sábado, 21 de fevereiro de 2015

A MEMÓRIA E A MISERICÓRDIA


“Então ela disse a Elias: Que tens contra mim, ó homem de Deus? Vieste tu a mim para trazer à memória o meu pecado e matar meu filho?” – I Reis 17.18

Eu sei que trazer o passado não resolvido é sofrer duas vezes, mais que duas, muitas vezes, e se dá sempre quando o acontecido faz surgir do profundo os sentimentos que se achavam decantados. Talvez seja uma agonia imposta, um pouco pelos outros, um muito por si mesmo, pois a tragédia e o descaminho ficam voltando, vão e voltam, e sempre se refaz a reflexão pelo, aparentemente, mesmo viés, os fatos, acontecimentos, pessoas, o que fora dito, o que não fora dito, as expressões de quem disse que só a memória presenciada poderia fazer o registro, depois mistura-se tudo, e num dado momento o que poderia ter sido antes, fica pra depois, o dito é amaciado por bricolagem para atender os desejos da angústia e resolvê-la sem dar-lhe solução, é daí que nem sempre quem tem a memória é confiável em sua visita. Sua interpretação muda, distorce, sem se tornar mentira, mas que também não chega a ser verdade, entra numa nuvem, presa a lugar nenhum, flutuando, escurece como se tempestade fosse vir, mas repentinamente vem o sol, surgido só por conta da ânsia de claridade e luz, e nem quem participou do evento é capaz de dizer onde reside a verdade. Talvez nas nuvens.

A questão, contudo, não foi o fato do profeta ter feito algo, ou do acontecido inesperado ter trazido o trágico de volta, mas a solução dada à memória, impossível de ser consertada. É que trazer o pecado de volta, não resolve o problema da vida trágica que fora construída depois dele, não será possível apagá-lo como se não tivesse havido nada, mas, como dizem as más, ou boas, línguas, o que vale é a cura do sofrimento que sempre vem na esteira da memória não resolvida.

Foi assim que a viúva, que já era sofrida por determinação do destino, sofreu de novo, e agora na memória (zaw-kar), o ponto divisor, a marca, ou lembrança, onde não tem coisa que dá pra consertar, nem fazer diferente porque a história ninguém muda; veio então o sofrimento engordado pelos anos e sentiu-se punida pela morte do filho, o que era incompreensível, pois já estivera disposta a morrer, mas uma coisa é a disposição, outra é o acontecido, e quando o filho morreu, e morreu mesmo, o passado dela reviveu de um algo que nunca ninguém irá saber, nem precisa, e simplesmente confessou como se estivesse pasmada, pois finalmente entendera que o profeta viera primeiro pra tirá-los da morte anunciada, depois pra matar e demonstrar que a morte não deveria ser resultado de uma fatalidade, mas correção e punição, então a viúva não entendeu nada. Quando não há solução, cria-se uma. Veio então a bendita memória.

Só que veio também a solução no filho foi ressuscitado. Então não se sabe direito se a ressurreição aconteceu por conta do filho, ou se foi um apaziguamento da memória e da ira de Deus, que de ira não tinha nada, era só memória dela, culpa, dor de um mal praticado como evento, ou apenas dor do pecado de viver como não pertencente à nação dos eleitos, sangue gentio, não importa o que fosse, e o filho ressuscitado declarava que Deus não tinha nada a ver com aquilo. Está aqui seu filho, não tem nada de memória e você visitou o passado sofreu por conta dele sem necessidade, a não ser a de você se dar conta de quem é, do que fez, ter culpa para ser gente e pessoa, só isso. Pecado? Que pecado? Não sei do que a senhora está falando, e a vida voltou ao filho, está aqui seu filho, num milagre pra ser visto a dois e experimentado por três, sem multidão, teatro para a manifestação do poder ou qualquer coisa parecida; um milagre feito no quarto, apenas pra dizer que a memória confundira a vida, e se a morte é a punição maior é a redenção, então a viúva já poderia se considerar remida. Ela finaliza o diálogo reafirmando a presença do divino na vida do profeta, não sei se por conta da ressurreição, o que parece ser, ou se da memória estourada como furúnculo. Deus se preocupava com ela, não apenas em dar-lhe o que comer, mas era capaz de operar o milagre da concessão da vida.

A mulher, interpretado o ocorrido por Jesus (Lucas 4.26), a que fez referência, se tornou como exemplo e símbolo da universal misericórdia de Deus. Do pecado dela, nem Jesus disse qualquer coisa. Talvez fosse mesmo o pecado da exclusão da elite dos não pertencidos. E foi assim que da memória e culpa, a viúva, sem nome, se tornou filha do Reino, por inclusão e determinação da misericórdia.

Natanael Gabriel da Silva

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