! Vou mesmo! Vou dar muita risada. Não dos outros, mas de mim. Rir do tempo quando eu não sabia fazer perguntas. Da época quando desejava saber se o ser humano é corpo-alma-espírito, e de quando pensava no milênio. Vou me lembrar mais das festas e das conversas livres depois dos cultos, que das reuniões. Abraçar mais, muito mais. Vou querer ficar impaciente, contando uma história da vida para cada coisa que acontece. Quero tirar do armário, não os objetos que ganhei e que já estão fora de época, mas sim as fotos, muitas fotos. Imagens da minha história. Gente rindo, família na praia, filhos pequenos, adolescentes, casados e já velhos. Quero ver fotos dos meus amigos, pessoas que conheci nas igrejas por onde passei; eram ovelhas quando eu pensava no milênio e se tornaram amigos quando aprendi a fazer as perguntas importantes. Vou jogar fora os ternos. Jogar os velhos sermões quando as perguntas eram outras. Vou querer ser acompanhado pelos livros. Continuar lendo dois ou três ao mesmo tempo, sem terminar nenhum. Vou aprender a dizer “não sei”, e isto não fará qualquer diferença. Vou continuar gostando da chuva e pensarei na vida enquanto os pingos nas poças vão trazendo as histórias da infância, pelo vidro, pela janela disputada por sete cabeças, narizes achatados no fascínio da imagem e as pequenas mãos tirando o embaço; uma única janela na rua M 1, lá na Vila Martins, que dava para uma estrada cheia de lama e pingos que pulavam. E a gente dizia: - “Olha o pai pulando!” Nunca soube direito o significado disso, mas aos setenta e cinco anos, não será uma pergunta importante. 

Será apenas o tempo de colher o que plantei, e tive a vida toda pra fazer isso.

Um comentário:

  1. Eu já estou pertinho desses 75 aí!
    Das coisas mencionadas nesse texto, uma que já aprendi é que posso dizer "não sei", e não ficar frustrada porisso...
    Excelente reflexão!

    Selma Kaizer de Souza

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