“Então ela disse a Elias: Que tens contra mim, ó homem de Deus? Vieste tu a mim para trazer à memória o meu pecado e matar meu filho?” – I Reis 17.18
Eu sei que trazer o passado não resolvido é sofrer duas
vezes, mais que duas, muitas vezes, e se dá sempre quando o acontecido faz surgir do
profundo os sentimentos que se achavam decantados. Talvez seja uma agonia
imposta, um pouco pelos outros, um muito por si mesmo, pois a tragédia e o
descaminho ficam voltando, vão e voltam, e sempre se refaz a reflexão pelo,
aparentemente, mesmo viés, os fatos, acontecimentos, pessoas, o que fora dito,
o que não fora dito, as expressões de quem disse que só a memória presenciada
poderia fazer o registro, depois mistura-se tudo, e num dado momento o que
poderia ter sido antes, fica pra depois, o dito é amaciado por bricolagem para
atender os desejos da angústia e resolvê-la sem dar-lhe solução, é daí que nem
sempre quem tem a memória é confiável em sua visita. Sua interpretação muda,
distorce, sem se tornar mentira, mas que também não chega a ser verdade, entra
numa nuvem, presa a lugar nenhum, flutuando, escurece como se tempestade fosse
vir, mas repentinamente vem o sol, surgido só por conta da ânsia de claridade
e luz, e nem quem participou do evento é capaz de dizer onde reside a verdade.
Talvez nas nuvens.
A questão, contudo, não foi o fato do profeta ter feito
algo, ou do acontecido inesperado ter trazido o trágico de volta, mas a solução
dada à memória, impossível de ser consertada. É que trazer o pecado de volta, não
resolve o problema da vida trágica que fora construída depois dele, não será
possível apagá-lo como se não tivesse havido nada, mas, como dizem as más, ou
boas, línguas, o que vale é a cura do sofrimento que sempre vem na
esteira da memória não resolvida.
Foi assim que a viúva, que já era sofrida por determinação
do destino, sofreu de novo, e agora na memória (zaw-kar), o ponto divisor, a marca, ou lembrança, onde não tem coisa
que dá pra consertar, nem fazer diferente porque a história ninguém muda; veio
então o sofrimento engordado pelos anos e sentiu-se punida pela morte do filho,
o que era incompreensível, pois já estivera disposta a morrer, mas uma coisa é
a disposição, outra é o acontecido, e quando o filho morreu, e morreu mesmo, o passado
dela reviveu de um algo que nunca ninguém irá saber, nem precisa, e
simplesmente confessou como se estivesse pasmada, pois finalmente entendera que
o profeta viera primeiro pra tirá-los da morte anunciada, depois pra matar e demonstrar que a
morte não deveria ser resultado de uma fatalidade, mas correção e punição,
então a viúva não entendeu nada. Quando não há solução, cria-se uma. Veio então
a bendita memória.
Só que veio também a solução no filho foi
ressuscitado. Então não se sabe direito se a ressurreição aconteceu por conta
do filho, ou se foi um apaziguamento da memória e da ira de Deus, que de ira
não tinha nada, era só memória dela, culpa, dor de um mal praticado como
evento, ou apenas dor do pecado de viver como não pertencente à nação dos
eleitos, sangue gentio, não importa o que fosse, e o filho ressuscitado declarava
que Deus não tinha nada a ver com aquilo. Está aqui seu filho, não tem nada de
memória e você visitou o passado sofreu por conta dele sem necessidade, a não
ser a de você se dar conta de quem é, do que fez, ter culpa para ser gente e
pessoa, só isso. Pecado? Que pecado? Não sei do que a senhora está falando, e a
vida voltou ao filho, está aqui seu filho, num milagre pra ser visto a dois e
experimentado por três, sem multidão, teatro para a manifestação do poder ou
qualquer coisa parecida; um milagre feito no quarto, apenas pra dizer que a
memória confundira a vida, e se a morte é a punição maior é a redenção, então a viúva
já poderia se considerar remida. Ela finaliza o diálogo reafirmando a presença
do divino na vida do profeta, não sei se por conta da ressurreição, o que
parece ser, ou se da memória estourada como furúnculo. Deus se preocupava com
ela, não apenas em dar-lhe o que comer, mas era capaz de operar o milagre da
concessão da vida.
A mulher, interpretado o ocorrido por Jesus (Lucas 4.26), a
que fez referência, se tornou como exemplo e símbolo da universal
misericórdia de Deus. Do pecado dela, nem Jesus disse qualquer coisa. Talvez fosse
mesmo o pecado da exclusão da elite dos não pertencidos. E foi assim que da
memória e culpa, a viúva, sem nome, se tornou filha do Reino, por inclusão e determinação da misericórdia.
Natanael Gabriel da Silva
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