“Ele, porém, querendo justificar-se, perguntou a Jesus: E
quem é meu próximo?” Lucas 10.29
Uma pergunta que Jesus não respondeu, mas colocou o
interlocutor no centro da vida para que ele mesmo a respondesse. E respondeu. Precisou,
porém, transitar entre o ideário conceitual da religião para a existência, isto
é, Jesus fez com que ele saltasse para dentro da vida.
Foi assim que Jesus contou a inesgotável parábola do bom samaritano
que, como toda parábola, tem a virtude de fazer do interlocutor um personagem
da história. De certo modo, Jesus perguntou assim ao doutor da lei: Vamos
supor que você fosse uma pessoa que tivesse perdido tudo num assalto e ainda
tivesse sido agredido a ponto de não poder sequer andar, o que você me diria se um religioso, fosse sacerdote ou levita, que por conta da religião ambos eram proibidos
de tocar em algo que estivesse morto, passassem por ali e, por via da dúvida, se afastassem para bem
longe, distante de qualquer ameaça de contaminação? Diria deles o quê? Vamos
supor ainda que logo depois passasse um samaritano, aquele que aparentemente não
levava muito a sério esse negócio de não tocar em morto, e se ele se aproximasse
de você, desse os primeiros socorros depois o levasse para ser cuidado e ainda
pagasse toda a conta do tratamento; o que acharia dele? Agora, vamos supor que
você fosse o sacerdote ou o levita, você pararia para ajudar alguém nestas
condições? E se fosse ao contrário, se tivesse um samaritano caído, quase morto, bem no seu caminho, faria o quê? Passaria longe? Chegaria perto? Perguntaria primeiro no que ele acredita para depois, talvez, ajudá-lo?
O doutor da lei, que deveria saber tudo sobre religião e fé,
saiu da
religiosidade conceitual, doutrinarista, legalista, e entrou na vida, porque é
nela que as coisas se dão e funcionam, e respondeu algo como: É, a proximidade entre as pessoas vem
por conta da misericórdia, porque é esta que ajunta o que não pode ser
ajuntado; é ela que atravessa a barreira que não pode ser transposta, e está para além de qualquer sentido e religiosidade; nela está a vocação da
vida, e dela dependem a existência e a vida humana; ela não está necessaria e
automaticamente presente na religião que professo; ela é uma forma de se ver a vida, um modo de se olhar as carências humanas e de se colocar dentro delas; é uma
transposição da alienação de horizonte curto; é um olhar para cima, um olhar que faz curva, passa por detrás dos prédios,
entra pela porta dos lares, avança onde não é convidado a entrar, não pergunta se pode invadir a vida do miserável caído, não questiona as razões e as motivações
que fizeram de alguém um largado à beira do caminho; a misericórdia é a única capaz de gerar
aproximação, solidariedade, fraternidade e nos torna, a todos, parte do mesmo
sofrimento histórico, indagações e busca, e não está na lei, embora esteja, pois dela a lei necessita,
não está num simples conceito, e próximo significa tudo isso. Agora, pra entender alguma coisa sobre a misericórdia, é necessário
antes passar pela vida, pelo caminho, e nela e nele, vida e caminho, encontrar um anônimo caminhante para abraçar e por ele ser abraçado.
De
todos os personagens que posso ser, - daria continuidade o doutor da lei ao seu discurso - se pudesse escolher um, o que é impossível,
pois todos somos agentes e construtores da história, eu gostaria de ser o
samaritano. O doutor da lei, numa tacada só: negou a supremacia da própria fé, negou o privilégio de
ser filho de Abraão - o já pertencido desde o nascimento - e ainda reconheceu que
a misericórdia é a hermenêutica da religião e da vida.
Fecha a conta e passa a régua.
Natanael Gabriel da Silva
Nenhum comentário:
Postar um comentário