sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

HERMENÊUTICA DA AUSÊNCIA



“Jesus respondeu [a Nicodemos]: Tu és mestre em Israel e não entende essas coisas?” João 3.10

Faltava a Nicodemos entender do vento, suas curvas, seu sopro, sua liberdade em transitar e passar sem ser visto, apenas sentido. Isso porque Nicodemos, provavelmente, era um perito no que estava literalmente escrito, determinado e previsto e não conseguia ir além.

Ir além pode ser um problema, porque Paulo iria repreender a Igreja de Corinto por ir além do que estava escrito. Contudo, o ir além naquele caso, era o tornar-se mais prepotente e beligerante, aquele que em nome da verdade ou espiritualidade, tem a preferência pelo conflito. Neste caso, o que está escrito se dá como mais benevolente do que o próprio amor.

Então, o que está escrito é válido, como o que também claramente não está, desde que a trilha a ser traçada seja a da ampliação no amor, na fraternidade, na igualdade e no respeito à dignidade humana, e não no legalismo, punição, ou vaidade pessoal. É que nascer de novo era uma metáfora com excesso de sentido fora do alcance de Nicodemos que aprendera a pensar no declarado, medido e exigido, e no máximo, pra não errar, exagerava ao contrário. Até concordo com ele que, quando se tem esse cuidado, tudo fica mais fácil. Basta colocar o que chamamos de pessoa e medir o tamanho do delito,  para então mensurar a pena, e o que não se deve fazer é punir de menos. Só que, quem mede também é pessoa, com os seus preconceitos, limites, interesses pessoais, sonhos, neuroses, muitas neuroses, insatisfações e crises que passam por caminhos aparentemente longe e distantes do público, mas que mostram a cara num julgamento inadequado, pelo viés do preconceito, do autoritarismo, coronelismo; este tão presente na nossa cultura, permeado de um getulismo decadente e fora de tempo. Então quando alguém conversa comigo, “a Bíblia diz”, eu nunca me esqueço de que por detrás do enunciado, e principalmente de quem diz, há uma pessoa, seus dramas, conflitos não resolvidos, mágoas, sentimentos de culpa, desejos de vingança, vitimização, desconhecimento de si mesmo, uma história, um abandono, uma miséria, outra vida no avesso, a de total desconhecimento de qualquer miséria, consumismo, conforto burguês, e o que a “Bíblia diz”, afinal, não diz sozinha, mas vem por meio de interpretações e preconceitos, propositais ou não, mas que estão lá para estabelecer os limites e fronteiras do que a alma não consegue compreender.

Ir além no amor, não faz mal, faz mel. É doce, recomendado, orientado e esperado. Daí Jesus ter dito que já havia amado (muito) os seus, mas acrescentou ao amor dispensado o “até o fim”, porque foi além do que já estava posto e completou o amor com mais amor, como se colasse um acréscimo; amor aderido ao outro, colado, prolongado, para que o que fora enorme ficasse ainda maior e se desse como esgotado. Com outras palavras: Jesus iria colocar um ponto final no amor. Paulo mais tarde diria aos Gálatas que o resultado de uma vida no Espírito, que Nicodemos não conseguia entender, é algo que lei nenhuma dá conta, não tem como sistematizar, organizar e definir, e por esta razão não pode proibir, nem permitir, apenas abrir caminho.

O amor é um ausente, não porque não esteja nas Escrituras, mas porque sempre será tido e havido como um ao qual será possível acrescentar e estender o limite, e depois do limite encontrado, outra superação, e a visão profética do amai-vos uns aos outros como eu vos amei, é o caminho que permite ir além do que está escrito. Neste caso, apenas neste caso, é possível uma hermenêutica do que está ausente. Nela não existem regras de interpretação, sinto muito.

Natanael Gabriel da Silva


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