“Jesus, porém, vendo isto, indignou-se, e disse-lhes: Deixai
vir os meninos a mim, e não os impeçais; porque dos tais é o reino de Deus.” –
Marcos 10.14
A inocência é uma contradição: quando se toma consciência
dela, já não é mais inocência. É como a alienação. Estar alienado é a condição
de quem desconhece o que seria a própria alienação, pois quando esta é colocada
a descoberto, já não há mais alienação. É algo como um sonho, que Tillich
chamou de “inocência sonhadora”, embora no pensamento dele este conceito tenha
um significado bastante próprio, como se fosse uma pergunta da alma, uma busca
da profundidade humana que, quando a gente pensa nela, a pergunta já aconteceu.
Freud, na Interpretação dos Sonhos, tentava encontrar o sentido destes antes de
que fossem articulados em suas possibilidades de interpretação, daí o
relaxamento de quem precisa retirar do fundo, do que o inconsciente revelou
durante a noite, e assim, falar sobre ele como um retirado diretamente. Só então o sonho se torna mediado pelas palavras.
Só que a cultura da época ainda não conhecia Schopenhauer,
nem Nietzsche. Assim a profundidade da profundidade, o que estaria mais oculto,
no incontaminado, onde até mesmo o pensamento não alcançaria, aquilo que
estaria escondido por detrás de uma vida que ainda ninguém escreveu, que é
apenas promessa, o indizível, o que não se pode alcançar, onde a razão não
chega, as doutrinas não entram, os sistemas religiosos ainda não estão
presentes, o preconceito ainda não se constituiu, no limite da “zona do horizonte”,
onde não tem nada, o lugar do completo esvaziamento, e a pessoa é só pessoa,
como um sendo apenas ser, e um ser apenas sendo, tudo isso mostrava que a
criança era o mais próximo distante que se podia alcançar. Isto é, próximo, mas
que ainda não era suficiente, e ao mesmo tempo se dava como possível porque as crianças
existiam, conviviam no meio daquela geração perversa, da qual não sobrara nada.
Jesus marcava, assim, o que poderia ser chamado de: a fronteira da
espiritualidade.
É claro que os sistematizadores, dogmáticos e afins,
exegetas e confessionalistas irão afirmar que a expressão “dos tais é o reino
de Deus” se refere, de maneira reducionista, a um lugar futuro, um depois, uma
promessa, e irão perder as virtudes da espiritualidade profunda, aquela da qual
não se pode tirar preconceito, porque não tem; é, aquela uma que não é uma
imposição e retalhamento da liberdade, isso mesmo, aquela que todo mundo sonha,
ninguém consegue retornar ao seu princípio e assim a vida religiosa prossegue no
discurso de que, afinal, todos somos pecadores, limitados, ninguém tem condição
de ser desse modo, e deste modo vamos justificando a desumanidade, aceitando a
política do poder, a corrupção que interessa, a inclusão ou a exclusão do
pertencimento ao cristianismo deste ou daquele, ao esquecimento do reaprender a
linguagem das brincadeiras que não levam a nada (e porque haveriam de levar?),
terminam terminadas, e fica o cheio de suor depois do intervalo das aulas, um
desajuste aqui, outro ali, mas quem se importa?
Você acha que as crianças entenderam o que Jesus
falava? E precisavam entender? Sabiam lá o que significava uma bênção? Sabiam
nos braços de quem estavam? É que criança aqui, como pessoa e vida, é a metáfora
da pureza oculta, e reino de Deus é a plenitude da existência. Quando as duas
coisas acontecem juntas, tem-se aquilo que pode ser chamado de “pertencimento”. Este é um fazer parte com fundamento e base de uma teologia da inocência, que não
pode ser teologia, sob pena de esvaziar a inocência.
E fica nisso.
Natanael Gabriel da Silva
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