terça-feira, 6 de maio de 2014

A ERA DA INOCÊNCIA




“Jesus, porém, vendo isto, indignou-se, e disse-lhes: Deixai vir os meninos a mim, e não os impeçais; porque dos tais é o reino de Deus.” – Marcos 10.14

A inocência é uma contradição: quando se toma consciência dela, já não é mais inocência. É como a alienação. Estar alienado é a condição de quem desconhece o que seria a própria alienação, pois quando esta é colocada a descoberto, já não há mais alienação. É algo como um sonho, que Tillich chamou de “inocência sonhadora”, embora no pensamento dele este conceito tenha um significado bastante próprio, como se fosse uma pergunta da alma, uma busca da profundidade humana que, quando a gente pensa nela, a pergunta já aconteceu. Freud, na Interpretação dos Sonhos, tentava encontrar o sentido destes antes de que fossem articulados em suas possibilidades de interpretação, daí o relaxamento de quem precisa retirar do fundo, do que o inconsciente revelou durante a noite, e assim, falar sobre ele como um retirado diretamente. Só então o sonho se torna mediado pelas palavras.

Só que a cultura da época ainda não conhecia Schopenhauer, nem Nietzsche. Assim a profundidade da profundidade, o que estaria mais oculto, no incontaminado, onde até mesmo o pensamento não alcançaria, aquilo que estaria escondido por detrás de uma vida que ainda ninguém escreveu, que é apenas promessa, o indizível, o que não se pode alcançar, onde a razão não chega, as doutrinas não entram, os sistemas religiosos ainda não estão presentes, o preconceito ainda não se constituiu, no limite da “zona do horizonte”, onde não tem nada, o lugar do completo esvaziamento, e a pessoa é só pessoa, como um sendo apenas ser, e um ser apenas sendo, tudo isso mostrava que a criança era o mais próximo distante que se podia alcançar. Isto é, próximo, mas que ainda não era suficiente, e ao mesmo tempo se dava como possível porque as crianças existiam, conviviam no meio daquela geração perversa, da qual não sobrara nada. Jesus marcava, assim, o que poderia ser chamado de: a fronteira da espiritualidade.

É claro que os sistematizadores, dogmáticos e afins, exegetas e confessionalistas irão afirmar que a expressão “dos tais é o reino de Deus” se refere, de maneira reducionista, a um lugar futuro, um depois, uma promessa, e irão perder as virtudes da espiritualidade profunda, aquela da qual não se pode tirar preconceito, porque não tem; é, aquela uma que não é uma imposição e retalhamento da liberdade, isso mesmo, aquela que todo mundo sonha, ninguém consegue retornar ao seu princípio e assim a vida religiosa prossegue no discurso de que, afinal, todos somos pecadores, limitados, ninguém tem condição de ser desse modo, e deste modo vamos justificando a desumanidade, aceitando a política do poder, a corrupção que interessa, a inclusão ou a exclusão do pertencimento ao cristianismo deste ou daquele, ao esquecimento do reaprender a linguagem das brincadeiras que não levam a nada (e porque haveriam de levar?), terminam terminadas, e fica o cheio de suor depois do intervalo das aulas, um desajuste aqui, outro ali, mas quem se importa?

Você acha que as crianças entenderam o que Jesus falava? E precisavam entender? Sabiam lá o que significava uma bênção? Sabiam nos braços de quem estavam? É que criança aqui, como pessoa e vida, é a metáfora da pureza oculta, e reino de Deus é a plenitude da existência. Quando as duas coisas acontecem juntas, tem-se aquilo que pode ser chamado de “pertencimento”. Este é um fazer parte com fundamento e base de uma teologia da inocência, que não pode ser teologia, sob pena de esvaziar a inocência.
E fica nisso.

Natanael Gabriel da Silva

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