“Então, caindo em si, disse: Quantos trabalhadores de meu
pai têm pão com fartura, e eu aqui morro de fome!” – Lucas 15.17
O cair em si é ótimo porque é o entrar no vazio da alma e
despencar, como aquele que não vê o chão, e vai caindo sem saber direito o
final da queda, e quando chega, o limite é o em si, a redescoberta, o
reencontro com o que poderia ter sido, mas não foi, um recomeço sem recomeço,
pois é um voltar não ao marco zero, será o zero visitado no retorno, e vai
caindo, desde cima, sem ser redundante, senão o cima fica muito baixo, e vão passando as casas dos desvios, cai de novo e sempre, como
se visse a vida, o filme, e se olhasse como se estivesse do lado de fora, mas não está, porque se vê caindo e cai com o que vê e fica a sensação de não
saber direito se era ele mesmo, quase sem acreditar, mas eu fui capaz de fazer
aquilo? não acredito! mas onde eu estava com a cabeça? e vai se vendo, se
envergonhando, e onde estava com a cabeça, não sei, mas agora ela está caindo
no em si, afundando para um começo que não será o começo de tudo porque não dá
pra apagar o caminho, será o começo do possível; não vai dar pra apagar a
memória, ou a consciência, como um esquecer completamente, até porque vai
precisar dela pra saber que a queda é cruel, não dá pra cair de novo, mas não abusa que dá, e é muito doída, quase desumana, mas
quando o desumano é algo que o humano faz contra si, não é desumano, é só
retomada de uma nova etapa e a tentativa de reconstruir tudo, colocar
novos alicerces, estabelecer novos parâmetros, ficar menor, porque quem cai
fica pequeno, se esborracha no chão do em si, fica amassado feito botão e só
não vai além porque ninguém consegue cair pra dentro e passar do em si; o em si
negativo é loucura e desvario.
Caiu no em si o filho que fora embora, aborrecido com a
miséria, nem sequer se deu conta dos males, pegou mesmo foi no limite da vida
que não poderia ficar pior, e se lembrou da benevolência do pai que havia
esquecido, desde quando achara que a vida poderia ser solo, desde o tempo
quando sequer sabia o que era vida, lá no momento em que precisava descobrir
que estava à beira do abismo do em si, que nem sabia direito o que era isso, e
naquele tempo disse que queria ir embora, se cansara da mesma árvore, mesma relva,
mesma vida sem sentido, porque pra ter sentido precisava ir para onde pudesse
cair, e caiu no em si, tropeçou pra dentro, e redescobriu os trabalhadores da
fazenda que não tinham nome nem rosto, eram só trabalhadores, porque desde
aquele tempo não olhava pra ninguém, só para si, sem o em, nem o cair, e
teve que aprender a reescrever o sentido da vida juntando o cair, com o em, e
com o si, cada um separado era uma coisa, agora juntos o derrubaram em queda livre, no vazio da alma, na escuridão de sentido que parece só haver para o
fundo, e foi caindo até que botou o pé no si que estava no chão do chão,
esmagou-se, porque caiu sobre a própria alma, a sufocou, a feriu, a machucou sem
dó e piedade, e é claro, sem controle, pois se há uma coisa que não dá pra
saber é onde fica o fundo do em si, cada um, um poço, e tem até aquele que
fica caindo, só caindo no vazio do nada. A queda do filho de Lucas, porém, teve um limite,
foi grande, mas teve fim; queda grande, e quanto mais se cai, mais doída é a
dor que se tem ao cair sobre si mesmo.
Estou morrendo de fome, de pão, de mim mesmo e estou com
saudade do meu pai disse ao cair. E foi assim que voltou para casa.
Natanael Gabriel da Silva
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