quinta-feira, 8 de maio de 2014

O MAL DIANTE DA GRAÇA




“E perguntou-lhe: Qual é o teu nome? E lhe respondeu, dizendo: Legião é o meu nome, porque somos muitos.” Marcos 5.9

O mal é assim mesmo: não é possível conhecê-lo pelo nome, só pela quantidade. Um pacote. Um monte. Qualquer coisa sem identidade, só massificação. Um igual ao outro como se fosse farinha, e quando vira plural, aparece como Legião,  um exército sem rosto, amontoado de gente em tempo de guerra, um por sobre o outro; e tem gente que ainda se preocupa em fazer conta de quantos espíritos possuía aquele que ficou conhecido como gadareno!

Devemos ao desinteresse de Jesus, o desconhecimento que temos do passado daquele infeliz. Desinteresse que deveria virar doutrina, aos aficionados pelas regras, e seria a doutrina do ocultamento, da não curiosidade, da ausência de importância às causas e motivos. Contudo, podemos imaginar que o tal, que se tornara um balaio do mal, tivera um passado comum, de gente comum, e que num dado momento foi abraçando e sendo abraçado pelo mal, numa espiral que terminou no banimento, exclusão da sociedade a qual pertencia, na trilha do anonimato, que nesse caso significava despessoalização - descaracterização do humano como humano; e o fundo do poço estava, para ele, nas cavernas. Escondido, irado, desequilibrado, furioso, transformado em coisa. Foi então que o quase ser humano, a legião que o tomara para si, e Jesus, finalmente se encontraram. A narrativa é  um sobrevoo de contraste entre o mal, profundamente mal, tão mal que não poderia ser pior a deparar-se face a face com a plenitude da graça, incompreensivelmente perfeita, onde não poderia haver melhor, já que graça é plural no singular e vem sempre no superlativo.

A única pergunta foi pelo nome, não pelo passado ou motivo do banimento, e a resposta não veio da pessoa, mas do mal que o possuía. Conversa curta. O mal ameaçado, se submetendo, se curvando a espera do veredito do que provisoriamente poderia ser chamado de própria vida (na falta de uma palavra melhor), para depois, incompreensivelmente, ser lançado aos porcos, o pacote, um monte, a massa disforme, daí foi a vez dos animais, como um monte, penca, se lançarem pelo precipício, como um suicídio imotivado de uma manada inteira. Não tem teologia que explique isso. Se explicar, haverá controvérsias, porque um animal possesso é o cúmulo da malignidade, por conta de ausência de motivo, porque porco não tem ética, nem caráter, nem pecado, nem vontade ou consciência, e ninguém no nosso atual espaço público de cidadania homologaria o feito. O porco já era um banido e imundo, o que tornava o mal um morador da imundície, se é que isso possa fazer sentido - o mal no interior da imundície, ninguém merece, nem o porco.

Então o mal foi pro mar, mas não morreu, porque todo mundo sabe que o mal não se afoga, nunca morre, vai e volta, e quando você pensa que ele se foi, ele entra e se apresenta num dia qualquer, na sala de estar da sua casa, na zona do conforto depois do stress do dia, então toma assento ao seu lado enquanto você come pipoca e vê televisão, e pergunta de maneira pausada, lenta, calma e irônica, com um sorriso próprio de deboche: - E você como vai? Pois é, o mal não morreu naquele dia. Mas, deixe o mal pra lá, com os seus porcos suicidas e esparramados no mar, pois o que importa é o ser humano, aquele ser humano, que recuperou a sua humanidade, conversou, ainda sem nome, e se apresentou à sociedade que o havia banido como aquele que dava até medo por ter sido libertado do mal, de uma vez, completamente, sem perguntas, expectativas, cobranças, recomendações, exortação, ou qualquer tipo de doutrinamento por parte do libertador: bastava devolver-lhe a vida, porque na graça a vida vem antes do que qualquer coisa.

Depois? Bem, depois o sem nome virou profeta, pregador e mensageiro, é claro! Foi partilhar o plural e o superlativo da graça como expressão de gratidão, porque graça se retribui com graça. Então sumiu e virou texto.

Natanael Gabriel da Silva

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